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A APS BRASILEIRA NO ENFRENTAMENTO A COVID-19
O Brasil é um país caracterizado por fortes disparidades socioeconômicas. No entanto, oferece um sistema de saúde universal que visa proporcionar igualdade de acesso a todos os seus mais de 203 milhões de cidadãos. Instituído através da Lei 8080 de 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS) é pautado nos princípios da universalidade, integralidade, equidade, descentralização, regionalização e participação social. Neste período de crise mundial, o acesso aos diferentes níveis de atenção à saúde expôs de forma dramática a estrutura socioeconômica do país e as fragilidades do SUS.
Conheça mais sobre o SUS em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/sus
A Atenção Primária à Saúde (APS) é a porta de entrada preferencial do SUS e, portanto, foi o primeiro ponto de contato para os pacientes sintomáticos, com suas preocupações, dúvidas e ansiedades sobre a Pandemia de COVID-19. Algo em torno de 80% dos casos se apresentam como um quadro leve ou moderado, o que leva a APS a figurar como estratégia fundamental para o cuidado integral, controle da doença e suporte aos grupos vulnerabilizados (63). Nesse ínterim, os problemas regulares de saúde não deixaram de existir.
O que é a Atenção Primária à Saúde? Conheça mais em: https://www.paho.org/pt/topicos/atencao-primaria-saude
Inúmeras medidas foram tomadas para reorganização dos processos de trabalho de modo que houvesse uma adaptação ao novo cenário de atendimento imposto pelas restrições da pandemia. Isso gerou um impacto profundo na APS, o qual se estendeu para muito além do nível organizacional e logístico. (39) O Protocolo de Manejo Clínico do Covid-19 na Atenção Primária (69) sugeriu a metodologia fast-track, que tem por base a triagem e a agilidade no atendimento aos casos suspeitos, estabeleceu um fluxograma de atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS), desde a porta até o atendimento, evitando a circulação desnecessária deste usuário em outros ambientes do serviço. No âmbito dos Estados foram organizados comitês de enfrentamento e elaborados planos de contingência, como os de São Paulo (70) e de Santa Catarina (71). Os municípios, responsáveis pela gestão da APS, responderam reorganizando suas redes de atenção à saúde com base no conhecimento de seu território e da vigilância epidemiológica. Na cidade do Rio de Janeiro, foi através do Decreto Rio Nº 48343 de 1º de Janeiro de 2021 que foi instituído o Comitê Especial de Enfrentamento da Covid-19 - CEEC, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, do Município do Rio de Janeiro. (72)
Veja o Protocolo de Manejo Clínico do Covid-19 na Atenção Primária em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-crianca/atencao-primaria-orientacoes-do-ministerio-da-saude-sobre-covid-19/ Nota: observem que em menos de dois meses, nove edições foram publicadas pelo Ministério da Saúde (entre março e maio de 2020).
Website oficial do Ministério da Saúde sobre o Coronavírus: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus
Painel oficial da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro: https://coronavirus.rio/
Website oficial da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo: https://www.saopaulo.sp.gov.br/coronavirus/
Eixos de intervenção da APS
Um grupo de pesquisadores membros da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde publicou uma série de trabalhos em que foram analisadas as possibilidades de atuação da APS na rede do SUS que poderiam contribuir com o controle da pandemia. Segundo os autores, a atuação da APS poderia ser sistematizada em quatro eixos: (i) vigilância em saúde nos territórios; (ii) atenção aos usuários com COVID-19; (iii) suporte social a grupos vulneráveis; e (iv) continuidade das ações próprias da APS (67). A ilustração abaixo sintetiza os eixos mencionados.
Desafios da APS durante a Pandemia
A pandemia do COVID-19 foi um desafio para cada uma das competências essenciais do médico de família e comunidade, do enfermeiro em saúde da família e dos agentes comunitários de saúde. A gestão da APS requisitou soluções para lidar com o aumento do número de pacientes com sintomas de síndrome gripal e para separar fluxos de continuidade das demais linhas de cuidado e serviços ofertados. O cuidado centrado na pessoa precisou ser mantido a despeito de novas tecnologias implementadas, como por exemplo, o atendimento remoto ou telemonitoramento.
A orientação para a comunidade é evidentemente muito importante no contexto de um surto infeccioso e, por fim, as dimensões psicológica, sociocultural e existencial definem o contexto holístico em que profissionais da APS atuam. A avaliação das respostas do sistema de saúde a pandemias infecciosas anteriores mostra várias abordagens e diferentes níveis de envolvimento da APS em diferentes países, mas geralmente uma preparação insuficiente. Dificuldades no fornecimento e uso de EPI, decisões de saúde, como priorização de pacientes do grupo de risco, o apoio das autoridades, a falta de conhecimento e treinamento e a carga emocional são fatores que comprometem uma resposta eficaz a uma pandemia. Os aprendizados da pandemia podem ajudar na adaptação de estratégias para o futuro.
Os trabalhadores da atenção primária, como enfermeiras, técnicos de enfermagem e médicos que estão em contato direto com os pacientes e seus fluidos corporais, são os mais vulneráveis à infecção.40
Frente a essa nova realidade, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) durante surtos e epidemias apresenta papel fundamental na resposta global à doença em questão. Na ESF se oferece atendimento resolutivo, além de manter a coordenação do cuidado e a longitudinalidade em todos os níveis de atenção à saúde, com grande potencial de identificar casos graves de uma doença os quais devem ser manejados em serviços especializados.
Desafios foram observados na adequação dos processos de trabalho, com destaque para as dificuldades na comunicação entre os diferentes níveis de gestão e as unidades básicas de saúde. As alterações frequentes dos protocolos por parte do Ministério da Saúde uma vez que o intervalo de tempo entre uma publicação e as sequenciais atualizações era muito curto. Houve dificuldade em se disseminar a informação e garantir que todos os profissionais estivessem cientes e apropriados das últimas orientações.
OS AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE
Profissão criada em 2002 (53), recentemente os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) foram regulamentados como profissionais de saúde (54). Atualmente, são aproximadamente 265 mil profissionais em território nacional que assistem a mais de 126 milhões de pessoas, assumindo o papel de mediadores entre expressões culturais e estilos de vida locais, por um lado, e entre o conhecimento científico e o processo de trabalho das equipes, por outro.
Diante da pandemia pelo SARS-CoV-2, as equipes da ESF, ao ofertarem um atendimento territorializado e promoverem a longitudinalidade e a coordenação do cuidado em todos os níveis de atenção à saúde, possuíam a capacidade de identificar antecipadamente potenciais casos graves. Contudo, para atender a essa demanda, o processo de trabalho em saúde precisou ser significativamente readequado, em consequência das restrições logísticas e espaço-temporais, tais como novas formas de desenvolvimento de atividades pela equipe na APS e o próprio isolamento social da comunidade. Tais mudanças comprometeram o trânsito entre os diferentes territórios de abrangência das equipes da ESF, o vínculo presencial com os usuários/comunidade, especialmente, no contexto das visitas domiciliares, assim como exigiu mudanças nos fluxos assistenciais e na interrelação entre os membros da equipe, dificultando, inclusive, a realização de reuniões presenciais para o planejamento semanal e mensal de atividades. (55) Por tal motivo, uma das medidas mais utilizadas foi a incorporação do telessaúde (sistema de prestação de serviços de saúde à distância, intermediado por tecnologias da informação e comunicação), principalmente por aplicativos de mensagens (como o whatsapp) e o telefone. (55) O telemonitoramento de casos de síndrome gripal por covid-19 e a vigilância das demais linhas de cuidado foi presente no dia-a-dia dos ACS.
Nesse contexto, o ACS insere-se como um profissional de destaque diante da pandemia, por se tratar de integrante da rede que tem um papel essencial no que se refere à promoção, prevenção e controle de agravos, tendo em vista que apresenta uma maior aproximação com a comunidade, o que facilita o elo entre a população e os serviços de saúde. 43,44 Assim, auxiliam na maior permeabilidade e aceitação das medidas estabelecidas e preconizadas pelas autoridades de saúde do país a nível territorial. (55) Apesar da notória importância, os ACS só foram chancelados como trabalhadores essenciais cinco meses depois do primeiro caso confirmado de SARS-CoV-2 no Brasil, quando foi publicada a Lei n. 14.023 de 2020. 64
De acordo com o Ministério da Saúde, compete ao ACS durante a pandemia da COVID-19: orientar a população a respeito da doença; ajudar a equipe na identificação de casos suspeitos; auxiliar no monitoramento dos casos confirmados e casos suspeitos; quando solicitado, realizar busca ativa; auxiliar as atividades de campanha de vacinação tendo em vista preservar a circulação entre pacientes que estejam na unidade por conta de complicações relacionadas à COVID-19, priorizando os idosos; realizar atividades educativas na unidade enquanto os pacientes aguardam atendimento, dentre outras atribuições. 42,43 Entretanto, configurando-se como desvio de função em relação à lei da profissão (65,66)
Recomendações para adequação das ações dos agentes comunitários de saúde frente a atual situação epidemiológica referente ao Covid-19, disponivel em: https://profsaude-abrasco.fiocruz.br/publicacao/recomendacoes-adequacao-acoes-agentes-comunitarios-saude-frente-atual-situacao
OS ENFERMEIROS E PROFISSIONAIS MÉDICOS DA APS
A Enfermagem assume o protagonismo na APS, sendo indispensável para o bom funcionamento do conjunto de ações de saúde. Ressalta-se a habilidade técnica assistencial e científica desses profissionais, assim como sua sensibilidade de cuidar e ser cuidado, de gerenciar e empoderar toda a equipe multidisciplinar.45 O enfermeiro, pertencente a uma equipe multidisciplinar, possui o potencial de alavancar as ações da APS, rotineiramente e em tempos de pandemia. Na linha de frente do atendimento, testagem e no gigante processo de organização da vacinação.
A pandemia do COVID-19 foi um enorme desafio para cada uma das competências essenciais do MFC, das quais podemos citar: atuar a partir de uma abordagem biopsicossocial; desenvolver ações integradas de promoção, proteção e recuperação da saúde; priorizar o foco na família e orientada para comunidade, privilegiando o acesso, o primeiro contato, o vÌnculo, a continuidade e a integralidade do cuidado. Houve uma nítida sobrecarga do sistema ao se assumir a responsabilidade no atendimento a síndrome gripal não deixando desassistidas as linhas de cuidado tais como o cuidado de pacientes com diagnóstico de tuberculose e hanseníase, gestantes, crianças menores de 2 anos, indivíduos portadores de doenças crônicas não transmissíveis descompensados, entre outras vulnerabilidades. Casos extremos foram frequentes nas unidades básicas de saúde, levando a situações de manejo de paciente grave que não fazem parte da rotina desses profissionais, em contexto de ausência de infraestrutura adequada. Testagem em massa e compromisso com o processo de imunização.
Encontrar o equilíbrio entre todas as funções em meio a afastamentos e redução das equipes e todas as demais restrições impostas pela pandemia foi um dos grandes desafios.
Quem é o médico de família e comunidade? Veja mais em: https://www.youtube.com/watch?v=HZuU8xbNGNA
Publicações sobre Covid-19 para médicos de família e comunidade: https://www.sbmfc.org.br/publicacoes-sobre-covid-19-para-medicos-de-familia-e-comunidade/
O CASO DO RIO DE JANEIRO
O estado do Rio e, principalmente o município, lidou com desafios como escassez de recursos, número insuficiente de profissionais, falta de EPIs e de kits de testagem, superfaturamento de hospitais de campanha e respiradores que foram comprados, mas não foram entregues. Essa situação desencadeou alguns desdobramentos, como a demissão do secretário de Saúde do estado, e as diversas investigações envolvendo o próprio governador (ARAUJO, 2020). O ex-secretário de Saúde do estado e o governador foram investigados por superfaturamento e fraudes em licitações envolvendo os hospitais de campanha (61) Em agosto de 2020, o até então governador Wilson Witzel foi afastado pelo STJ e sofreu impeachment em abril de 2021. A crise na Saúde da cidade do Rio de Janeiro não começou com a pandemia, mas veio se alastrando há alguns anos, especialmente a partir da gestão do prefeito Marcelo Crivella. (61)
Em 2018, sob a gestão de Marcelo Crivella, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ) lançou um documento que apresentou um estudo realizado para a reorganização dos serviços da APS no município, visando a “otimização de recursos”. A SMS-RJ (2018) argumentou que a expansão da rede de APS foi feita de forma desordenada entre os anos 2009 e 2016, gerando a necessidade de redistribuição das equipes, de modo a alcançar a adequação financeira ao orçamento disponível. A proposta apresentou nova tipologia de equipes e alto número de usuários por equipe, com base na PNAB 2017 (61) Essa reorganização resultou em aproximadamente 1.400 profissionais demitidos, sendo a maioria de ACS. O que foi chamado de “reorganização da Atenção Primária” traduziu-se por supressão de equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e NASF. Com tal supressão e consequente redução na cobertura da ESF no município, os profissionais se viram sobrecarregados e sem condições de prestar a assistência devida à população. Experiência publicada em 2020 pela equipe de uma clínica da família do bairro de Vicente de Carvalho, zona norte do Rio de Janeiro, descreve o drama a que dezenas de unidades foram submetidas em 2020 visto que passaram por uma mudança turbulenta de modelo de gestão. Há 10 dias da declaração de transmissão comunitária do novo coronavírus na cidade, todos os funcionários foram demitidos e contratados alguns dos antigos profissionais e novos trabalhadores por uma empresa pública, a Riosaúde. Desde a inauguração desta unidade, em 2011, a gestão era realizada por uma mesma organização social. (74)
A escassez de trabalhadores da saúde por conta de afastamentos de curta e longa duração, por Covid-19 ou devidos a outras causas (incluindo aumento exponencial de transtornos de saúde mental), se fizeram sentir nas unidades da APS, sobretudo naquelas onde a incompletude de equipes já se apresentava como fator limitante à produção de serviços. (73) Essa conjuntura fragilizou os profissionais de saúde e agravou ainda mais os problemas de acesso, gerando desassistência e precarização do acompanhamento dos usuários na atenção básica.
Fraco manejo e ordenação pela gestão Crivella, com fornecimento de EPIs de baixa qualidade, criação de hospitais de campanha. Houve grande demora na liberação de documentos norteadores aos profissionais da APS carioca. Com a mudança da administração, houve a criação em 2021, na gestão do Eduardo Paes do Comitê Especial de Enfrentamento da Covid-19 - CEEC. É iniciada, então, a corrida pela vacina, com o início da imunização em 20 de janeiro de 2021, simbolicamente no dia do padroeiro da cidade. E se seguiu com atualizações semanais, por vezes diária, dos protocolos de vacina e sequência de idade a ser seguida. Grandes conflitos com os usuários sobre os critérios quando a faixa etária chegou a abaixo de 60 anos, assim como conflitos para o recebimento da segunda dose para aquelas pessoas que tomaram a primeira dose em outros municípios.
Detalhes sobre a vacinação no Rio de Janeiro: https://coronavirus.rio/vacina/
O CASO DE BOTUCATU
Em 18 de março de 2020 o decreto municipal nº 11.941 declarou situação de emergência em Botucatu, município de médio porte do centro-oeste do estado de São Paulo, com 145.155 habitantes. Foram instituídas medidas para enfrentamento da COVID-19 e, buscando controlar novas contaminações, determinaram-se restrições inclusive para o funcionamento dos serviços de saúde. A redução da circulação de pessoas como parte das adequações levou ao cancelamento e suspensão das consultas agendadas, assim como dos exames laboratoriais e complementares de toda a rede básica de saúde municipal.
A cidade foi palco de importantes medidas no combate a COVID-19, como a instituição da “Central Coronavírus”, que disponibilizou a partir de 16 de março de 2020 atendimento telefônico (disk-coronavírus), por equipes compostas por médicos, enfermeiros e Agentes Comunitários de Saúde para orientar e tirar dúvidas da população acerca da COVID-19, além da realização de 20 mil testes pelo HCFMB, ainda em março de 2020.
Em 2021, realizou-se uma vacinação em massa da população do município, que participou de parte de estudo acerca da efetividade da vacina Astrazeneca/Oxford, produzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Brasil. Em 16 de maio daquele ano, mais de 65 mil moradores de Botucatu, entre 18 e 60 anos, receberam a primeira dose, em uma ação que envolveu todas as unidades básicas de saúde do município, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB), Ministério da Saúde, CNPQ, Fiocruz, Fundação Bill e Melinda Gates e Universidade de Oxford. Apenas seis semanas após o evento, observou-se queda de 71,3% no número de novos casos da doença, criando em Botucatu uma realidade distinta do observado no restante do país.
Detalhes sobre a vacinação em Botucatu: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2021/junho/botucatu-sp-tem-queda-de-mais-de-70-nos-casos-de-covid-19
Detalhes sobre a produção de testes em Botucatu: https://www.fmb.unesp.br/#!/noticia/2614/convenio-para-realizar-20-mil-testes-de-covid-19/