Perfis dos participantes

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Zanini, 57 anos, se autodeclara branco, casado e com 2 filhos, é médico da família com 34 anos de formado. Adoeceu em janeiro de 2021. Hipertenso moderado, conta que sua esposa tinha muito medo de que ele pegasse covid-19, pois ela achava que ele morreria. Entretanto, ele começa compartilhando que sua evolução foi diferente da que ela esperava. Quando percebeu os primeiros sintomas, foi 3 dias após tomar a primeira dose da vacina. Concomitante, sua esposa apresentou sintomas de COVID-19. Logo após ele positivou para covid-19. 

Conforme o tempo passou, Zanini não apresentava os sintomas típicos da doença, mas sim um quadro de diarreia e dores nas costas. Entretanto, sua esposa apresentou sintomas mais graves. Mesmo os dois estando doentes, ele conta que sua maior preocupação foi com a esposa e a gravidade do acometimento dela. A partir disso, ele passou a fazer os afazeres domésticos, já que sua manifestação foi amena. Zanini se emociona ao contar que ficou com medo ao longo da evolução clínica de sua esposa. Eles foram algumas vezes fazer exames no hospital e ele diz ter sentido muito medo ao vê-la entrar, e ela não retornar. 

No começo do ano, ele junto de sua esposa e outros familiares alugaram uma casa em Búzios na época da pandemia. Sua esposa começou a sentir os sintomas nesse período e logo Zanini e ela alugaram um quarto numa pousada com medo de transmitir para o restante da família. Porém, sua esposa ao fazer o teste do swab nasal, o resultado foi negativo. Então, decidiram voltar para a casa, onde nesse meio tempo outros familiares dela começaram a adoecer. Zanini acha que o teste foi mal feito, mas não sabe ao certo como houve a contração da doença. 

De início, ele tomou hidroxicloroquina por 3 dias. Zanini acredita na eficácia desse medicamento, pois assistiu entrevistas e concluiu ser positivo o uso. Ele contou que teve que cuidar mais da esposa, e que nunca tinha precisado dar tanto apoio a ela quanto nesse momento. Na relação com os filhos, ele sente que os filhos encararam como se fosse algo leve, pois Zanini estava bem. Sua recuperação foi rápida e dentro de 15 dias conseguiu retornar ao trabalho. Mas, ao verem a mãe pior, se aproximaram mais para apoiar. 

Para ele, a covid-19 foi uma doença desconhecida: “eu vi na China e quando vi já estava aqui. Quando você está vendo na televisão, parece que não vai chegar aqui nunca. Está lá em Marte e eu estou em outro lugar”. Zanini conta que começou a ler sobre a doença, mas muito do material que foi escrito, a seu ver, tinha um viés político e muitas notícias falsas. Esses pontos fizeram ele se afastar um pouco da busca de informações para voltar a buscar depois de certo tempo, quando havia informações mais “consolidadas”.

Partindo do ponto de vista profissional, Zanini compartilhou que no início da pandemia chegou na clínica da família um homem diabético, taquidispneico, e ao aferir a oxigenação o oxímetro mostrou 87% de saturação. A ausculta pulmonar não mostrava alterações. Zanini levou o paciente para a sala de observação, mediu a glicemia, para confirmar que o quadro não era consequência da glicemia descompensada. Ao aferir de novo a oxigenação, estava 97%, o que fez ele liberar o homem. No dia seguinte, a chefe de Zanini ligou para ele e disse que o homem deu entrada no pronto socorro com a respiração descontrolada e faleceu. Zanini contou que isso o marcou muito, pois naquele momento não havia condutas específicas para lidar com a covid-19. Ele disse que, com o tempo, se tornou mais fácil o reconhecimento dos casos.

Ao voltar a trabalhar, após o adoecimento por covid-19, Zanini contou que sentiu um cansaço físico por uma semana, quando se recuperou plenamente, voltando a trabalhar normalmente. Quando ele retorna a atender na clínica da família, passa a atender pacientes que não tinham covid-19. Ele diz que do ponto de vista profissional, começou a perceber como a pandemia influenciava a população que não estava doente, deixando-as ansiosas. Ele compartilhou sobre uma senhora que chegou a ir 4 vezes à clínica da família com crises de ansiedade, que pareciam sintomas gripais da covid-19, e isso confundia a equipe.

Zanini disse que voltou a buscar informações sobre a covid-19, mas que não tinha certeza da veracidade das informações. Paralelo a isso, ele se mantinha atualizado por meio dos grupos de WhatsApp em conjunto com outros médicos e também pela experiência que foi construindo no decorrer da pandemia. 

Na vivência de Zanini, a atenção primária atuou fortemente junto aos pacientes com covid-19. Uma vez vacinado, durante um tempo, foi o único médico da equipe que trabalhou o dia todo atendendo pacientes sintomáticos respiratórios. Ele contou ainda que faltam estudos robustos para verificar o benefício de medicamentos como a hidroxicloroquina e, por isso, não prescrevia aos pacientes, por mais que ele tivesse tomado: "Você imagina, eu vou passar um remédio para uma pessoa, uma medicação que é questionável, para uma pessoa que não consegue na clínica, que vai ter que comprar […] eu posso causar um problema. E se eu faço isso e realmente não é tão forte a influência dessa medicação?”.

Ele relatou que na clínica da família era uma luta constante contra um “inimigo invisível”. E ele percebeu como os colegas lidavam com a situação. Diz que após receberem a vacina, muitos sequer usavam os EPIs, como luvas, máscaras: “além de colocar a pessoa em risco, colocava outras pessoas em risco”. Ele relatou que sabia que ao chegar em sua sala tudo estaria contaminado, pois os colegas não tinham o cuidado necessário com a assepsia. 

Ele também nos contou sobre os pacientes. Diz que muitos tinham medo, ansiedade e iam várias vezes à clínica. Ele compartilhou sobre um caso em que ao dar o diagnóstico para um paciente e dizer que ele necessitaria se afastar, o paciente diz que mesmo com um atestado médico, o patrão o demitiria e que não poderia faltar no trabalho. Mas, Zanini alertou sobre o perigo de contaminar outras pessoas, além do fato de ele poder piorar. Ele contou: “elas se sentem mal por não poderem ir trabalhar, com medo de perder o emprego, mesmo estando com um quadro suspeito da doença. Ou seja, como esse regime, de certa forma, é escravizante para a mente humana.” 

Zanini vê também uma mudança no padrão do entendimento da doença por parte da população. Na sua experiência, conta que no início, muitos pacientes da clínica achavam que a covid-19 era “doença de rico” pelo fato de ter chego no Rio de Janeiro em um bairro de classe média/alta - Barra da Tijuca, mas ele diz que com o tempo, a percepção mudou, quando a doença passou a afligir todas as classes sociais. Inclusive, no início achava-se que também era uma doença de idosos, e com o tempo também se notou que não existia esse padrão.

O médico fala que quando as vacinas foram lançadas, ele foi mandado para uma clínica de idosos para vaciná-los. Ele conta que na clínica prepararam uma recepção de agradecimentos para os profissionais que fossem vacinar. Ele compartilhou que as pessoas ali estavam ansiosas pela vacina. Um senhor, após tomar a vacina gritou “viva o SUS” e isso comoveu Zanini. E essa reação positiva o fez querer tomar a vacina também.

Zanini foi chamado para vacinar no Parque Olímpico da Barra da Tijuca. Diz que foi muito bem estruturado, porém, ele percebe que pelo bairro nobre em que estava, muitos exigiam tomar a vacina, mesmo que não fossem do grupo da vez. Outro ponto que ele ressaltou é que há pessoas que iam sozinhas, outras iam com a família completa, outras iam com animais de estimação. E a reação das pessoas são as mais diversas. Ele também conta que muitas pessoas filmavam todo o processo. Houve aqueles que se negaram a tomar determinada vacina por conta de efeitos adversos. Houve ainda absenteísmo da segunda dose e ele trouxe o ponto de que houve uma discussão sobre a obrigatoriedade da vacina. O médico contou que não enxerga a vacina como a salvação. Mas, sente que é um fator importante para a resolução da pandemia.

Como mensagem ao profissional da saúde, ele acredita ser importante desfocar da doença, olhar para a pessoa e cuidar da pessoa. E se cuidar ao mesmo tempo. Para a pessoa adoentada pela COVID-19 ele diz que o diagnóstico não é uma sentença. Pelo contrário, é uma luz, uma oportunidade de se cuidar e ser cuidado pela equipe multidisciplinar. Ele finaliza: “Creia que há algo superior”.

 

Caroline, 29 anos, se autodeclara amarela, médica formada há 5 anos, com especialidade em família e comunidade, afirma que teve COVID no início da pandemia em abril de 2020. Ela compartilha: “A vida mudou muito depois disso, principalmente na atenção primária". 

Ela relata que a falta de equipamentos de proteção individual para os profissionais da saúde, a insuficiência de informações sobre o tratamento, além da falta do contato físico entre as pessoas, que para ela era muito importante, tornou tudo difícil naquela época. “estava esperando sempre por um cenário de guerra”. 

A entrevistada compartilha seus primeiros sintomas respiratórios: coriza e perda de olfato, chegando à conclusão que estava com covid-19. Ela afirma que a sensação era de estar com o atestado de óbito nas mãos, se preparando para o agravamento da doença, comenta que ficou muito ansiosa com toda a situação. Ademais, no momento que teve a doença, seu marido estava viajando, e com isto, ao mesmo tempo que sentia a solidão, ela agradecia por ele não estar junto, e consequentemente não ser contaminado pela doença, que era algo muito temido por ela. Esse medo se estendeu mesmo após o tempo de 14 dias de isolamento. Ficou em isolamento na casa da mãe, tomando todos os cuidados, usando máscaras, não saía do quarto e a comida era deixada na porta para evitar transmissão: “era uma sensação de muita vulnerabilidade, junto com a crise de ansiedade". Apesar de ter tido sintomas leves e não ter dessaturado em nenhum momento, ela sentia muita falta de ar, o que gerava nela um enorme desconforto. Durante três meses, a médica relatou que seu olfato ficou muito comprometido, não sentia cheiro nenhum. Em seguida, seu olfato foi aos poucos retornando, mas diferente do que era antes. Felizmente, não foi necessário ser internada, por decisão própria não tomou o "kit COVID", somente dipirona, água e repouso.

No começo da pandemia, Caroline atendeu um grande volume de pacientes com sintomas leves. Em um segundo momento, no pico da pandemia, chegaram pessoas mais graves, as quais muitas delas precisaram ser internadas, e ela afirma “a enfermaria se transformou quase em uma UTI, pois não havia mais vagas na unidade”. Nesse momento circularam muitas informações novas e, além disso, toda semana havia uma atualização diferente do protocolo, o que para ela era muito complicado. Ademais, segundo a médica, uma das suas maiores frustrações foi constatar que as pessoas, de um modo geral, não estavam tomando os cuidados necessários para conter a propagação do COVID. Por outro lado, na atenção primária, assim que foi disponibilizada a vacina, houve um grande alívio para os pacientes e os profissionais da saúde, dado que as chances da doença se agravar estavam sendo reduzidas.

No dia das mães, ela participou de uma videoconferência com sua mãe, este foi um momento de aproximação com sua família podendo aliviar um pouco o sentimento de solidão em que vivia. Ainda assim, somente depois de 4 a 5 meses após a doença, em novembro de 2021, que Caroline voltou ao convívio social pois, como ela afirma, "a saudade apertou”. O marido de Caroline também retornou para casa, e ele e a médica continuaram com todos os cuidados necessários, dado que o marido tem asma controlada e por isso sempre existiu muito medo dele ser infectado, o que não aconteceu felizmente.

Durante todo o processo, ocorreram várias intercorrências que provocaram uma sobrecarga na clínica da família onde Caroline trabalhou na pandemia, e para preservar sua saúde mental reduziu a carga de trabalho. Desta forma, a médica foi para uma unidade com um nível sócio econômico diferente, que não possuía uma demanda tão grande, diferentemente da anterior. Todo o panorama profissional mudou, principalmente quando se passou a realizar os testes para covid-19 dado que, apesar do aumento do número de pacientes que chegavam para ela, a situação não era tão grave, claro que ainda haviam alguns casos graves e outros até chegaram a óbito, mas não eram maioria. Devido a baixa de profissionais, Caroline teve que atuar em muitas frentes, como atender, testar, notificar, orientar e ainda suprir as demandas da unidade. Ela relata que ao invés de diminuir a demanda, acabou aumentando: “acabou que virou uma loucura”. Felizmente, um tempo depois, ocorreram novas contratações, organizaram melhor e o trabalho foi dividido entre todos os profissionais da saúde no local em que trabalhava, o que para ela foi um grande alívio. 

A experiência de Caroline na unidade de internação, na enfermaria, com doentes muito graves, em razão da falta de vagas na UTI, foi muito tenso, ela diz “foi uma maluquice”, pois ela não atuava em um serviço hospitalar desde a sua graduação, uma vez que sua área de atuação é Medicina de Família. Ela compartilha que os pacientes do SUS sofriam com uma enfermaria lotada e até mesmo com um galpão,  com um doente do lado do outro “comparável a cenas de guerra, um ambiente caótico”. Contudo, a médica, ainda assim, afirma que conseguiu fazer um bom trabalho em ambos os cenários. 

Durante toda pandemia, a médica constatou que a COVID é uma doença surpreendente: “em um dia a pessoa estava bem, conversando, perguntando quando ia sair e, no outro dia, com um alto fluxo de oxigênio, precisando ser entubada e transferida para UTI, era uma corda bamba”. 

Um outro aspecto que para ela foi surpreendente, foi a mudança no número de pacientes internados depois que começou a vacinação. A internação acompanhou praticamente a mesma proporção da vacinação, ou seja, reduzindo a necessidade de internação. E é nesse momento que Caroline diz “achei muito interessante e dá aquele aliviozinho, uma esperança, a gente vê, caramba.... Tem uma luz ali no fundo do túnel, foi muito legal, a gente vê a vacinação fazendo efeito e vivenciar tudo isso foi uma montanha russa de emoções”. O maior alívio para ela foi quando as unidades começaram a ser fechadas por falta de pacientes.

Ademais, a experiência com a vacinação, já na atenção primária, também foi uma emoção muito grande: “ lembro quando recebi a primeira dose e a sensação de alívio que dá no peito, me lembro até de falar 'ufa'.“

Caroline compartilha que sua mãe é técnica de enfermagem e comenta que foi uma felicidade enorme para as duas terem se vacinado e toda a família. Além da imensa felicidade em ter muitas pessoas no mundo se vacinando.

Caroline comenta que houveram 3 momentos críticos: o início da pandemia, por não se saber muito da doença e de suas complicações, além de não se saber como tratar certos casos, gerando uma grande insegurança. O 2° momento, foi durante o pico da pandemia (quando houveram 3000 mortes por dia no Brasil), pois além de muitos profissionais que adoecerem, houve uma sobrecarga muito grande do sistema de saúde e de sua jornada de trabalho. Por fim, durante a 2° onda, a falta de recursos e materiais para atender todos os pacientes em tempo hábil era o que mais a afligia. 

Pessoalmente, para Caroline foi muito desafiador trabalhar em um momento de muita desinformação, de sucateamento do SUS, além de ser muito frustrante para ela ver que as pessoas não levavam a pandemia a sério, se aglomerando, não se cuidando, não usando máscaras, e não sendo empáticas com a situação tanto do profissional da saúde que estava sobrecarregado pela maior demanda, como também com as pessoas ao redor que poderiam ser contaminadas. A médica afirma que foi um momento de ressignificar as amizades e até mesmo ressignificar as relações virtuais. 

Caroline também narra que não tiveram pessoas próximas da família que foram a óbito, felizmente. Ela conta que seu pai teve falta de ar, mas que na época não contou a ela. 

Por fim, uma mensagem que a médica deixa para os profissionais da saúde é “a vida na atenção primária é uma montanha russa mesmo, o dia a dia nunca é fácil e o nosso trabalho tem muito valor”, e por isso é necessário não desanimar. Já para as pessoas que estão com a doença, a médica afirma que é muito importante saber entender os sinais que o corpo está dando e como ele está reagindo. Por isso, é muito importante não esperar o quadro piorar e procurar logo atendimento. É muito importante se isolar e saber que o médico sempre será um ponto de apoio. 

 

Mayara, 27 anos, se autodeclara branca, casada, é agente comunitária de saúde do Rio de Janeiro e adoeceu por covid-19 em abril de 2020. Sua contaminação se deve ao fato de atuar na área da saúde, dentro da clínica da família na sua área de residência. Ela relata que antes de ter os primeiros sintomas não tinha medo de ser infectada pela doença, dado que era algo iminente da profissão. Assim, os primeiros sintomas que Mayara relata foram, uma leve dor de cabeça que evoluiu para dor no corpo. Após 3 dias do início dos sintomas, ela diz que não conseguiu se levantar para trabalhar pela forte dor de cabeça. Assim, no dia foi ao médico junto com o marido e os dois realizaram o swap que deu positivo para ambos. Foi recomendado que Mayara e o marido ficassem afastados por 14 dias. Com o passar do tempo, outros sintomas foram aparecendo, como coriza, tosse, perda do paladar e muito cansaço. Somente após 13 dias, utilizando dipirona que os sintomas foram melhorando. 

Depois do isolamento de 14 dias, Mayara retornou ao trabalho, mesmo um pouco cansada. Ela relata que não fez o teste do covid novamente, mesmo querendo fazer, por uma questão de segurança tanto da sua equipe quanto das outras pessoas que ela tinha contato, pois tinha muito medo de transmitir o vírus. Além disso, ela afirma que somente após 1 mês desde o início dos sintomas foi que o cansaço melhorou e que ela pode voltar ao que era antes da infecção. A agente de saúde também narra que durante esses 14 dias, ela e o marido ficaram totalmente isolados, e que isso afetou financeiramente o casal, pois o marido trabalhava como Uber e teve que se abster das suas funções em função do adoecimento. Porém, de acordo com a entrevistada, a sua mãe ajudou bastante o casal, levando comida e mantimentos durante o isolamento. 

Nesse sentido, Mayara afirma que se sentiu muito impotente na época visto que não havia medicação e ainda conta que foi difícil lidar com o fato de ser uma doença nova e pouco conhecida, segundo ela “fiquei bastante angustiada, teve dias que eu chorava, ficava com medo, foi difícil".  Para Mayara, sua opinião sobre a covid se alterou após contrair a doença dado que, segundo ela, “sentiu na pele que era diferente…quando eu perdi o paladar a lágrima desceu na hora”, para ela adoecer foi muito difícil. Sobre as informações da doença ela relata que as pesquisas feitas para ela ainda eram muito confusas na época, pois ainda estava tudo no início. 

Segundo a Mayara, no início da pandemia, não era possível ir nas casas das pessoas e o contato era via telefone, ela afirma que muita gente ainda não acreditava muito na doença e não davam a devida importância, mesmo ocorrendo mortes na região em que ela trabalha. Além disso, poucos pacientes da equipe dela  tiveram o agravamento da doença, porém a demanda era grande, e também  era um momento de muita incerteza com relação ao vírus, somente posteriormente as coisas foram se acalmando. Ela também compartilha que os insumos em geral são bem escassos: “tinha vezes que tínhamos que ficar 15 dias com a mesma máscara", sentindo-se desmerecida e com receio. 

Do ponto de vista emocional, para Mayara ter contraído covid-19 “foi um momento muito delicado” no qual o sentimento de morte era muito presente e uma sensação de impotência e dependência muito grande. Como Mayara estuda enfermagem, ela se interessou muito pela área e isso a impulsionou a procurar mais sobre a doença após já ter contraído covid-19.

Com relação ao diagnóstico, a reação dos familiares foi um pedido para que Mayara mudasse de profissão pois tinham medo dos riscos que ela corria atuando como agente comunitária da saúde, mas muito decidida sobre a carreira, negou sair de sua ocupação. Dessa  forma, uma maneira de amenizar o medo da família foi por meio de realizar vídeos chamadas continuamente, mantendo o contato para tranquilizá-los. 

Em relação ao futuro, após a recuperação da doença Mayara afirma que tudo voltou ao normal. Um conselho da entrevistada para os pacientes que acabaram de receber o diagnóstico de covid-19 é: “se cuidar e fazer o isolamento social… ter fé que isso tudo vai passar”. E um conselho para os profissionais de saúde é: “usar os equipamentos de proteção…ser humano e não julgar". Além disso, um conselho para os familiares é “evitar sair de casa pois o vírus é real”.

 

Maria Aparecida, 50 anos, casada com um filho de 27 anos, enfermeira há 13 anos, se autodeclara preta, atuante na Estratégia de Saúde da Família e também na área hospitalar pública, foi entrevistada em 14 de julho de 2021. Ela nos relata a experiência de trabalho durante a pandemia COVID-19, sem ter sido contaminada pelo vírus: “Nossa, eu nem gosto muito de me lembrar (...) Você tem que atender. A gente lendo, procurando informações e indo à luta mesmo. Indo para o campo, para batalha, praticamente.”

Maria Aparecida relata que na unidade hospitalar pública onde trabalha muita gente teve COVID ao mesmo tempo, a ponto de não ter quem cuidar dos doentes, pois não havia ninguém para substituir.  Foram apenas 4 pessoas, incluindo ela, que não tiveram COVID. Duas colegas da área hospitalar tiveram COVID após a vacina CoronaVac e uma técnica de enfermagem foi internada e entubada e posteriormente faleceu.  Um enfermeiro e amigo da entrevistada que atuava na Estratégia de Saúde da Família da AP 5.1 foi o primeiro óbito próximo que teve. Ele era diabético e estava na linha de frente, atuando na ponta, e foi contaminado em atendimento. Aparecida relata que em sua família ficava todo mundo trancado dentro de casa. Mora só ela, o marido e o filho. Ninguém em casa teve COVID. Quando foi decretado o lockdown ela estava com uma visita do Nordeste que ficou presa, não podia ir embora, porque não tinha vôo, não tinha nada.

 “Todo mundo tinha medo de mim, eu era a pessoa que ia para rua, ia para Clínica da Família e ia para o hospital, então eu já saía de lá sempre de banho tomado, eu nunca vinha sem mas chegava aqui tomava um outro banho, e eles ficavam cada um nos seus quartos e evitava ao máximo estar circulando também junto com eles. Ou eu dormia na sala ou num quarto separado. Eles não se misturavam comigo não, ninguém”. Demorou muito para essa situação passar, até maio, junho.

 “Meu marido morria de medo. Eu acho que ele ficou até com pânico. Eu senti que abalou muito. Eu não sei se era porque ele tinha amigos fora do Brasil que passavam a situação do que estava acontecendo por telefone... E eu acho que ele ficava vendo aquilo tudo na televisão. Se alguém botasse o pé, descesse para buscar uma correspondência na caixa do correio, ele já brigava, ele não queria. Era uma coisa assim absurda. ‘Ninguém vai sair’. E quem ia ao mercado, quem ia trabalhar, que fazia tudo, era eu, porque eu era a pessoa que estava na rua então, eu tinha que fazer tudo. Ninguém saia de casa. E teve uma época que ele ficou trancado mesmo. Vinha pegava comida e entrava lá para dentro do quarto. Parecia até que estava com COVID de tanto medo que ele ficou.”

 Seu filho faz faculdade e atualmente voltou a frequentar o curso.  Seu marido é aposentado e trabalhava no laboratório de prótese dentária. Quando o COVID começou seu marido deixou de ir porque ele não queria andar de ônibus e atualmente só sai em extrema necessidade.  

“Meu filho sempre dizia assim ‘mãe, cuidado, presta atenção. Todo dia que eu tava de plantão, ele passava uma mensagem quando eu saía de casa: ‘mãe cuidado’; ‘pelo amor de Deus, você tem família’. Isso às vezes deixa você meio temerosa, mas depois que você chega para trabalhar não tem isso não, é arregaçar a manga.

 A profissional refere que as principais questões no começo da pandemia foram muita insegurança, falta de organização, desconhecimento da doença, falta de equipamento de proteção individual (EPI). Segundo ela, inicialmente, todos os profissionais tinham que ir para a linha de frente fazer o acolhimento dos usuários sendo posteriormente montados grupos específicos. Ela refere que no começo estava com muito medo pois não havia fluxo de trabalho definido. “A coordenação chegava e falava uma coisa, aí a gerência falava outra”. Em março de 2020, Maria Aparecida foi transferida de sua Área Programática (AP) que ficava na Zona Oeste do Rio de Janeiro e atribuiu o fato de não ter sido contaminada pela doença à essa mudança. Nesse novo local havia mais recursos como Equipamento de Proteção Individual (EPI), contudo com disponibilidade limitada, o que fez muitos profissionais comprarem do seu próprio bolso para se proteger.  Na nova unidade sentiu-se mais segura mas admite: “Medo a gente tem.”  O período de maior demanda foi em abril de 2020, novembro e dezembro do mesmo ano. Segundo Maria, entre agosto e setembro foi um momento de maior tranquilidade. 

 No começo os enfermeiros assumiram junto com os médicos os atendimentos na sala de covid-19. “Nesses turnos eram 100, 120 atendimentos. A cada instante aquilo ia aumentando e quando os resultados começaram a chegar eram todos positivos. Todos os resultados positivos. Isso começou a dar um certo temor”. Com isso a equipe também começou a adoecer. As preocupações eram muitas, como as saídas de ambulância, a falta de máscara para oxigênio, falta de material para intubação, a falta de treinamento dos profissionais para atuar numa parada cardíaca, que felizmente não ocorreu em sua unidade.

 A impressão da entrevistada era que: “Muitas pessoas com nervo à flor da pele mesmo. Desestruturadas, choravam, brigavam, quando vinha o resultado e era positivo, parecia que estavam enxergando assim a morte, né? Já vinham chorando e com tremores. Por mais que dissesse ‘mas não é um diagnóstico de morte’. A resposta era ‘mas não quero estar com essa doença’. Cada um tinha uma experiência difícil. Esse quadro melhorou um pouco já na segunda onda, não estavam mais tão temerosas, não sei se porque já tinha algum tempo de pandemia, e as pessoas já estavam sabendo mais ou menos da situação, mesmo vendo a quantidade de óbitos. Não tinha mais tantos idosos como vimos no começo. Tinha gente, mas não era assim como no começo. Era algo assim mais natural. A gente recebia famílias: mãe, pai, tia, todo mundo chegando para fazer a avaliação. Cada um se comportando de uma forma e isso ficou muito característico, do emocional muito abalado.”

 Quando questionada sobre o atendimento de pacientes graves, em um local de atenção primária à saúde, relembra que “(...) foram muitos saturando a 69, 70%... Tem que chamar a ambulância correndo, vaga zero,  ficar ali do lado, o tempo todo... muitos muitos muitos. E não voltaram. Muitos não voltaram, né.” Maria Aparecida relata que os agentes de saúde eram os primeiros a saber do falecimento dos pacientes, se a família não comparecia, a equipe ia até eles. Quando o telemonitoramento não conseguia contato, a equipe também era responsável por buscar essa informação, como nos casos de internação de pacientes graves, que por vezes não tinham família. Ela compartilha que foi criado uma planilha na unidade que trabalhava, com os óbitos no território de cada equipe, para poder quantificar a evolução da doença na comunidade.  A partir desses dados, em meados de maio e junho de 2020, foram identificadas as áreas de maior risco, nas quais a enfermagem e os residentes compareceram em espaços que são referência na comunidade como as igrejas, escolas, creches e na associação de moradores para divulgar orientações sobre o uso da máscara, lavagem das mãos, uso do álcool gel, o uso do EPI e para divulgar a questão do isolamento, posteriormente tornando-se rotina na comunidade:  “A gente entende que é um pouco difícil porque as casas são muito coladas, muito juntas umas das outras né.  A maioria dos usuários são muito idosos que não saíam de casa, mas que os filhos iam e voltavam. O baile na comunidade não parou em nenhum momento. Até hoje ele continua acontecendo né. Poderia ter sido melhor, mas faz a diferença, sempre faz a diferença,” avalia”. Além da residência médica havia os alunos da graduação em medicina que tiveram as aulas suspensas e ficaram trabalhando online, alimentando os dados na planilha e fazendo telemonitoramento, orientando os pacientes a retornar a unidade para avaliação em caso de sinais de alarme. Houve teleconsulta também, mas não foi implementada desde o início, somente a partir de junho ou julho de 2020.

 Maria Aparecida relata que Inicialmente, os exames estavam demorando entre uma semana a 15 dias para sair o resultado devido ao grande volume de usuários A comunicação do diagnóstico era um momento difícil pois era orientado sobre isolamento social e muitos não cumpriam: “Olha, o senhor tá em isolamento social. Vai ficar tantos dias em casa. Não pode sair(...)”. “(...) não pode aglomerar, vamos fazer o distanciamento mas parece que as pessoas esquecem, e quando você vai ver tá todo mundo junto.”  Foi então que foi separado o terceiro andar da unidade apenas para atendimento de COVID, como tentativa de não prejudicar as demais linhas de cuidado, retomados apenas com os grupos prioritários. A preocupação maior eram as gestantes, as crianças e os hipertensos, diabéticos, pacientes com risco cardiovascular mais avançado e muitos destes perderam o seguimento. Os que permaneceram não tinham como receber um atendimento completo, apenas eram renovadas as prescrições, e com isso muitos descompensam. A gerência dos processos foi perdida, no sentido de que os atendimentos eram realizados sob demanda, independente da equipe, que é uma forma diferente para quem está acostumado com a estratégia de saúde da família, por conta da questão do vínculo com a equipe, de conhecer o território e conhecer seu usuário.

“Segunda-feira, quando a gente chegava para trabalhar, você não conseguia passar no corredor. Eu não sei se porquê as pessoas não queriam ir para emergências. E aí acabavam esperando o final de semana passar para acessar a unidade. E assim sempre muito cheio.”

A entrevistada compartilha o número expressivo de  usuários que começaram a fazer tratamento medicamentoso e/ou terapia, sobrecarregando a unidade que já não estava dando conta dos demais pacientes crônicos, como hipertensos e diabéticos. “Fazendo um atendimento comum, usuário [era] hipertenso, ele começava a chorar na sala: ‘eu perdi meu emprego’, ‘eu perdi meu parente’, ‘eu perdi um amigo’, ‘meu casamento não tá bem depois do covid’ ou ‘eu sofri violência’”. Isso tudo desorganizou várias famílias”. O número de casos de violência doméstica também aumentou muito. Ao relatar sobre o protocolo de atendimento, este estava em constante evolução: “Uma orientação que a gente dava a um paciente num determinado momento, no momento seguinte já não estava valendo de mais nada, já era outra coisa e isso deixava todo mundo desestruturado, né?!”. Os protocolos utilizados eram sempre de acordo com o Ministério da Saúde. 

Maria Aparecida nos conta que os pacientes não se conformavam com determinados atendimentos, buscando outros locais para conseguir prescrição desejada ou repetiam o teste por achar que o resultado sairia mais rápido. Até hoje os usuários solicitam medicações específicas: “ah eu quero um antibiótico”, “eu quero ivermectina”, “eu quero isso, porque isso é melhor.”  Houve muita divergência.  Segundo ela, a ivermectina foi o auge, a principal substância solicitada, já a cloroquina foi menos frequente. Com o atendimento de pacientes advindos da rede particular, houve conflitos e uma série de reclamações, devido a prescrição de outras medicações, e a comparação entre os setores: “por que não tem [a medicação] ?”; “porque vocês não prestam!”; “vocês não sabem nada!”; “(...) porque eu fui no particular, eu fui no outro lugar e consegui mas aqui vocês não querem passar”.  A chegada do teste do antígeno ajudou bastante devido a rapidez do resultado, certas situações ficaram mais fáceis de serem manejadas 

 Sobre a questão da vacina: “Vacinar toda essa população e tanto questionamento, tanta coisa, tá sendo até hoje muito difícil! Um desgaste, todo dia a gente pergunta quando é que isso vai melhorar, porque a equipe só não trabalha domingo. No começo da vacina toda a equipe trabalhou no carnaval e todos os feriados.” Atualmente há um rodízio aos sábados. Ela compartilha que: “o principal problema da vacina é a questão da idade. Por vezes o usuário não está no momento para fazer a vacina, nem sempre é simples fazê-lo entender as condições para recebê-la: estar dentro da faixa etária, estar bem de saúde e não ter tido COVID recentemente”. “(...) Você faz uma anamnese e o paciente omite.” Se ele tem uma reação adversa ele tem que voltar na unidade para fazer a notificação, e muitas das vezes, eles não retornam até o momento da segunda dose, já assintomáticos.

“Tem vacina aí mesmo?”, a desconfiança é outra situação recorrente, muitos duvidam que a vacina foi realmente aplicada. Apesar de aspirar, demonstrar, explicar, as pessoas estão preocupadas em tirar foto, muitas vezes deixando de prestar atenção no que foi dito e realizado. A vacina é segura, afirma, porém enfatiza a necessidade do uso de máscara e higiene das mãos, pois já presenciou colegas com quadro de COVID pós vacina, a maioria de uma forma branda, mas também casos graves, incluindo um óbito.

 Maria Aparecida também compartilha sobre sua experiência hospitalar e destaca a tristeza. “É uma solidão muito grande. Você deixar o paciente dentro daquele quarto, naquela situação de isolamento, é muito chocante. Para a gente da enfermagem que está ali o tempo todo, um paciente dentro do quarto, seja onde for, ver um tipo de óbito desses, dói muito. Isso acho que abalou demais a toda a equipe, isso dói demais, você querer estar ali, querer fazer algo mais e você vê que não pode, você não tem como, foge das suas mãos, foge do seu potencial para você fazer algo mais do que você já fez”.

“Tem boletim médico, durante o dia, tem o celular que a gente mostra e fala, mas quando a internação é longa e o paciente talvez já não esteja mais contaminando, a gente faz uma visita guiada, que a gente coloca o capote na família, bota a máscara. Mas a família vai toda paramentada, não entra sem paramentação não. Ameniza a angústia da família”.

 Quando questionada sobre alguma situação crítica, recorda-se da primeira intubação do paciente com COVID a qual participou, e a equipe não estava preparada. Foram muitos pensamentos: “gente to com máscara?", “to com faceshield?”,  “Ai meu Deus, vamos abrir a janela”, “Vamos abrir as portas”. “Então, como é que vai ser? Meu Deus! Vamos entubar e tá todo mundo contaminado aqui.” “Mas aí, a coisa fluiu, e não adianta a gente tem que entrar. É lógico que melhorou muito. Hoje em dia, uma intubação é rápida com mais segurança, não é com tanto medo, é uma coisa mais tranquila, mas no início era uma coisa assim apavorante. ‘Meu Deus, como é que faz para conseguir, não tem medicação para intubar direito. Como é que a gente vai fazer? O que que a gente vai usar?’”.

 Na unidade básica não havia máscara de Venturi, então se usava máscara comum ou de macronebulização, que não é indicada para esses casos. “Então você vai colocar, não vai colocar? E aí o que que você vai fazer? Eu vou colocar, não vou deixar de colocar de jeito nenhum. E aí a gente colocava e abria a janela”. “A nossa arma era sempre abrir a janela. A gente colocava e abria a janela, e ficava olhando não de muito perto. Dando certo, tudo ok, saturou bem, vamos lá. Agora vamos entrar, vamos fazer as medicações, vamos fazer o que tem que fazer. Isso no início em que não tinha capote adequado, o capote era de pano, até o capote descartável chegar demorou muito! E assim nós passamos por isso, muitas situações, para poder atender ao paciente, se ver mais em risco”.

 Por fim, para o profissional de saúde recomenda calma e tranquilidade, seja ele na na estratégia de saúde da família, seja ele na área hospitalar. A família, o cliente, o usuário em primeiro lugar. “Só acho que a gente tem que ter primeiro de tudo, a calma e paciência e discernimento. Eu tô aqui. Que que eu tenho que fazer? Como é que eu vou cuidar?”. 

 

Caio, 30 anos, se autodeclara branco, médico de família e comunidade localizado em Rio das Pedras, Rio de Janeiro, formado há 7 anos, é casado e, assim como ele, sua esposa adoeceu simultaneamente, tendo também sintomas de covid-19. Caio confirmou o diagnóstico a partir da realização de teste de PCR, na primeira semana, após ficar sintomático, e com o teste sorológico na segunda semana. Nos primeiros dias, tiveram mal-estar, diarreia, febre, que progrediram para uma fraqueza intensa e fortes dores no corpo. Não sentiram falta de ar. Ele julga que o cansaço foi uma das piores manifestações da doença “Eu olhava para o teto cansado. Algo surreal. Cansava de ver televisão”. Além disso, subitamente também houve perda de olfato e paladar, o que diminuiu muito a vontade de se alimentar e também de cozinhar, atividade que lhe traz muita satisfação.

No total, o médico realizou 14 dias de isolamento. Durante esse período, contou com a companhia  de sua esposa e com uma rede de apoio composta de amigos fiéis e familiares. Seus pais e sogros iam lhes visitar a fim de levar refeições. Eles não entravam na casa, ficavam somente na porta, afastados e utilizando máscaras. Caio acredita que esse tenha sido um momento muito difícil para sua família, principalmente para sua mãe. Ela passou por um momento traumático, quando, ainda criança, Caio  desenvolveu pneumonia e ficou 27 dias internados no hospital. Além disso, Caio também tinha histórico de tuberculose, outra doença que afeta as vias respiratórias.

Em abril de 2020, a pandemia de covid-19 ainda estava nos seus momentos iniciais, e o mundo tentava se preparar para lidar com as consequências e imprevisibilidades provocadas pelo novo vírus circulante. Foi nesse mesmo momento que ele  começou a sentir os primeiros sintomas da infecção pelo coronavírus. Ele atuava também como preceptor de residentes de medicina na unidade e, junto à sua equipe, tornou-se referência no manejo de pacientes com covid-19. Através do excelente trabalho, assumiu a condução do tratamento de indivíduos com sintomatologia mais grave da doença. Foi nesse cenário, exposto a alta carga viral, que o doutor acredita ter sido infectado.

Caio conta que, no sexto dia de progressão dos sintomas, sentiu que seu quadro se agravou, assim como o de sua esposa. Desse modo, a partir de conversas com um  grande amigo- também médico- e de seu próprio discernimento, decidiu fazer uso de Cloroquina, Anitta e Azitromicina. Segundo ele, a única das medicações que lhe causou efeitos adversos foi o medicamento Anitta, pois acentuou a sua diarreia. Apesar desses medicamentos não terem comprovações científicas de efeitos benéficos em humanos para tratamento de covid-19, Caio achou que os resultados in vitro eram relevantes e resolveu testar em si mesmo esta alternativa. Ao dialogar com a sua esposa sobre o tratamento, ela decidiu não ingerir cloroquina com receio de que os efeitos adversos fossem atrapalhar uma futura gravidez do casal. Após realizar o uso das medicações, Caio sentiu-se mais confortável em posteriormente prescrevê-las aos pacientes, se necessário.

No 14° dia, Caio estava sentindo-se melhor dos sintomas, em geral, e começou a se preparar para voltar ao trabalho na clínica. Essa movimentação causou grande preocupação em seus pais, que desejavam que o filho não mais tivesse exposição ao vírus. Caio voltou gradualmente ao seu posto de trabalho. Ele conta que no início seu raciocínio ainda estava muito lentificado. “Eu não tava com a rapidez que eu tenho agora, sabe? Para resolver as situações, reunião daqui, reunião dali.”, relata. Acredita que somente após um mês, sua recuperação foi total.

A espiritualidade foi um fator central na passagem de Caio pela doença. Pouco antes de ser acometido pela covid-19, ele e sua esposa passaram pela dolorosa experiência de sofrer um aborto espontâneo, fato que abalou muito o casal. Em momentos subsequentes, o médico teve uma experiência diferenciada na sua fé, o que o permitiu atravessar a circunstância do adoecimento com mais segurança de que tudo aconteceria como deveria ser, com propósito. Ele enfatiza sobre a COVID: “Não foi um marco na minha vida. Eu entendi como um dos obstáculos que eu precisei passar”.  Aos sábados, realizava cultos online e entende que a oração dos companheiros o ajudou muito na sua recuperação.

Caio aconselha aos profissionais de saúde que centrem o cuidado nos pacientes, dividindo com eles angústias do prognóstico. Ainda ressalta que nenhum tipo de evidência vai ser mais valioso do que a experiência do indivíduo. Ademais, ao refletir sobre o futuro, o médico não demonstra medo quanto à evolução da doença na população. Acredita que em algum momento a doença se tornará endêmica e que em momentos fora da pandemia a letalidade não será grande.

 

 

Márcio, 34 anos, se autodeclara pardo, médico formado há 10 anos, é especializado em medicina de família e comunidade, é casado e tem 2 filhos. Desde o início da pandemia, ele participou ativamente na linha de frente da covid-19 na clínica da família em que trabalha. Compartilha que positivou para a doença em junho de 2021, mas sua esposa e seus dois filhos não foram contaminados. Seus sintomas foram leves, duraram 5 dias e ele os caracteriza como “sensação de gripe”. Contudo, relata ter tido dificuldade de foco e concentração aproximadamente 30 dias após a doença, além de comprometimento da memória recente. 

Em fevereiro de 2020, quando foi declarada uma nota oficial do Ministério da Saúde sobre o coronavírus, alega ter ficado preocupado devido ao desconhecimento mundial acerca desse vírus. Mesmo com todo receio, a equipe da clínica da família na qual ele trabalha teve bons resultados de organização e monitoramento. Além disso, nenhum funcionário da sua unidade foi a óbito. A intensificação das testagens em sua clínica iniciou em agosto de 2020, com o teste de anticorpos. Pouco depois desse período, foi introduzido o PCR. No final desse mesmo ano, dobrou o número de atendimentos de covid-19, segundo Márcio. 

O entrevistado comenta que a fase de maior desgaste foi durante o início da vacinação, pois muitos queriam se vacinar mesmo não fazendo parte dos grupos preferenciais: “quando os critérios não são muito claros, deixa o profissional de saúde mais exposto”, justificou sua dificuldade. Quanto à escolha do tipo da vacina, não foi uma questão prevalente em sua unidade: “não é a maioria dos casos que as pessoas escolhem a vacina. As pessoas brigam mais pra tomar do que pra não tomar”. Esse período também foi importante para a equipe desenvolver uma maior articulação com a comunidade por meio de tecnologias. Os agentes comunitários de saúde foram um intermediários excepcionais entre a clínica e a comunidade, enfatiza o Márcio. Segundo ele: “eles [os agentes de saúde] são multiplicadores, multiplicando informações para outras pessoas”.

Para Márcio, o maior desafio da atenção primária, é o realinhamento, já que existem outras demandas que ficaram secundárias diante do aparecimento da covid-19, como por exemplo: tuberculose negligenciada, diabetes descompensada e transtornos mentais não-tratados, sendo essas questões intensificadas durante o advento da pandemia. 

 

Clara, 32 anos, médica de família e comunidade formada há 8 anos, mãe de uma menina, adoeceu por COVID-19 em 2022, vacinada com as 4 doses da vacina. Sua experiência de adoecimento foi leve por conta das vacinas e já esperado, mas sua surpresa foi o quão tarde se contaminou, por estar na linha de frente.  Seus sintomas foram febre e dor no corpo. 

Ela compartilha que no início da pandemia, pensava que seria apenas uma gripe mas que infelizmente foi algo totalmente diferente e avassalador. Diante do desconhecimento da doença, havia um sentimento de impotência, Clara relata que os protocolos não permitiam analisar a garganta das pessoas e simplesmente isso foi um impasse grande para se adaptar para as necessidades e precauções do período. Como médica da família e comunidade, têm maior contato com a população do território e percebeu várias perdas. Com toda a situação, ela começou a perceber a finitude da vida, e nesse momento começou a se questionar se deveria ter um filho, principalmente ao pensar em seus pais, que já são idosos e que a qualquer momento  algo nesse período tão caótico. 

Ao final do ano de 2020, depois de ter passado por todos os preparatórios, descobriu que estava grávida. Além disso, durante a sua gravidez teve diversas questões em relação ao seu trabalho e à vacina. Clara comenta que tinha diversas dúvidas em relação à vacina para gestantes, como também a parte burocrática em relação a seu serviço no qual estava em uma fase não sendo considerada profissional da saúde. Depois de um tempo ela conseguiu ser vacinada e a sensação foi de alívio, mas também de pavor, já que recebeu a informação de uma gestante que morreu dois dias após ter tomado a vacina.

Assim que passou a primeira onda, ela começou a trabalhar na Rocinha, no ano de 2021, em uma situação totalmente diferente, já que nesse momento as pessoas estavam praticamente todas vacinadas e havia os equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados, mas não sabia o que estava por vir.  Desse modo, Clara começou a achar estranho ainda continuar atendendo tantos casos de síndrome gripal, mas não sabia que estava lidando com um surto de influenza e que posterior a isso viria uma nova onda de COVID com uma nova variante.

Por fim, Clara nos conta que após o nascimento da sua filha as visitas foram totalmente restritas pois temia que algo acontecesse a sua filha, principalmente a contaminação do vírus. Sua vida não teve muita mudança pois não convivia com os amigos desde o início da pandemia, tendo que ter se adaptado ao seu ‘’novo normal’’.

   Katia Brito, é enfermeira, formada desde 2018. Hoje ela atua na zona sul do Rio de Janeiro na CMS Pindaro de Carvalho.  Ela conta que vivenciou de perto a pandemia, visto que ocorreu logo no seu primeiro ano de residência, a qual foi realizada na Comunidade da Rocinha.   

   Ela inicia relatando que acha que não contraiu covid-19, dado que não teve sintomas e nem realizou testes, visto a falta de disponibilidade de testes  no primeiro ano da pandemia. Kátia relata sobre sua experiência de adoecimento como um medo constante com relação ao Covid-19, visto que a enfermeira conta que tem intensas alergias medicamentosa e não pode tomar qualquer medicamento, ou seja, Katia demonstra que na época vivia um medo constante tanto da morte quanto do possível sofrimento que o processo de adoecimento podia lhe causar. 

   Assim, depois de um ano, Kátia afirmou que teve Covid-19, por volta do final de novembro de 2021, e seus sintomas foram febre alta durante alguns dias, tosse, que persistiu por 12 meses, queda de cabelo, e alguns casos pulmonares decorrentes do caso dos sintomas prolongados. Além disso, devido a sua condição de saúde, de graves alergias, não podia se medicar o que lhe trouxe muito desconforto, somando-se a baixa autoestima, dado que a queda dos cabelos foi uma experiência pessoal muito ruim. Ou seja, para a enfermeira, a Covid-19 interferiu de diversas maneiras na sua vida, para além do processo de adoecimento. 

   Além disso, Kátia, que participava da linha de frente durante a pandemia, visto que trabalhava, e ainda trabalha na atenção primária relata que o medo pelo desconhecido era muito presente na época. outra questão que ela coloca é a enorme demanda que tinha na época, visto que ninguém sabia muito sobre a Covid-19 e os pacientes chegavam na clínica em busca de orientações sobre a doença, segundo ela: “teve um dia que eu tive que dar mais de 120 orientações para pacientes em um único dia ”. Dessarte, toda essa demanda, lhe causou um cansaço físico e mental muito grande na época que acabou resultando em um processo muito angustiante. Outra situação, de acordo com a profissional da saúde, foi a preocupação quanto à possibilidade de haver uma falta de equipamentos de proteção individual, que muitos colegas de trabalho relataram essa falta em determinados postos de saúde, juntamente com o sentimento de abandono e desamparo que o próprio governo acabou transpassando na época para muitos profissionais da saúde.

    Ademais, Katia compartilha que receber a vacina em 2021 foi “um suspiro de alívio” pois, apesar de toda a repercussão negativa ao redor do Covid-19 e da vacinação a chegada da vacina foi um momento muito importante mas ao mesmo tempo, por trabalhar na vacinação, todo esse momento foi muito cansativo, novamente, tanto fisicamente quanto mentalmente, pela alta demanda da população. nesse sentido, a enfermeira relata de forma muito pesarosa, que o momento pré-vacina e pós-vacina, foram os dois momentos de maiores tensões e exaustão em que passou durante a pandemia, como profissional de saúde.

   Os pontos positivos durante todo o processo da pandemia, consoante Kátia, foram, que na época, as pessoas levavam cartazes para as filas de vacinação e teve um cartaz que a marcou muito, no qual uma menina estava segurando um cartaz com a foto do pai que tinha   falecido a menos de um mês e estava escrito: “essa vacina é pra você! Estou tomando a vacina que você não teve a chance de tomar!”. Assim, esse momento a marcou de forma muito profunda, e ela diz que nesse momento ela se colocou no lugar dessa menina e sentiu de forma muito empática o que a menina sentiu, ou seja, todo o sentimento de perda e angústia a tomaram conta. Porém, em contraponto a esse momento, ela relata que um senhor que se dizia médico, falou para a profissional: “finge que você está aplicando a vacina em mim!” pois ele precisava da vacina para viajar e não queria tomar a vacina pois não acreditava na sua eficácia, ela relata que no momento em que o senhor lhe disse isso, ela não paralisou e ficou sem reação, embasbacada com toda a situação. quando voltou a si, ela pediu que o senhor se retirasse da sala, pois ela não iria fingir dar a vacina. muito contrariado o senhor aceitou tomar a vacina, somente porque precisava dela para viajar. Em suma, para a enfermeira, o momento da pandemia foi um momento no qual ela viveu diversas experiências, que a marcaram tanto positivamente quanto negativamente. 

   Outro cenário, vivenciado pela enfermeira, foi em 2022, durante a onda da Omicron, no qual houveram um grande número de casos na cidade do Rio de Janeiro e, assim, kátia afirma que muitas pessoas voltaram a procurar a vacina e também realizar testes. 

   Para Kátia, o que mais a chamou a atenção enquanto profissional da APS foi a grande comoção em torno da tentativa de vacinação de toda a população, o cuidado com pacientes que tiveram a Covid-19 e também para aqueles que tiveram sequelas advindas do Covid. O que para ela, foi uma experiência ruim, foi que todo esse cuidado durante a pandemia com o Covid, acabou interferindo no cuidado com outras doenças, provocando a secundarização de alguns cuidados, como por exemplo o cuidado na primeira infância, o cuidado com a tuberculose, o cuidado com doenças mentais entre outros. Ela até afirma que a pandemia também interferiu muito no quadro de doenças mentais, sendo possível observar sequelas muito negativas de todo o processo de isolamento social. 

   Como profissional da saúde, os maiores impactos, observados por Kátia, no território tanto enquanto trabalhava na rocinha, quanto durante o atua trabalho na CMS Pindaro, ‘e a questão da longitudinalidade, ou seja, o conhecimento pessoal da população que ela atendia de perto era muito grande, e por esse contato próximo, a pandemia acabou provocando muitos óbitos no território onde ela trabalhava. Então uma coisa que ela relata de forma muito sentimental é a lembrança de todas essas pessoas que haviam falecido devido ao COVID. Outra questão muito colocada durante a entrevista, foi a solidão e a depressão de muitas pessoas que ela acompanhou e ainda acompanha. Ou seja, a presenca da morte iminente, o sentimento de luto e a solidão são algo muito comum em ambos os territórios em que ela trabalhou e ainda trabalha.

   Para finalizar, Katia fala sobre a desvalorização da sua profissão como enfermeira e enfatiza a importância da enfermagem para o cuidado de toda a população, que a pandemia acabou, momentaneamente fazendo para a categoria. Ou seja, ‘é imprescindível valorizar qualquer profissional da saúde e, Katia intensifica a necessidade de mostrar a importância desses profissionais de saúde. 

Talita, 30 anos, se autodeclara branca, casada, formada em medicina há 7 anos, atualmente é médica de família e comunidade e esteve na linha de frente durante a pandemia da covid-19. Seu marido trabalha embarcado e, após uma volta para casa, em meados de abril de 2020, começou a apresentar sintomas gripais. Alguns dias depois, ela também começou a apresentar alguns sintomas, como dor de cabeça e fraqueza. Após 2 dias dos sintomas iniciais, Talita realizou exame PCR e foi afastada do trabalho por 7 dias, enquanto aguardava o resultado do exame. Além disso, com 10 dias de sintomas, realizou teste rápido para a doença com o resultado positivo para coronavírus. Outros sintomas foram náuseas, perda do olfato e do paladar e calafrios. Ela relata que, uma semana antes do diagnóstico, começou a atuar em uma clínica da família próxima à sua residência, precisando ser afastada ao todo por 14 dias após o início dos sintomas.

Talita acredita que a contaminação ocorreu a partir do seu cônjuge, embora ele não tenha feito exames para confirmar o diagnóstico. Ela e o marido se trataram com medicações para alívio dos sintomas, além de hidratação, assim como ela recomendava aos pacientes enquanto estava na linha de frente do cuidado contra a COVID.  Inicialmente, ela chegou a duvidar da possibilidade de ter sido contaminada, questionando se os sintomas, comuns à gripe, não seriam por outro motivo. Em um segundo momento, quando recebeu o diagnóstico, confessou que se sentiu mal por ter sido acometida pela doença no auge da pandemia e, consequentemente, por não poder mais ajudar as pessoas naquele momento, quando a demanda por atendimentos era muito alta. 

Enquanto esteve doente, ela não sentiu medo da doença, tanto por seus sintomas terem sido relativamente leves, quanto por relatos de amigos que também tiveram a forma branda da doença. Ela procurou repousar, se hidratar e ocupar a cabeça durante o isolamento.

No aspecto familiar, Talita compartilha que seu pai fazia parte do “grupo de risco” e por muito tempo teve medo da doença, distanciando dela, principalmente durante os sintomas. Seus familiares maternos manifestaram a doença com sintomas leves, com exceção do seu avô, que teve falta de ar e chegou a precisar de oxigênio suplementar.  Como ela e seu marido adoeceram juntos, permaneceram em isolamento juntos, com sintomas leves, mantendo o contato e as atividades diárias que exerciam anteriormente. Ela conta que não saiu de casa para nada durante esse período, porque: "não vou fazer uma coisa diferente do que eu falaria pros pacientes fazerem".

Além da ajuda do seu marido, durante o isolamento, Talita contou com o suporte e as orientações de uma amiga médica, que a acompanhou durante todo o processo de adoecimento.

Refere que, no início da pandemia, mantinha todos os cuidados com paramentação e medidas de higiene para controle da disseminação, mas que, com o maior contato com a doença, acabou reduzindo essa atenção.

A experiência de Talita com a doença foi relativamente tranquila e, um dia após seu período de isolamento, ela já se sentia bem o suficiente para conseguir retornar ao trabalho.

Seu conselho para profissionais da saúde é que eles tenham empatia pelos pacientes, evitando minimizar os sintomas sentidos, mesmo que sejam brandos. Para ela, é importante também manter uma conversa aberta com o paciente sobre os tratamentos e condutas. 

Defende que ter imunidade contra a doença permite que se tenha uma liberdade maior para realizar atividades desejadas. Como cristã, acredita ainda que ter uma prática religiosa é uma boa rede de apoio.