4.4 Repercussões nas relações familiares e sociais

Temas

Os entrevistados relataram a importância da rede de apoio após viver a experiência de quase morte. Familiares, amigos, vizinhos, conhecidos (e até desconhecidos) ofereceram todo tipo de suporte após a alta. Muitos ficaram surpresos com tamanha solidariedade. Também houve uma ressignificação dos valores, refletindo o que vem a ser uma verdadeira amizade após terem se sentido amados.

"Isso foi a pior coisa, porque ela voltou pra casa já era de madrugada, minhas filhas estavam dormindo, eu tenho três irmãos e eles não moram no Rio, moram em Minas e são fenômenos da modernidade, ela resolveu colocar uma foto minha dizendo que eu tinha sido internado pedindo orações. Ela é católica como eu, e daí as pessoas tomaram conhecimento. Aí minhas filhas quando acordaram de manhã viram aquilo, vieram acordá-la pra saber do pai. E o pior mesmo foi a intubação na quinta feira, porque na cabeça delas é, vamos dizer assim, as chances de sobrevivência eram muito pequenas. E aí, elas disseram que ficou um clima muito ruim, choravam várias partes do dia, ficavam com mãe durante a noite, foram momentos muito ruins assim. Mas segundo ela, por causa das redes sociais foi gratificante porque ela ainda recebia o retorno, as pessoas perguntavam como eu estava, como é que eu estava evoluindo e muitas pessoas começam a ligar também. A pessoa fica um pouco oprimida diante das circunstâncias. A rigor, ela só sabia que estava entubado. O médico dizia “ele está entubado, nem tá pior, nem tá melhor”, então esse momento da intubação pra elas foi o pior, porque elas não tinham certeza se eu sairia. Eu me sinto mais seguro do que ela, ela sempre acha que eu vou adoecer de novo, uma das meninas pode adoecer e me transmitir, entendeu? É porque as meninas também, coitadas, tem uma vida social, elas querem sair sexta, querem sair sábado e nesses momentos também interagem com várias pessoas e eventualmente podem assim, eu tô falando como cidadão leigo, eu não sei como as coisas se processam, mas a literatura jornalística eventualmente pode acontecer uma reinfecção, então ela fica com muito receio disso." (Francisco)

 

"É, até os meus vizinhos, eu até senti mais cordialidade, mas afetuosidade. Pessoas ligando não só no telefone, como no interfone para saber como eu estava, assim, e eu moro em um prédio grande, são cem apartamentos e nem esperava receber tanto carinho assim. Mas eu vi Nelson Rodrigues que brincava com a Clara Rezende que o mineiro só era solidário no câncer, mas eu vi muita solidariedade dos meus vizinhos cariocas, assim, muito afetivos, não senti nenhum tipo de discriminação porque eu tinha tido a doença, todas as pessoas foram muito cordiais, muito carinhosas comigo só agradecer, só agradecer. A primeira vez que eu fui a missa, eu saí em um sábado, no sábado seguinte eu consegui ir à missa com a ajuda da minha mulher, e foi muito emocionante, assim, as pessoas vindo até mim dizendo que fez orações, o padre fez várias missas e citava meu nome, então foi emocionante isso. Porque se a pessoa não gosta de você, ela não precisa dizer nada, não precisa se aproximar, pelo menos as pessoas de boa fé, então se a pessoa se aproximou e disse, eu acho que ela é sincera, então isso é muito tocante." (Francisco)

 

"Eu senti que eu tenho uma importância na vida das pessoas maior que eu achava que eu tinha. Então assim, eu vi meu irmão completamente desesperado, minha mãe também, no primeiro encontro ainda no hospital, também no quarto já quando eles puderam, então assim, eu acho que eles tinha mais noção do que eu da gravidade de quando eu tive internado, de quando eu estava entubado assim, então eles acham que provavelmente eu tinha grandes chances de morrer e eu não tinha consciência disso, quando acordei tava melhorando e eles acompanharam. Foi isso então, eu acho que… Me deixa atender a porta aqui, por favor.  Oi, pronto. Tô de volta então, é eu acho que essa foi uma sensação boa no fim de tudo assim, você se sente importante e depois quando eu tava em casa já recebendo a visita de alguns amigos, você também não pode receber visita de muita gente pela pandemia mas de algumas pessoas mais próximas, meus sócios, né? Pessoas que trabalham e acabam vindo. A gente começa a se tocar que o que as pessoas sentem, o quanto a gente impacta na vida das pessoas também, no dia a dia, isso foi um lado muito legal pra mim assim."  (Wellington)

 

"Bom, minha rede de apoio. Primeiro lugar, assim, enquanto estava consciente, meu pai, obviamente, minha mãe, minha sogra, minha sogra ficou um mês e pouco, praticamente ela se mudou para minha casa, para ficar com a minha filha e minha cachorra. Fazer comida e tudo, porque assim, a minha sogra e meu marido pegaram um bem mais branda do que eu e meu pai e minha mãe, então assim, no início, quem caiu primeiro, fui eu, mas logo depois foi meu marido, minha sogra e minha filha. E aí, paralelo a isso começou, o papai, a mamãe e minha irmã, então assim, todo mundo ficou doente, então meu suporte mesmo, era o meu psiquiatra doutor César e a minha mãe de santo a Tia Vera, que ficava o tempo inteiro, “filha você tem que rezar, reza o terço, filha, pede os orixás, vamos lá, vamos rezar hoje, corrente de cura”. Então assim, os meus maiores suportes eram mesmo meu pai e a minha mãe, muito arriados, era o tempo todo mandando mensagem, a gente se falava na câmera, eu falava: “pai, por favor, você tem que ir ao hospital” e ele só fazia assim para mim – gesto negativo. Ele não aguentava falar, mas só assim – gesto negativo. E a minha irmã, foi 100%, a gente, teve ajuda, no caso, aqui na família, na casa da minha mãe, os vizinhos faziam comida e passavam um bilhete embaixo da porta, botavam a comida, tocavam o interfone. E aí, “Oh, essa marmita é para Juliana, o marido e a sogra”. “Essa marmita é para você, para Maria e o Bernardo”. Então foi assim, a gente pôde contar." (Juliana)

 

"Eu não sabia, uma coisa muito boa dessa merda toda é que eu não sabia que eu era tão querido assim. E aí, eu recebi três propostas de casamento de pessoas que eu nunca vi no meu Instagram que eu falo um monte de coisa, recebi corrente dos caras lá, os garçons dos bares do Leblon, pessoas que trabalharam comigo, muita gente humilde assim. Vários vídeos de amigos, meus amigos fizeram vídeos. Muito louco, muito louco. O Fabrício, esse cara que me salvou..." (Augusto)

 

"Eu sempre tive poucos amigos próximos, mas eles são muito próximos. Eles são quase da família [risos] então é muito bom poder falar com eles. A gente não consegue se encontrar por causa da pandemia, por causa dessas coisas que a gente está vivendo, mas graças à internet e telefone, a gente consegue estar próximo e tem uma regularidade para conversar, para se ver. Isso tem feito muita diferença. Eu acho que tanto para falar, para chorar, para estar junto, como para comemorar os ganhos. Para poder contar que melhorou. “já estou conseguindo fazer isso, fazer aquilo”. Faz muita falta e é muito bom poder ter eles por perto nesse caminho. Eu recebi muita mensagem, muita ligação, presente também... de pessoas que eu não imaginava nesse caminho do adoecimento. Muita, muita gente do trabalho, pessoas que trabalharam comigo há muitos anos que eu nem sabia que tinham meu contato apareceram para ligar, para escrever, mandar coisas. Os alunos mandaram um monte de coisa aqui na minha casa super bonitinha, que eles mesmos fizeram. Um recado, um poema enorme. Essas coisas vão também trazendo... Sei lá, é muito difícil passar por isso... Mas quando a gente percebe que tem muitas pessoas também, que estão ali acompanhando e estão junto e estão torcendo para que tudo fique bem, é diferente. Eu tenho ficado muito feliz com esses retornos, com os recados. Faz muita diferença sim, eu acho."  (Camila do SUS) 

 

"Foi uma experiência muito marcante, muito tocante. Não só pra mim, mas para familiares, amigos. A gente descobre quem é realmente de verdade, as pessoas que estão do seu lado que te querem, que tem amam de verdade. E aí eu vi a quantidade de pessoas que realmente me queriam, né? Que me amam, né? E que se preocupar comigo, com minha saúde, com minhas vida. Então foi algo muito bacana, muito marcante  para mim. Tanto que eu fiz algumas, eu escrevi na época, eu não conseguia falar, então eu escrevi algumas coisas, alguns lembretes e coloquei, até fiz algumas coisas e levei para casa. Estou até no processo de colocar elas em um marco, né? Tipo para ficar como uma lembrança, né? Do que foi o ano de 2020 para mim." (Fabrício do SUS)

 

"Eu tenho maior medo, por exemplo do meu irmão que tem asma pegar. Eu sempre ia no mercado porque eu não tinha, então deixa que eu vou no mercado. No final, ele teve também. Todo mundo pegou. Ele ficou também cuidando de todo mundo, teve COVID, mas foi bem brando. E ele conseguiu gerenciar tudo. Até no começo, quando eu voltei da internação, se não fosse ele, fez a comida, limpou a casa e cuidou de mim. Se não fosse ele, eu não teria como gerir a minha vida nessa volta da alta. Ainda hoje ele fica meio que dê para... ele sabe que eu esqueço as coisas, ele fica, "tonta já fez? Você que foi na feira?". Então tem umas coisas que ele fica me lembrando que eu tenho que fazer porque senão eu não faço, assim, ultimamente ando usando celular para ajudar a lembrar. Mas ele é o principal recurso." (Camila do SUS)

 

Ao tomar conhecimento da gravidade do quadro do paciente contaminado pela covid, familiares foram tomados de surpresa. Não faltaram suspeitas de que o paciente tivesse adquirido a doença por transgredir a norma de isolamento social ou de medidas de proteção. 

"E agora no geral, os meus familiares, eu acho que foi um pouco de surpresa pra todo mundo, a gente passava nos detalhes o que estava ocorrendo comigo, dos procedimentos, dos amigos próximos, então foi um pouco surpresa de como que eu tava sendo hospitalizado, de todo mundo perguntava: "como é que conseguiu que a doença evoluiu para chegar nesse nível?", aí eu falei: “não fiz nada”, no sentido de que só convivi com uma pessoa que estava contaminada durante quatro horas. Tem muita gente que achou que peguei, sei lá, numa balada, no restaurante, falei "pô, pior que não foi nada disso cara, foi trabalhando.”  (Marcio)

 

"Eu não sei se é porque é uma cidade que tem uma marca, uma cultura de uma doença contagiosa e aprendeu a fazer assim desse jeito e aí transporta isso da Hansen para o COVID ou se o COVID tem essa marca também. É um pouco uma marca do pecado. É a pessoa promíscua que saiu para balada, a pessoa que não quis ficar em casa. Tem essa marca ainda: "você não se cuidou como você deveria", "você não ficou em casa, saiu por aí sem a máscara, né?", "você não usou EPI". Quem pegou infringiu alguma regra, infringiu alguma norma. Tá no pecado, vai, digamos assim. E tem uma coisa do merecimento que eu percebo muito. Se eu me curei hoje, é porque eu sou merecedora ou eu não vou pegar porque Deus não quer que eu pegue, porque eu sou merecedora, eu posso usar máscara aqui no queixo que está tudo certo. Tem esses imaginários sobre essa doença, eu acho, e eles vão mudando um pouco o jeito que a gente se relaciona." (Camila do SUS)

 

Muitos entrevistados relatam perdas de familiares e de pessoas próximas e o sentimento da compreensão lenta da realidade de perda destes. Assim como, a dor, o luto, a impotência e o ressentimento de não terem se despedido parecem nos relatos. 

"Eu tive os meus choros, o meu luto, que não era porque mamãe morreu. As pessoas não entendem, é porque minha mãe morreu, sem eu dar a mão para ela, mesmo que como os outros estavam fora. Quer dizer o meu irmão não é que está fora, que ele opta por não estar por perto mesmo, há décadas, mas minha irmã longe, meu filho longe, meu sobrinho longe, minha sobrinha longe, quem ficava com ela e ela deu para me esperar muito, no hospital durante a sua internação mais longa que foi a última. E eu estava sempre esperando que ela pudesse complicar e ir embora, mas eu estava sempre lá, estava sempre lá dando a mão a ela. E a partir do momento em que eu não pude mais entrar na UTI quando ela acusou e logo depois, eu acusei, acabou, eu não cheguei mais perto dela. E aí, tudo isso aconteceu com ela por um longo período que era início de dezembro e ela faleceu em 30 de dezembro. Então que eu pensava assim, na hora de aflição dela de querer que eu estivesse com ela."  (Elisa)

 

"Porque eu não podia ficar na minha casa. E outra coisa que impactou muito, que me deixou muito triste. Eu tinha uma tia da mãe do meu marido, que morava comigo há 20 anos. E ela era acamada e eu cuidava dela. Eu pagava umas moças para cuidar dela enquanto eu trabalhava no hospital. E na pandemia essas moças pararam. E aí o meu filho ficou com ela e quando eu saí do hospital, ninguém queria tomar conta dela, ninguém queria ficar com ela, porque ela não enxergava e não andava. E a,í eu falei com meu filho e ele falou: "Mãe, eu vou ter que voltar a trabalhar. Como é que eu vou fazer com a tia?". E eu falei: "Mas eu não queria botar ela num abrig", sabe por que? Ela não tinha casado, ela não teve filhos, eu não queria botar ela num abrigo nesse período. E eu falei: "Filho, eu não tenho como olhar ela. Eu não consigo tomar conta de mim, minha mãe vai tomar conta de mim". E aí mandei meu filho procurar um abrigo. E não tinha abrigo público disponível. Não tinha nenhum. Ele rodou muito. Eu achei um mas era alto o preço. E aí eu tive que pagar. E assim, esse dinheiro meu do meu salário que eu economizava na casa da minha mãe, eu pagava um abrigo para a tia, que não era minha tia, né? Era tia de consideração. E assim, depois eu tive que sair de Icaraí para voltar para o Olaria, porque eu não tinha como manter a tia no abrigo e Icaraí. Aí eu tive que escolher, e aí eu escolhi voltar para Olaria e continuar pagando, e ela faleceu no mês de julho. Ela faleceu, mas não foi porque eu quis que ela fosse para aquele abrigo, apesar de ser um abrigo bom, não foi um abrigo ruim. Mas eu não queria que… ela já foi a vida toda tão sozinha, sabe? E ela não é que ela foi assim aquela maravilha toda para mim, mas foi para os meus filhos, foi muito boa com os filhos. Então, assim, o estrago da COVID-19 foi além do que se imagina. Foi além do que as pessoas possam imaginar."  (Janilda do SUS)

 

"Eu perdi muitos amigos, muitas pessoas queridas com COVID. Eu perdi pessoas muito muito queridas, meu vizinho com quarenta e dois anos, ele não durou uma semana, deixou dois filhos de nove e três anos, quer dizer, eu muito próximo, funcionários aqui do hospital, amigos meus que foram embora, amigo, muitos, muitos, teve um dia que eu perdi três amigos, num único dia. Então isso foi muito, mas até eu ter noção da dimensão da coisa, foi só depois mesmo." (Roberto Piedade do SUS)

 

"E eu perdi muitos amigos no serviço. Muitos. Amigo do peito, amigo que formou comigo, que trabalhava comigo, né, foram embora e eu quis saber depois e até mesmo depois também, que eu estava em recuperação e eu tinha notícia de amigos que estava internado, estavam indo embora, alguns melhorando, mas alguns indo embora." (Sérgio Mirando do SUS)

 

O medo de morrer, de deixar filhos órfãos ou de vir a contaminar os familiares foi uma preocupação de pacientes, e igualmente de seus familiares. Também foram relatadas aflições e temores por parte dos familiares de perderem o ente querido internado ou de o mesmo contrair novamente a doença e vir a morrer após a alta.

"Olha, ficamos todos muito fragilizados, as emoções ficaram assim, de uma forma muito delicada. Nós temos graças a Deus, a nossa família é mineira, e só nós aqui em São Paulo e a gente só tem uma filha, mas nós temos muitos amigos, nós somos evangélico, frequentamos uma igreja que nos abraça muito e a nossa filha ela foi muito bem cuidada, pessoas constantemente com ela. Ela tem vinte e dois anos e ela desmontou muita maturidade, porque o hospital sempre comunicava com ela sobre o caso do pai e da mãe e ela estando sozinha como filha para tomar todas as decisões e alguns procedimentos, por exemplo, intubação do meu marido foi ela que teve que autorizar, e até “pode tirar a barba?” Então isso para uma filha, vai fragilizando, porque via que o pai tava adoecendo cada dia mais. Então as emoções ficaram bem abaladas, mas nesse grupo de pessoas, nós temos psicólogos amigos que deram uma assistência muito grande, além do pastor da igreja, de colegas da idade dela. Quando eu tava no hospital, sabe aquela sensação assim,  “olha há uma possibilidade muito grande deu não voltar para casa”, há uma possibilidade muito grande da minha filha perder o pai e a mãe, numa mesma semana, então aquilo trouxe pro meu coração, eu sei que ela não ficará só né, nossa família é muito grande, nós temos um relacionamento com pessoas bem comprometidas, ela vai ser bem cuidada, mas seria um desastre na vida, perder pai e mãe e ela sendo única filha. Então isso naturalmente abala as emoções, a minha família, minha mãe com todos os meus irmãos, eles queriam contato diário eles se reuniram todos os dias para orar, para pedir a Deus para salvar as nossas vidas, então isso traz um abalo emocional. Meu marido, eu e minha filha, nós levamos literalmente três dias, e a gente parava de conversar só para descansar para dormir a noite, nós gastamos três dias ali juntos e apreciando um ao outro contando o que a gente sentiu, os medos, as inseguranças, então nós ficamos três dias literalmente, três dias, tentando um ajudar o outro e tentando mostrar que olha passamos por isso, mas vencemos estamos de volta para casa. A nossa pequena família está reunida novamente né [...] Então, eu achei minha filha de uma maturidade muito grande. Assim que a gente conhece né? As pessoas como elas estão amadurecendo. Ela ligou para os tios porque meu irmão um dos mais novos e a minha irmã mais velha, eles chegaram a tentar comprar passagem pra vir e ela ligou para ele pedindo para que eles não viessem. Também os irmãos do meu marido, os tios delas queriam vir, assim a família tentou ao máximo estar próxima mas é a dureza nesse tempo, e o distanciamento em qualquer outra época, no momento difícil, os familiares ficariam todos aqui ao redor dela mas o duro da pandemia é exatamente o distanciamento né, cada um tem que passar pela sua experiência e passar pelo doença distante né? E não só para não ser contaminada mas para não contaminar o outro, então é uma doença também emocional né, Alicia, ela acaba se transformando nessa doença ai de solidão de distância. Muitos se sentem desamparados, quando na verdade não é o desamparo, mas são obrigados a ficar bem distantes."  (Margareth)

 

"Então assim, eu não tenho relação com as pessoas, eu não saio, eu não faço absolutamente nada, porque eu não quero passar pelo que eu passei, porque eu vivi um inferno. Na minha cabeça era assim, eu posso matar toda a minha família. Eu contaminei todo mundo. A minha filha poderia nem estar aqui. Minha filha foi um dos casos de crianças, de pouquíssimas crianças que eu soube que teve febre. Então assim, gente, pelo amor de Deus, a gente viveu um caos. O nosso país foi dizimado e as pessoas fazendo festa, saindo, então desculpa, não condiz comigo não vai fazer parte do meu círculo de amizades de vida, não mesmo."  (Juliana)

 

"O meu irmão estava lá muito tempo todo comigo na UTI, dai a gente teve até uma situação em que a gente se encontrou, acho que eles vieram aqui em casa e tal e para vir me ver, isso foi depois de eu ter recebido alta, foi uma semana, um final de semana depois alguma coisa assim, que a gente foi conversar e ele me abraçou e começou a chorar, “cara achei que você ia morrer”, coisas do tipo. Desabafou. Aí eu ficava até meio assustado assim, falei "pô, cara, calma”, mas a minha esposa também, que eu fala que eu ainda estou na recuperação, mas eles tiveram também esse tempo de recuperação. Minha esposa falou que até hoje ela não consegue dormir direito, “tem muitas vezes que eu acordo assustada e acho que você tá no hospital”, aquele processo traumático, né? Realmente, passou a angústia que eles passaram. E aí, daí eu falei com ela, não sou só eu que estou me recuperando, ela também está, mas psicologicamente, né?" (Marcelo)

 

Houve relato de repercussões e divergências nas relações dos pacientes com familiares, motivados por conflitos motivados por questões ideológicas envolvidas no manejo da covid. 

"Só teve um problema que não foi uma felicidade plena porque eu tive uma discussão bem séria com ela, porque ela é muito partidária em relação ao Bolsonaro e ela mandou umas letra lá quando eu tava no hotel, “você tem que tomar remédio”, eu falei "tá beleza", eu passei tudo que eu passei e ela insinuou que eu passei por não ter tomado os devidos remédios que ela falou lá, isso me deixou muito chateado, não vou compactuar do seu sentimento em relação a isso porque eu consultei quatro médicos e eu falei nenhum deles me recomendou a tomar esse remédio e eu não vou morrer ou sei lá me sentir culpado de ter passado o que eu passei por não ter tomado alguns remédios. Falei “cara, não vou”, eu acho que até hoje ela não pediu desculpa para mim nesse sentido ela acha assim que eu errei, então eu falei “cara, não vou compactuar do seu sentimento em relação a isso”, mas assim, cara tu é minha mãe e tal, vamo bora bora pra frente. Vida que segue e ignorar isso porque senão você não vive. Você vai brigar com a pessoa o resto da vida, não adianta você achar que vai mudar a pessoa no auge dos seus sessenta anos dela." (Marcio)

 

Uma das pacientes se refere curiosamente à covid como uma "doença emocional", marcada pela solidão e pelo distanciamento social. Vive-se entre extremos: da sensação de abandono até a de ser o centro de atenção nos cuidados oferecidos por familiares e amigos.

"A gente se sente abandonada, porque não pode falar com ninguém, parente. Você vê o povo, né. Muito bom o povo, né, conversava contigo, você via todo mundo falando, você só olha né, fica olhando. Mas, família você fica abandonada, né. Você não pode falar com ninguém. Primeiro, eu estou doente, mas você quer falar com a pessoa, entendeu? “Estou aqui”. Melhorei e fui para casa, estava na minha casa, mas meus filhos iam lá na minha casa, iam lá me ver. Eu estou deitada, mas “está precisando de alguma coisa?”, entendeu? Aí quer trazer "não, deixa que eu pego”. Aí eu queria pegar minha água, queria pegar minhas coisas, entendeu? “Ah, vamos lá no banheiro que vou te ajudar a tomar banho”, “Que ajudar a tomar banho, eu sei tomar banho sozinha”, Aí ficava assim, entendeu? Mas, isso aí tu já está em casa se sentindo do meio da… os vizinhos, tudo da minha casa, entendeu? Sabia o que eu estava precisando, aí leva uma fruta, estava no sol, “isso, fica aí no sol”, mas era isso, entendeu? Estava vendo as pessoas, então, estava me sentindo protegida, né. A gente se sente protegida."  (Vera Lúcia do SUS) 

 

Angela relata a ruptura que a experiência do adoecimento lhe causou no seu convívio social, dos quais lhe eram prazerosos, passou a viver com desânimo e isolando-se de tais coisas: “Mudou assim, eu perdi o ânimo das coisas, eu não tenho ânimo pra nada mais, eu não tenho o mesmo ânimo de fazer uma faxina, eu não consigo. Eu não tenho animo mais de sair “A vamos Ângela bora pro som ao vivo que tá tendo ali”, que antigamente eu gostava eu não vou mais, eu me fechei mais pro mundo. Eu não saio mais com meus filhos.”