Ao longo da pandemia de covid-19 os serviços de saúde precisaram ser reestruturados mediante a novas demandas e necessidades que surgiram, impactando a assistência dos pacientes hospitalizados em especial aqueles gravemente afetados pela doença. No contexto hospitalar, os pacientes que apresentam sintomas graves podem passar pelo processo de intubação - ventilação mecânica e posteriormente o desmame ventilatório na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Essa possibilidade quando apresentada ao paciente, geralmente, repercutia de forma a causar reações emocionais negativas. Embora a ventilação mecânica seja uma das principais formas de tratar o paciente grave, trata-se de uma abordagem invasiva e sujeita a complicações, o que pode levar a sentimentos como medo e angústia.
Considerando também a indicação do distanciamento social um dos maiores desafios para as equipes de saúde no ambiente hospitalar ao longo da pandemia, especialmente em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), os pacientes com covid-19 tiveram que desenvolver recursos internos próprios para lidar com as especificidades da doença e contar com o apoio das equipes assistenciais, em meio a um cenário de privação dos entes queridos.
Janilda, enfermeira, adoeceu em maio de 2020 e permaneceu internada no Hospital Clementino Fraga Filho por 62 dias, 32 dias na UTI sendo necessário ser entubada. Janilda relata não lembrar muito de seu período internada, principalmente na UTI, no entanto, após a extubação, com a traqueostomia, se recorda de um momento muito especial que com apoio dos profissionais de saúde se sentiu motivada a lutar pela vida e dar continuidade ao seu processo de recuperação da covid-19: “No hospital, eu tive uma experiência muito forte que me deu muita esperança, foi quando as meninas chegaram para mim, os profissionais da área, e trouxeram uma tela para eu pintar”. Mesmo sem conseguir segurar o pincel, ela se sente encorajada a tentar: “Eu consegui pintar uma tela aqui dentro”. Ela compartilha sua experiência com a pintura:
“Se você tem um paciente que você alimenta esse desânimo dele… Às vezes o médico ele peca nisso porque ele age de forma técnica. Mas existe esse lado, esse mover de força dentro do ser humano, do paciente, que você tem que resgatar. É como a pintura, como o terapeuta entrou lá e falou assim: ‘vamos tentar, vamos fazer’. E aí você pensa que é bobo, mas a arteterapia te ensina isso. Quando eu vi que eu conseguia, mesmo tremendo, sujar o quadro, eu falei: ‘não, não acabou, tem chance’. E essa força começa a brotar dentro de você. Ela não brota por causa dos resultados só. Porque às vezes os resultados são péssimos. [...] Você tem duas opções: ou você desanima e sente pena de você, ou você fala: ‘não vou sentir pena de mim, se tem um Deus lá em cima Ele vai me dar força e eu vou continuar’. Então eu não desanimei”.
A possibilidade de intubação está associada ao estar em coma em uma UTI, com isso, os pacientes acabam encarando esse procedimento como se fosse o “fim da linha”, o final da expectativa de vida e que evoluir para a intubação é sinônimo de “não acordar”. Na pandemia, isso se tornou mais frequente devido a divulgação de números alarmantes de óbitos por covid-19 pelos veículos de comunicação, muitos deles entubados e pelo impacto social que esses números causaram. Alguns entrevistados nos contam sobre o receio da intubação, como por exemplo, o entrevistado Sérgio, que permaneceu internado 18 dias no Hospital Clementino Fraga Filho. Sérgio buscou recursos pessoais internos para enfrentar a possibilidade de intubação, por fim, não precisando ser entubado.
“Eu melhorei bastante depois que o médico não me entubou. Eu acho que ali eu acho que foi uma reação psicológica. Porque assim, ou você melhora ou vai ser entubado. Porque, porque quando eu estava internado a gente também fica travado psicologicamente, né? Certas coisas a gente não aceita, pois não está acostumado, não tô acostumado. É a primeira vez que eu fico preso no hospital por internação, por alguma coisa, então tudo pra mim era novidade e afetava no psicológico. Eu não queria aceitar aquilo como uma coisa normal, eu estar naquele local que eu nunca tinha ido, nunca fiquei naquele, naquele estágio, já tive no hospital, já operei, mas foi tudo muito rápido e ali não, ali era um caso demorado, com tratamento diferenciado, então atingiu meu psicológico. Então, eu acho que depois daquele episódio do médico, eu acho que ali eu melhorei por causa disso. Que eu tive, psicologicamente eu falei: ‘ou eu melhoro, ou eu vou entubar e vou embora’, entendeu? Então esse período de dez dias foi crítico”.
Maristela por duas vezes quase foi entubada, contraiu a covid-19 em março de 2020, logo no início da pandemia. Foi internada no hospital que trabalha, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. Por trabalhar com saúde, tinha conhecimento de certos procedimentos médicos, o que foi fundamental para lidar com sua internação, como ela nos conta:
“Isso me facilitou muito, o entendimento de saber os procedimentos, aí não me assustou essa questão do entubar. Todo mundo ‘não te deixa entubar’, mandavam mensagem pra mim, aí eu falei ‘gente, não tem respirador pra todo mundo, não tem tubo pra todo mundo, não vão entubar, só vai entubar quem tá morrendo, quem tá mal, quem não tem jeito, quem não tá conseguindo respirar. Eu tô conseguindo respirar com oxigênio, entendeu?’.
Ela compartilha que pessoas próximas tentaram alertá-la sobre os riscos da intubação, mas ela expõe seu conhecimento e o usa como recurso para enfrentar seu receio de ser entubada associada a sua fé.
“As pessoas que me ligavam, que falavam ‘ah, não deixa te entubar, não’. Até nesse dia que eu desci, aí eu falei ‘eita, tá parecendo até aqueles filmes de socorro, chama o elevador, vem correndo’. Aí eu fui assim, eu quis nessa hora também me angustiar, mas eu falei ‘não, eu vou pedir a Deus, eu vou orar, falar com Deus pra ele não deixar eu ser entubada’, porque eu sei que pode vir mais problema, mas eu falei, gente, eu dizia ‘não entuba todo mundo, porque não tem aparelho, não tem respirador, não se preocupe, só vão me entubar se eu tiver muito mal, no final de carreira mesmo, senão não vão me entubar, porque não tem material pra entubar’. Foi logo no início, não tinha material, o tanto que veio, entendeu? O EPI não tinha suficiente pro pessoal entrar nas enfermarias, tanto é que ficou restrito o número de pessoas pra entrarem, não só pela contaminação, mas pelo material que não tinha, entendeu”.
Fabricio, adoeceu em setembro de 2020 e permaneceu internado no sistema público por 13 dias, sendo 5 dias entubado. Ele compartilha seu processo em busca da cura. Após a extubação, reconhece a oportunidade de um renascimento:
“A intubação e a pós intubação. Quando eu tive a oportunidade de olhar pela primeira vez no oitavo andar pela janela, quando eu saí do coma. Eu saí em tempo recorde, eu saí em três dias, em três dias eu fui acordado, o quinto dia tiraram o tubo. Fiquei dois dias entubado para poder ver assim se poderia ter alguma recaída. E aí, alguns dias, acho que dois dias depois, eu tive a oportunidade de levantar da minha cama, do leito, e poder olhar pela primeira vez pela janela e ver a Baía de Guanabara. Tipo, um lugar que eu não via tanta beleza, eu encontrei beleza extraordinária. É algo surreal. É você despertar para uma nova vida, você ter uma nova oportunidade. Eu falo para todo mundo que isso aqui é minha segunda maternidade. [...] Nasci de novo. Foi uma experiência muito marcante”.
Alexandre, médico geriatra, desde o início da pandemia, em 2020, se manteve na enfermaria e preceptoria do setor de Geriatria do hospital em que atua em Recife, apesar de não trabalhar diretamente na linha de frente da covid-19, o hospital é referência no atendimento. Adoeceu em janeiro de 2021 e ficou internado por 9 dias em um hospital privado em sua cidade. Alexandre é hemofílico desde a infância e já passou ao longo da vida por questões de saúde derivadas do seu diagnóstico prévio, mas o adoecimento por covid-19 segundo ele, foi assustador: “A sensação é que eu estava pisando num terreno totalmente desconhecido como paciente”. Para ele, de certa forma, sua experiência prévia com o adoecimento, internações e intervenções médicas, auxiliou no enfrentamento da doença e na ideia do possível óbito, como ele mesmo compartilha: “E convivo desde a infância com a hemofilia e passei por períodos bem complicados já, eu até diria que essa não foi minha primeira experiência de passar por um triz da morte”.
Além disso, Gilson, que adoeceu em dezembro de 2020, relata que o sofrimento passado na UTI, foi uma experiência dolorosa, os piores dias da vida dele, mas, sua lembrança na filha o emocionava, e buscava sobreviver e voltar para ela::
“A UTI não foi feita pra gente, e acho que aquelas pessoas que estão lá sofrem muito. E eu percebi o sofrimento delas, principalmente quando se perde um paciente, a dor de um médico de quando se perde um paciente. Eu soube no período que tava lá de lá de 4 mortes, todas por covid. Eu fiquei numa UTI de alta complexidade, eu passei 4 dias e depois fui para uma de baixa complexidade passei mais 7 dias… 8 dias, foram dias em que a gente descobria narrativas, algumas pessoas acompanhavam, contavam a história das outras pessoas, provavelmente os enfermeiros, técnicos… foram dias também de, de assim… a pergunta que o Sr fez todo mundo faz, “Tu pensava o que?” No momento que minha filha me deixou na porta da UTI dizendo, chorando, chorando aos prantos “ Papai! Papai” ela gritava “ Papai! Papai” eu enchi os olhos de lágrimas né, quando eu lembro disso minha voz fica embargada, eu disse a mim mesmo “Eu volto minha filha, eu volto” e eu voltei! Mas foi duro, foi doloroso, é uma experiência muito dolorosa. Então eu acho que eu ainda não consegui escrever, porque quando eu começo a escrever, eu começo a rever. E assim, a gente tem muitas alucinações."