Maria Aparecida - Enfermeira de Família e Comunidade
Maria Aparecida, 50 anos, casada com um filho de 27 anos, enfermeira há 13 anos, se autodeclara preta, atuante na Estratégia de Saúde da Família e também na área hospitalar pública, foi entrevistada em 14 de julho de 2021. Ela nos relata a experiência de trabalho durante a pandemia COVID-19, sem ter sido contaminada pelo vírus: “Nossa, eu nem gosto muito de me lembrar (...) Você tem que atender. A gente lendo, procurando informações e indo à luta mesmo. Indo para o campo, para batalha, praticamente.”
Maria Aparecida relata que na unidade hospitalar pública onde trabalha muita gente teve COVID ao mesmo tempo, a ponto de não ter quem cuidar dos doentes, pois não havia ninguém para substituir. Foram apenas 4 pessoas, incluindo ela, que não tiveram COVID. Duas colegas da área hospitalar tiveram COVID após a vacina CoronaVac e uma técnica de enfermagem foi internada e entubada e posteriormente faleceu. Um enfermeiro e amigo da entrevistada que atuava na Estratégia de Saúde da Família da AP 5.1 foi o primeiro óbito próximo que teve. Ele era diabético e estava na linha de frente, atuando na ponta, e foi contaminado em atendimento. Aparecida relata que em sua família ficava todo mundo trancado dentro de casa. Mora só ela, o marido e o filho. Ninguém em casa teve COVID. Quando foi decretado o lockdown ela estava com uma visita do Nordeste que ficou presa, não podia ir embora, porque não tinha vôo, não tinha nada.
“Todo mundo tinha medo de mim, eu era a pessoa que ia para rua, ia para Clínica da Família e ia para o hospital, então eu já saía de lá sempre de banho tomado, eu nunca vinha sem mas chegava aqui tomava um outro banho, e eles ficavam cada um nos seus quartos e evitava ao máximo estar circulando também junto com eles. Ou eu dormia na sala ou num quarto separado. Eles não se misturavam comigo não, ninguém”. Demorou muito para essa situação passar, até maio, junho.
“Meu marido morria de medo. Eu acho que ele ficou até com pânico. Eu senti que abalou muito. Eu não sei se era porque ele tinha amigos fora do Brasil que passavam a situação do que estava acontecendo por telefone... E eu acho que ele ficava vendo aquilo tudo na televisão. Se alguém botasse o pé, descesse para buscar uma correspondência na caixa do correio, ele já brigava, ele não queria. Era uma coisa assim absurda. ‘Ninguém vai sair’. E quem ia ao mercado, quem ia trabalhar, que fazia tudo, era eu, porque eu era a pessoa que estava na rua então, eu tinha que fazer tudo. Ninguém saia de casa. E teve uma época que ele ficou trancado mesmo. Vinha pegava comida e entrava lá para dentro do quarto. Parecia até que estava com COVID de tanto medo que ele ficou.”
Seu filho faz faculdade e atualmente voltou a frequentar o curso. Seu marido é aposentado e trabalhava no laboratório de prótese dentária. Quando o COVID começou seu marido deixou de ir porque ele não queria andar de ônibus e atualmente só sai em extrema necessidade.
“Meu filho sempre dizia assim ‘mãe, cuidado, presta atenção. Todo dia que eu tava de plantão, ele passava uma mensagem quando eu saía de casa: ‘mãe cuidado’; ‘pelo amor de Deus, você tem família’. Isso às vezes deixa você meio temerosa, mas depois que você chega para trabalhar não tem isso não, é arregaçar a manga.
A profissional refere que as principais questões no começo da pandemia foram muita insegurança, falta de organização, desconhecimento da doença, falta de equipamento de proteção individual (EPI). Segundo ela, inicialmente, todos os profissionais tinham que ir para a linha de frente fazer o acolhimento dos usuários sendo posteriormente montados grupos específicos. Ela refere que no começo estava com muito medo pois não havia fluxo de trabalho definido. “A coordenação chegava e falava uma coisa, aí a gerência falava outra”. Em março de 2020, Maria Aparecida foi transferida de sua Área Programática (AP) que ficava na Zona Oeste do Rio de Janeiro e atribuiu o fato de não ter sido contaminada pela doença à essa mudança. Nesse novo local havia mais recursos como Equipamento de Proteção Individual (EPI), contudo com disponibilidade limitada, o que fez muitos profissionais comprarem do seu próprio bolso para se proteger. Na nova unidade sentiu-se mais segura mas admite: “Medo a gente tem.” O período de maior demanda foi em abril de 2020, novembro e dezembro do mesmo ano. Segundo Maria, entre agosto e setembro foi um momento de maior tranquilidade.
No começo os enfermeiros assumiram junto com os médicos os atendimentos na sala de covid-19. “Nesses turnos eram 100, 120 atendimentos. A cada instante aquilo ia aumentando e quando os resultados começaram a chegar eram todos positivos. Todos os resultados positivos. Isso começou a dar um certo temor”. Com isso a equipe também começou a adoecer. As preocupações eram muitas, como as saídas de ambulância, a falta de máscara para oxigênio, falta de material para intubação, a falta de treinamento dos profissionais para atuar numa parada cardíaca, que felizmente não ocorreu em sua unidade.
A impressão da entrevistada era que: “Muitas pessoas com nervo à flor da pele mesmo. Desestruturadas, choravam, brigavam, quando vinha o resultado e era positivo, parecia que estavam enxergando assim a morte, né? Já vinham chorando e com tremores. Por mais que dissesse ‘mas não é um diagnóstico de morte’. A resposta era ‘mas não quero estar com essa doença’. Cada um tinha uma experiência difícil. Esse quadro melhorou um pouco já na segunda onda, não estavam mais tão temerosas, não sei se porque já tinha algum tempo de pandemia, e as pessoas já estavam sabendo mais ou menos da situação, mesmo vendo a quantidade de óbitos. Não tinha mais tantos idosos como vimos no começo. Tinha gente, mas não era assim como no começo. Era algo assim mais natural. A gente recebia famílias: mãe, pai, tia, todo mundo chegando para fazer a avaliação. Cada um se comportando de uma forma e isso ficou muito característico, do emocional muito abalado.”
Quando questionada sobre o atendimento de pacientes graves, em um local de atenção primária à saúde, relembra que “(...) foram muitos saturando a 69, 70%... Tem que chamar a ambulância correndo, vaga zero, ficar ali do lado, o tempo todo... muitos muitos muitos. E não voltaram. Muitos não voltaram, né.” Maria Aparecida relata que os agentes de saúde eram os primeiros a saber do falecimento dos pacientes, se a família não comparecia, a equipe ia até eles. Quando o telemonitoramento não conseguia contato, a equipe também era responsável por buscar essa informação, como nos casos de internação de pacientes graves, que por vezes não tinham família. Ela compartilha que foi criado uma planilha na unidade que trabalhava, com os óbitos no território de cada equipe, para poder quantificar a evolução da doença na comunidade. A partir desses dados, em meados de maio e junho de 2020, foram identificadas as áreas de maior risco, nas quais a enfermagem e os residentes compareceram em espaços que são referência na comunidade como as igrejas, escolas, creches e na associação de moradores para divulgar orientações sobre o uso da máscara, lavagem das mãos, uso do álcool gel, o uso do EPI e para divulgar a questão do isolamento, posteriormente tornando-se rotina na comunidade: “A gente entende que é um pouco difícil porque as casas são muito coladas, muito juntas umas das outras né. A maioria dos usuários são muito idosos que não saíam de casa, mas que os filhos iam e voltavam. O baile na comunidade não parou em nenhum momento. Até hoje ele continua acontecendo né. Poderia ter sido melhor, mas faz a diferença, sempre faz a diferença,” avalia”. Além da residência médica havia os alunos da graduação em medicina que tiveram as aulas suspensas e ficaram trabalhando online, alimentando os dados na planilha e fazendo telemonitoramento, orientando os pacientes a retornar a unidade para avaliação em caso de sinais de alarme. Houve teleconsulta também, mas não foi implementada desde o início, somente a partir de junho ou julho de 2020.
Maria Aparecida relata que Inicialmente, os exames estavam demorando entre uma semana a 15 dias para sair o resultado devido ao grande volume de usuários A comunicação do diagnóstico era um momento difícil pois era orientado sobre isolamento social e muitos não cumpriam: “Olha, o senhor tá em isolamento social. Vai ficar tantos dias em casa. Não pode sair(...)”. “(...) não pode aglomerar, vamos fazer o distanciamento mas parece que as pessoas esquecem, e quando você vai ver tá todo mundo junto.” Foi então que foi separado o terceiro andar da unidade apenas para atendimento de COVID, como tentativa de não prejudicar as demais linhas de cuidado, retomados apenas com os grupos prioritários. A preocupação maior eram as gestantes, as crianças e os hipertensos, diabéticos, pacientes com risco cardiovascular mais avançado e muitos destes perderam o seguimento. Os que permaneceram não tinham como receber um atendimento completo, apenas eram renovadas as prescrições, e com isso muitos descompensam. A gerência dos processos foi perdida, no sentido de que os atendimentos eram realizados sob demanda, independente da equipe, que é uma forma diferente para quem está acostumado com a estratégia de saúde da família, por conta da questão do vínculo com a equipe, de conhecer o território e conhecer seu usuário.
“Segunda-feira, quando a gente chegava para trabalhar, você não conseguia passar no corredor. Eu não sei se porquê as pessoas não queriam ir para emergências. E aí acabavam esperando o final de semana passar para acessar a unidade. E assim sempre muito cheio.”
A entrevistada compartilha o número expressivo de usuários que começaram a fazer tratamento medicamentoso e/ou terapia, sobrecarregando a unidade que já não estava dando conta dos demais pacientes crônicos, como hipertensos e diabéticos. “Fazendo um atendimento comum, usuário [era] hipertenso, ele começava a chorar na sala: ‘eu perdi meu emprego’, ‘eu perdi meu parente’, ‘eu perdi um amigo’, ‘meu casamento não tá bem depois do covid’ ou ‘eu sofri violência’”. Isso tudo desorganizou várias famílias”. O número de casos de violência doméstica também aumentou muito. Ao relatar sobre o protocolo de atendimento, este estava em constante evolução: “Uma orientação que a gente dava a um paciente num determinado momento, no momento seguinte já não estava valendo de mais nada, já era outra coisa e isso deixava todo mundo desestruturado, né?!”. Os protocolos utilizados eram sempre de acordo com o Ministério da Saúde.
Maria Aparecida nos conta que os pacientes não se conformavam com determinados atendimentos, buscando outros locais para conseguir prescrição desejada ou repetiam o teste por achar que o resultado sairia mais rápido. Até hoje os usuários solicitam medicações específicas: “ah eu quero um antibiótico”, “eu quero ivermectina”, “eu quero isso, porque isso é melhor.” Houve muita divergência. Segundo ela, a ivermectina foi o auge, a principal substância solicitada, já a cloroquina foi menos frequente. Com o atendimento de pacientes advindos da rede particular, houve conflitos e uma série de reclamações, devido a prescrição de outras medicações, e a comparação entre os setores: “por que não tem [a medicação] ?”; “porque vocês não prestam!”; “vocês não sabem nada!”; “(...) porque eu fui no particular, eu fui no outro lugar e consegui mas aqui vocês não querem passar”. A chegada do teste do antígeno ajudou bastante devido a rapidez do resultado, certas situações ficaram mais fáceis de serem manejadas
Sobre a questão da vacina: “Vacinar toda essa população e tanto questionamento, tanta coisa, tá sendo até hoje muito difícil! Um desgaste, todo dia a gente pergunta quando é que isso vai melhorar, porque a equipe só não trabalha domingo. No começo da vacina toda a equipe trabalhou no carnaval e todos os feriados.” Atualmente há um rodízio aos sábados. Ela compartilha que: “o principal problema da vacina é a questão da idade. Por vezes o usuário não está no momento para fazer a vacina, nem sempre é simples fazê-lo entender as condições para recebê-la: estar dentro da faixa etária, estar bem de saúde e não ter tido COVID recentemente”. “(...) Você faz uma anamnese e o paciente omite.” Se ele tem uma reação adversa ele tem que voltar na unidade para fazer a notificação, e muitas das vezes, eles não retornam até o momento da segunda dose, já assintomáticos.
“Tem vacina aí mesmo?”, a desconfiança é outra situação recorrente, muitos duvidam que a vacina foi realmente aplicada. Apesar de aspirar, demonstrar, explicar, as pessoas estão preocupadas em tirar foto, muitas vezes deixando de prestar atenção no que foi dito e realizado. A vacina é segura, afirma, porém enfatiza a necessidade do uso de máscara e higiene das mãos, pois já presenciou colegas com quadro de COVID pós vacina, a maioria de uma forma branda, mas também casos graves, incluindo um óbito.
Maria Aparecida também compartilha sobre sua experiência hospitalar e destaca a tristeza. “É uma solidão muito grande. Você deixar o paciente dentro daquele quarto, naquela situação de isolamento, é muito chocante. Para a gente da enfermagem que está ali o tempo todo, um paciente dentro do quarto, seja onde for, ver um tipo de óbito desses, dói muito. Isso acho que abalou demais a toda a equipe, isso dói demais, você querer estar ali, querer fazer algo mais e você vê que não pode, você não tem como, foge das suas mãos, foge do seu potencial para você fazer algo mais do que você já fez”.
“Tem boletim médico, durante o dia, tem o celular que a gente mostra e fala, mas quando a internação é longa e o paciente talvez já não esteja mais contaminando, a gente faz uma visita guiada, que a gente coloca o capote na família, bota a máscara. Mas a família vai toda paramentada, não entra sem paramentação não. Ameniza a angústia da família”.
Quando questionada sobre alguma situação crítica, recorda-se da primeira intubação do paciente com COVID a qual participou, e a equipe não estava preparada. Foram muitos pensamentos: “gente to com máscara?", “to com faceshield?”, “Ai meu Deus, vamos abrir a janela”, “Vamos abrir as portas”. “Então, como é que vai ser? Meu Deus! Vamos entubar e tá todo mundo contaminado aqui.” “Mas aí, a coisa fluiu, e não adianta a gente tem que entrar. É lógico que melhorou muito. Hoje em dia, uma intubação é rápida com mais segurança, não é com tanto medo, é uma coisa mais tranquila, mas no início era uma coisa assim apavorante. ‘Meu Deus, como é que faz para conseguir, não tem medicação para intubar direito. Como é que a gente vai fazer? O que que a gente vai usar?’”.
Na unidade básica não havia máscara de Venturi, então se usava máscara comum ou de macronebulização, que não é indicada para esses casos. “Então você vai colocar, não vai colocar? E aí o que que você vai fazer? Eu vou colocar, não vou deixar de colocar de jeito nenhum. E aí a gente colocava e abria a janela”. “A nossa arma era sempre abrir a janela. A gente colocava e abria a janela, e ficava olhando não de muito perto. Dando certo, tudo ok, saturou bem, vamos lá. Agora vamos entrar, vamos fazer as medicações, vamos fazer o que tem que fazer. Isso no início em que não tinha capote adequado, o capote era de pano, até o capote descartável chegar demorou muito! E assim nós passamos por isso, muitas situações, para poder atender ao paciente, se ver mais em risco”.
Por fim, para o profissional de saúde recomenda calma e tranquilidade, seja ele na na estratégia de saúde da família, seja ele na área hospitalar. A família, o cliente, o usuário em primeiro lugar. “Só acho que a gente tem que ter primeiro de tudo, a calma e paciência e discernimento. Eu tô aqui. Que que eu tenho que fazer? Como é que eu vou cuidar?”.
Kátia Brito - Enfermeira de Família e Comunidade
Katia Brito, é enfermeira, formada desde 2018. Hoje ela atua na zona sul do Rio de Janeiro na CMS Pindaro de Carvalho. Ela conta que vivenciou de perto a pandemia, visto que ocorreu logo no seu primeiro ano de residência, a qual foi realizada na Comunidade da Rocinha.
Ela inicia relatando que acha que não contraiu covid-19, dado que não teve sintomas e nem realizou testes, visto a falta de disponibilidade de testes no primeiro ano da pandemia. Kátia relata sobre sua experiência de adoecimento como um medo constante com relação ao Covid-19, visto que a enfermeira conta que tem intensas alergias medicamentosa e não pode tomar qualquer medicamento, ou seja, Katia demonstra que na época vivia um medo constante tanto da morte quanto do possível sofrimento que o processo de adoecimento podia lhe causar.
Assim, depois de um ano, Kátia afirmou que teve Covid-19, por volta do final de novembro de 2021, e seus sintomas foram febre alta durante alguns dias, tosse, que persistiu por 12 meses, queda de cabelo, e alguns casos pulmonares decorrentes do caso dos sintomas prolongados. Além disso, devido a sua condição de saúde, de graves alergias, não podia se medicar o que lhe trouxe muito desconforto, somando-se a baixa autoestima, dado que a queda dos cabelos foi uma experiência pessoal muito ruim. Ou seja, para a enfermeira, a Covid-19 interferiu de diversas maneiras na sua vida, para além do processo de adoecimento.
Além disso, Kátia, que participava da linha de frente durante a pandemia, visto que trabalhava, e ainda trabalha na atenção primária relata que o medo pelo desconhecido era muito presente na época. outra questão que ela coloca é a enorme demanda que tinha na época, visto que ninguém sabia muito sobre a Covid-19 e os pacientes chegavam na clínica em busca de orientações sobre a doença, segundo ela: “teve um dia que eu tive que dar mais de 120 orientações para pacientes em um único dia ”. Dessarte, toda essa demanda, lhe causou um cansaço físico e mental muito grande na época que acabou resultando em um processo muito angustiante. Outra situação, de acordo com a profissional da saúde, foi a preocupação quanto à possibilidade de haver uma falta de equipamentos de proteção individual, que muitos colegas de trabalho relataram essa falta em determinados postos de saúde, juntamente com o sentimento de abandono e desamparo que o próprio governo acabou transpassando na época para muitos profissionais da saúde.
Ademais, Katia compartilha que receber a vacina em 2021 foi “um suspiro de alívio” pois, apesar de toda a repercussão negativa ao redor do Covid-19 e da vacinação a chegada da vacina foi um momento muito importante mas ao mesmo tempo, por trabalhar na vacinação, todo esse momento foi muito cansativo, novamente, tanto fisicamente quanto mentalmente, pela alta demanda da população. nesse sentido, a enfermeira relata de forma muito pesarosa, que o momento pré-vacina e pós-vacina, foram os dois momentos de maiores tensões e exaustão em que passou durante a pandemia, como profissional de saúde.
Os pontos positivos durante todo o processo da pandemia, consoante Kátia, foram, que na época, as pessoas levavam cartazes para as filas de vacinação e teve um cartaz que a marcou muito, no qual uma menina estava segurando um cartaz com a foto do pai que tinha falecido a menos de um mês e estava escrito: “essa vacina é pra você! Estou tomando a vacina que você não teve a chance de tomar!”. Assim, esse momento a marcou de forma muito profunda, e ela diz que nesse momento ela se colocou no lugar dessa menina e sentiu de forma muito empática o que a menina sentiu, ou seja, todo o sentimento de perda e angústia a tomaram conta. Porém, em contraponto a esse momento, ela relata que um senhor que se dizia médico, falou para a profissional: “finge que você está aplicando a vacina em mim!” pois ele precisava da vacina para viajar e não queria tomar a vacina pois não acreditava na sua eficácia, ela relata que no momento em que o senhor lhe disse isso, ela não paralisou e ficou sem reação, embasbacada com toda a situação. quando voltou a si, ela pediu que o senhor se retirasse da sala, pois ela não iria fingir dar a vacina. muito contrariado o senhor aceitou tomar a vacina, somente porque precisava dela para viajar. Em suma, para a enfermeira, o momento da pandemia foi um momento no qual ela viveu diversas experiências, que a marcaram tanto positivamente quanto negativamente.
Outro cenário, vivenciado pela enfermeira, foi em 2022, durante a onda da Omicron, no qual houveram um grande número de casos na cidade do Rio de Janeiro e, assim, kátia afirma que muitas pessoas voltaram a procurar a vacina e também realizar testes.
Para Kátia, o que mais a chamou a atenção enquanto profissional da APS foi a grande comoção em torno da tentativa de vacinação de toda a população, o cuidado com pacientes que tiveram a Covid-19 e também para aqueles que tiveram sequelas advindas do Covid. O que para ela, foi uma experiência ruim, foi que todo esse cuidado durante a pandemia com o Covid, acabou interferindo no cuidado com outras doenças, provocando a secundarização de alguns cuidados, como por exemplo o cuidado na primeira infância, o cuidado com a tuberculose, o cuidado com doenças mentais entre outros. Ela até afirma que a pandemia também interferiu muito no quadro de doenças mentais, sendo possível observar sequelas muito negativas de todo o processo de isolamento social.
Como profissional da saúde, os maiores impactos, observados por Kátia, no território tanto enquanto trabalhava na rocinha, quanto durante o atua trabalho na CMS Pindaro, ‘e a questão da longitudinalidade, ou seja, o conhecimento pessoal da população que ela atendia de perto era muito grande, e por esse contato próximo, a pandemia acabou provocando muitos óbitos no território onde ela trabalhava. Então uma coisa que ela relata de forma muito sentimental é a lembrança de todas essas pessoas que haviam falecido devido ao COVID. Outra questão muito colocada durante a entrevista, foi a solidão e a depressão de muitas pessoas que ela acompanhou e ainda acompanha. Ou seja, a presenca da morte iminente, o sentimento de luto e a solidão são algo muito comum em ambos os territórios em que ela trabalhou e ainda trabalha.
Para finalizar, Katia fala sobre a desvalorização da sua profissão como enfermeira e enfatiza a importância da enfermagem para o cuidado de toda a população, que a pandemia acabou, momentaneamente fazendo para a categoria. Ou seja, ‘é imprescindível valorizar qualquer profissional da saúde e, Katia intensifica a necessidade de mostrar a importância desses profissionais de saúde.
Leonidas - Enfermeiro de Família e Comunidade
Leônidas, 35 anos, se autodeclara branco, casado, enfermeiro formado há 6 anos, atualmente é responsável técnico em um Posto de Saúde no Rio de Janeiro. Segundo o entrevistado, mal ele começou a trabalhar e a pandemia já iniciou.
Em janeiro de 2022, teve sua experiência como paciente contraindo covid-19, mesmo tendo muito cuidado e utilizando os equipamentos de proteção individual (EPIs). Seus sintomas permaneceram ao longo de 10 dias e foram tosse, coriza e febre.
Como profissional de saúde, com o início da pandemia, seu maior desafio foi organizar o Posto de Saúde para manter o acesso à atenção primária e, ao mesmo tempo, ter suporte para atender a demanda dos casos da covid-19. Ele compartilha que a redução da equipe e a insegurança dos profissionais de saúde intensificaram a dificuldade de sua administração: “algumas técnicas de enfermagem não queriam ficar na testagem, pois tinham medo de contrair COVID”, afirma. Durante a primeira onda, entre abril e maio de 2020, o número de óbitos foi grande, inclusive de pessoas conhecidas por ele: “muitos pais e avós de amigos meus contraíram essa doença e foram à óbito”, relatou. Na segunda onda, em meados de 2021, a vacinação já estava em curso, impactando no número de casos, se comparado com a primeira onda. Apesar da melhora nas estatísticas e do início da vacinação, uma das técnicas de enfermagem, a qual trabalhava com ele, foi internada em estado grave, mesmo depois de tomar duas doses da vacina, todavia não faleceu.
Com o início da aplicação da vacina, Leônidas se deparou com um novo desafio: esclarecer a população acerca dos grupos prioritários: “sempre devo ficar atualizado. Não é exagero dizer que todo dia entra uma nota nova sobre a vacinação, sobre a dose do reforço”. Devido à grande demanda, às regras dos grupos prioritários e à “xepa das vacinas” (sobra de vacinas com curta validade), houveram alguns conflitos entre a população e os profissionais de saúde, pois tinham pessoas que queriam burlar as normas, seja pela tentativa de priorização, seja por tentar escolher a vacina em um momento escasso.
Quanto à vida pessoal, o seu maior impacto da pandemia foi ficar muito tempo sem visitar sua mãe: “só vi minha mãe depois da vacina, depois da segunda dose da vacina. O entrevistado também comenta sobre o medo de transmitir o vírus para a sua esposa, pois além de estar na linha de frente, utilizava transporte público, o que o deixava mais exposto ao vírus. Ao final da entrevista, afirma que a retomada ao serviço normalizado no atendimento à saúde primária o impulsionou a estudar novamente, pois retornaram serviços os quais estavam paralisados e ele passou muito tempo sem praticá-los.
Bruna Campos - Enfermeira de Família e Comunidade
Bruna é enfermeira e atua há oito anos na atenção primária. Ela nos contou que durante a pandemia continuou atuando na clínica da família que atua na Gávea, e teve que ser afastada três vezes do trabalho por ter contraído COVID-19.
Ela disse que sua maior preocupação ao contrair pela primeira vez em abril de 2020 foi transmitir COVID-19 para seus pais, uma vez que eles são idosos e têm comorbidades como, hipertensão e diabetes. Como Bruna morava com eles, passou a morar com a irmã durante um ano para evitar a transmissão aos pais: “eu era a maior fonte de risco para eles”. Ela foi afastada do trabalho pelos sintomas que apresentou, pois o teste de PCR demorou a sair, mas quando saiu, constou positivo. Para ela, o sintoma mais significativo foi a febre alta, que a deixava com fraqueza no corpo.
Em agosto de 2021, Bruna teve COVID-19 novamente, desta vez, ela contou que os sintomas foram amenos, como dor de cabeça, conseguindo lidar melhor, pois já havia tomado a primeira dose da vacina e também já se tinha um maior conhecimento sobre a doença. Em outubro de 2022, ela teve a terceira vez de COVID-19 e apresentou sintomas leves, como dor de cabeça, tosse e diarreia. Em nenhuma das infecções Bruna precisou de ir à emergência, ela contou que ficou em casa, afastada do trabalho.
No aspecto profissional, Bruna disse que foi muito difícil lidar com a pandemia. Um ponto que ela trouxe foi que os pacientes que precisavam de acompanhamento de vigilância, como hipertensos e diabéticos precisaram ser deixados de lado para que o atendimento da população com COVID-19 fosse atendida. E quando o serviço voltou a atender esses pacientes crônicos, havia uma demanda grande reprimida, incluindo pacientes descompensados pela sua doença. Bruna trabalhava três dias, dos quatro que ela ia, na vacinação para COVID-19, e no outro dia atendia os outros pacientes crônicos da clínica: “um dia não dava para atender os pacientes direito.” Ela disse que a situação começou a melhorar quando passaram a diminuir os dias de vacinação e voltaram a atender os pacientes da clínica. Emocionalmente, Bruna disse que ficava angustiada por não conseguir praticar a medicina da família e comunidade por conta da COVID-19: “era entrar lá e sentir como se estivesse em uma UPA, só tinha COVID, COVID, COVID.”
Em 2020, a clínica da família que Bruna trabalha separou uma sala para receber os pacientes com suspeita de COVID-19. Ela contou que às vezes tinham filas enormes de duzentas pessoas para testar. Bruna compartilhou que era difícil ver a área de acompanhamento dos pacientes vazia, enquanto que a área da testagem estava sempre cheia. Em 2020, por não haver muitas informações sobre a doença, Bruna disse que era difícil orientar os pacientes, já que os próprios profissionais sabiam pouco: “tinha paciente que culpava a gente, como se a gente estivesse negando alguma coisa.” Além disso, ela pontuou que a mídia também propagava informações errôneas sobre determinados medicamentos e como os profissionais de onde ela trabalha não indicava tais medicamentos, ela disse que gerava revolta em alguns pacientes, chegando a ter pacientes que ameaçavam chamar a polícia. Outra dificuldade foi que, no início, havia uma fila de prioridade para tomar a vacina, e teve pessoas que acusaram a clínica de estar negando a vacina e também ameaçavam chamar a polícia.
Bruna contou que 2021 foi cansativo e chegou a desenvolver síndrome do túnel do carpo. Eram aproximadamente mil e duzentas vacinas diariamente e havia poucos profissionais para aplicar. Além de aplicar a vacina, eles tinham que confirmar estoque, conferir as vacinas, lidando também com essa parte logística.
Quando a vacina para os profissionais da saúde foi liberada, Bruna contou que teve um certo receio, pois era uma vacina com pouco tempo de estudo. Depois de uma semana de liberação ela tomou a vacina e contou que dentro de poucas horas teve reação alérgica e desenvolveu urticária por todo corpo, demorando vários meses para melhorar. Bruna compartilhou que mesmo com o receio, após tomar a vacina sentiu alívio e esperança de que as coisas melhorassem. Ela lembrou de quando a sua avó se internou por conta de uma diverticulite, acabou contraindo COVID-19 no hospital e veio a falecer.
Bruna trabalhou na frente da vacinação e contou que diariamente os protocolos mudavam e eles precisavam ficar acompanhando a todo momento essas mudanças. Muitas vezes saía na mídia antes do que para os profissionais da saúde. Havia também o problema das pessoas que queriam escolher a vacina que iriam tomar, bloqueando filas e atrasando as aplicações. Quando as vacinas acabavam, eles tinham que entrar em contato com o departamento responsável para repor e o atraso da aplicação deixava as pessoas irritadas. Se a clínica demorasse a abrir o atendimento da vacina também era motivo para que os indivíduos ficassem irritados. Bruna contou que esses pontos eram difíceis de lidar e quando ela chegava na clínica já se sentia estressada por ter que lidar com essas questões. Além disso, tinha a mídia que sempre ia nessa clínica para fazer reportagens, ela compartilhou que entravam no espaço que ela estava trabalhando, ligavam a luz da câmera perto demais dela e isso, além de a deixar pressionada, a incomodava e atrapalhava seu trabalho. Por outro lado, Bruna disse que haviam pessoas que se emocionaram ao receber a vacina, que ficavam contentes. Ela também recebeu presentes em retribuição ao trabalho dos profissionais e isso a motivava.
Com a pandemia, Bruna sentiu que a dinâmica do seu território de atuação mudou. Muitas pessoas que tinham plano de saúde particular perderam seus planos e passaram a ser atendidos na clínica da família. Ela contou que muitos pacientes vieram com a demanda de querer passar por médicos especialistas, que antes tinham fácil acesso no convênio, outros não gostavam de ser atendidos por enfermeiros, mas ela disse que, aos poucos, essas situações foram sendo contornadas. Também teve o resgate de pacientes que não foram à clínica durante a pandemia e ficaram sem acompanhamento por cerca de três anos, incluindo crianças e adolescentes com vacina atrasada.
Em relação a equipe, Bruna contou que há até hoje profissionais com receio de atender pacientes com suspeita de COVID-19 na clínica, que andam de máscara. Ela disse que não tem receio e quando vai atender um paciente com suspeita, coloca a máscara e atende normalmente.
Como conselho para uma pessoa que teve COVID-19 confirmado, Bruna aconselhou que não precisam ter medo, disse que é uma doença que já está no nosso meio, e sempre tenta acalmar a pessoa. Orienta os pacientes que têm oxímetro a usar, orienta quem precisa testar novamente, se os sintomas piorarem, orienta a buscar uma UPA. Para o familiar do paciente com COVID-19, ela alerta sobre sinais e sintomas, sobre alimentação e hidratação. Para os profissionais de saúde, ela alerta sobre testar tuberculose, sobretudo quando o paciente persiste com sintomas após algum tempo que deveriam ter amenizado.
Por fim, Bruna destaca que os profissionais foram muito sobrecarregados na pandemia e que é necessário mais profissionais para dar conta da demanda. Ela compartilhou que gosta muito de trabalhar na atenção primária e ter o retorno da população é gratificante: “ver a gente receber esse carinho da população é muito gostoso.”
Débora - Enfermeira de Família e Comunidade
Débora, 34 anos, se autodeclara preta, solteira, enfermeira formada há 12 anos e residente de Bento Ribeiro, no Rio de Janeiro. Trabalhava em uma clínica da família no bairro de Deodoro, na época em que foi infectada pelo Novo Coronavírus, no final do mês de agosto de 2020. Apesar de sua função envolver o manejo de muitos pacientes com sintomas de covid-19, acredita que foi contaminada no ambiente familiar. Seu irmão havia voltado com sintomas gripais de Minas Gerais, após realizar missão pelo Exército Brasileiro, e acabou contaminando a sua mãe e sua irmã. Na tentativa de cuidar das pessoas que amava, a enfermeira mudou-se para a casa dos familiares e também contraiu o vírus.
Foram momentos muito difíceis para Débora. Seu irmão chegou de viagem e, devido ao quadro que apresentava, se encaminhou ao serviço de saúde da unidade em que trabalhava para realizar atendimento. O médico optou por não solicitar nenhum teste de covid-19. A explicação seria porque o militar, meses antes, realizou um exame que resultou positivo para a infecção, vindo a recuperar-se dos sintomas alguns dias depois.No caso da irmã de Débora a situação foi um pouco mais complicada, pois ela apresentava muita tosse. “parece que o pulmão vai sair pela boca”, comparou a enfermeira. Em vista disso, levou sua irmã para uma Unidade de Emergência no município de Mesquita, na Baixada Fluminense. Débora relata que esperou durante muito tempo até o atendimento e a realização do raio-X. O teste covid-19 não foi realizado na ocasião. No atendimento, o médico não forneceu muitos detalhes sobre o resultado do exame e também não perguntou se a paciente havia tido contato com algum infectado. A conduta foi receitar alguns medicamentos e mandá-la de volta pra casa.
No mesmo dia da primeira consulta, a situação da irmã se agravou e Débora teve que levá-la novamente para um hospital. Dessa vez, foi no município de Nilópolis, onde foi testada e fez uma nova radiografia. Com o teste positivo, foram-lhe receitados outros medicamentos e a afastaram das atividades laborais. A irmã tinha obesidade e hipertensão, fatores que poderiam agravar seu quadro de saúde. A moça necessitou de 14 dias para sua recuperação e, apesar da evolução importante da doença, não houve necessidade de que ficasse internada em um hospital.
A partir dos aprendizados que obteve sobre questões raciais em seu curso de mestrado, Débora percebe que as situações que ocorreram com seus irmãos não foram casos isolados, mas sim consequência do racismo, da negligência nos cuidados em saúde da população preta brasileira, que se tornaram mais latentes no contexto da pandemia. A enfermeira questiona o que fez a sua irmã, apresentando um quadro emergencial, em um hospital particular praticamente vazio, demorar tanto tempo para ser atendida? Indagou também sobre a condução do caso pelo médico do irmão: “O que fez ele pensar que outros três militares precisavam ser testados e o meu irmão não? Porque não se tinha nenhum artigo científico, nenhum boletim, nenhum nada, nenhuma nota técnica, que dissesse que quem pegou COVID uma vez, não pegava de novo.”
Simultaneamente ao seu adoecimento e ao dos irmãos, teve que lidar com as consequências gravíssimas da infecção de sua mãe. Seus próprios sintomas de fraqueza e anosmia eram pouco significativos frente a preocupação com o agravamento do estado de saúde de uma pessoa tão amada. Débora internou sua mãe com um quadro respiratório grave. A saturação de oxigênio já estava muito baixa, em 66%. Como não havia a possibilidade de realizar visitas, eles precisavam esperar a ligação dos profissionais de saúde do hospital, que inclusive eram momentos que lhe causavam grande ansiedade. Era Débora a pessoa que atendia as ligações e falava com os médicos. Essa era uma situação que gerava em si uma grande carga emocional, pois em um momento de enfermidade sentia-se na responsabilidade de transmitir de forma mais tênue as notícias vindas do hospital para todas as pessoas que tinham carinho por sua mãe, incluindo familiares e amigos.O quadro de saúde da mãe de Débora piorou de forma significativa e em pouco tempo; logo no início do mês de setembro, ela veio a falecer. Somente no dia seguinte a notícia foi dada aos familiares, que foram chamados ao hospital. O momento foi de muita agonia e tristeza para Débora, sentia-se perdida e desamparada. O fato de não ter conseguido acompanhar a mãe nos últimos dias de vida contribuiu para que o momento fosse ainda mais sensível. “A COVID é tão cruel que ela te tira da presença da pessoa muito antes da morte”, declarou ela.
Durante os momentos de dificuldades que Débora enfrentou, ela encontrou apoio em amigos da família, do trabalho, em colegas e professores do mestrado e inclusive de pessoas as quais não esperava receber tamanho acolhimento: “Depois de tudo o que aconteceu com eles, foi a única parte boa que eu posso citar de todo esse período”, ressalta ela.
Outra área importante da vida de Débora, que a ajudou a enfrentar as dificuldades, foi a espiritualidade. Na religião umbanda acredita-se que “quando a gente tem a nossa missão e a gente cumpre, a gente vai embora, a gente não fica”. Tal premissa, apesar de fazer parte da vida espiritual da enfermeira, foi difícil de ser assimilada por Débora, quando a morte ocorreu com alguém tão próximo sentimentalmente quanto a sua mãe. Apesar disso, a enfermeira, com o passar do tempo, encontrou conforto ouvindo a palavra e seguindo as instruções de seus líderes espirituais.
Depois da infecção por covid-19, estar na linha de frente do cuidado da pandemia,no final do ano de 2020 e no período que se seguiu, tornou-se um desafio ainda maior para a enfermeira; Antes, sentia-se uma super-heroína, mas a perda de um ente querido a deixou com medo e preocupação. Ela acredita que outro aspecto que se modificou foi que, tendo passado pela mesma experiência que o paciente, passou a ter ainda mais empatia no cuidado.
Durante a pandemia, Débora trabalhou em duas clínicas da família diferentes. Em ambas havia grande demanda dos profissionais da saúde. A saúde da cidade do Rio de Janeiro estava em crise antes mesmo de começarem os primeiros casos de infecção pelo Novo Coronavírus, em fevereiro. A cobertura da Atenção primária havia diminuído muito, houve também redução de salário dos trabalhadores. Desse modo, a equipe nas unidades de saúde estava reduzida e os trabalhadores sobrecarregados.
Débora coordenou os atendimentos aos pacientes infectados, posteriormente, com a chegada da vacina, planejou as estratégias de aplicação dos imunizantes, dentre outras atividades. Toda essa pressão gerava grande estresse nos profissionais da saúde, abalando sua saúde mental.
Ademais, Débora faz questão de alertar sobre os casos de assédio no ambiente de trabalho. Relatou que os profissionais são muito cobrados quanto à eficiência, mas não possuem um lugar digno de trabalho e muito menos salário compatível. Mesmo com todas essas situações desfavoráveis, ainda sofrem com retaliação por parte dos seus superiores.
Ao enviar um recado para pacientes com COVID 19, a enfermeira Débora alerta para que as pessoas se conscientizem, usem máscara, se vacinem e principalmente que respeitem as orientações dos profissionais de saúde. Isso no intuito de evitar o alastramento de infecções. Além disso, incentiva os trabalhadores da saúde a reivindicar melhorias nos seus postos de atendimento, melhores salários. “A gente precisa se instrumentalizar e começar a cobrar o que é nosso por direito”.
Tayná - Enfermeira de Família e Comunidade
Tayná, 35 anos, branca, enfermeira formada há 10 anos e atua na atenção primária à saúde há 7 anos. Seus primeiros sintomas foram cansaço e falta de ar, que ela associava ao uso de máscara e de paramentações. A enfermeira conta que minimizou os sintomas, relacionando-os ao medo e ansiedade disparados pela pandemia. Ela havia recebido anteriormente 2 doses da vacina CoronaVac, em um dos momentos mais iniciais da vacinação no Brasil, já que atuava na linha de frente de combate à doença. Nesse momento, ela trabalhava no bairro do Catete, onde fez o teste PCR, apresentando resultado positivo, o que para ela foi uma surpresa, uma vez que desprezava os sintomas referidos.
Ela foi afastada do trabalho assim que recebeu o resultado, se isolando em casa. Foi orientada a procurar uma unidade hospitalar caso surgisse algum sintoma mais grave. Com o resultado positivo, ela ficou bastante preocupada e com medo do agravamento dos sintomas.
Ela reside com o marido, que não apresentou nenhum sintoma. Ele já estava trabalhando de home office e comunicou ao emprego a contaminação dela. Ela também participa do cuidado da mãe dela, que é idosa e diabética, mantendo as visitas à mãe durante a pandemia. Felizmente, nenhum familiar desenvolveu a doença e para Tayná, a maior repercussão da doença foi na saúde mental.
A experiência de trabalhar durante a pandemia já assustava bastante Tayná e ela questiona: "Quem não foi afetado nesse momento de pandemia? Acho que não há uma pessoa neste mundo que não tenha sido afetado". Mesmo com o medo, foi despertada nela uma vontade de ajudar e ser útil, se candidatando para trabalhar em um hospital de campanha.
Segundo a entrevistada, passar pela pandemia foi difícil pois não se tinha certeza sobre a doença. Ela lembra que, no início da pandemia no Rio de Janeiro, havia a orientação de manter um cuidado maior com paramentação e isolamento com relação a pessoas que tivessem voltado há no máximo 14 dias do exterior e com o tempo viu-se a necessidade de realizar o atendimento das pessoas de forma mais isolada. Conta que o medo era muito grande devido às dúvidas sobre o uso de equipamentos de proteção individual (EPI), mais especificamente sobre como se paramentar e se desparamentar e sobre como realizar as atividades diárias no trabalho com o uso desses equipamentos. Relata que, mesmo que não estivesse trabalhando em um hospital, como atuava na atenção primária, ela teve muito medo de se contaminar e de contaminar outras pessoas e teve muita preocupação em seguir todas as recomendações de saúde para evitar maiores danos.
Ela lembra um momento que a marcou, quando houve orientação sobre como preparar o corpo caso ocorresse óbito na unidade básica de saúde. Para ela, era como se estivesse "sentindo a morte tão próxima em um lugar que não é comum".
Ela destaca a importância do toque para ela, tanto como pessoa quanto como profissional. Também relata que sentiu muita falta do abraço e o toque, estar mais junto. Para ela, o olhar é o que podia ser oferecido naquele momento.
Uma experiência vivida por ela durante a pandemia foi a recusa de alguns pacientes em tomar vacina devido a efeitos adversos. Para ela, com a falta de conhecimento, absorve-se o que é negativo, usando como exemplo o fato de as pessoas se informarem erroneamente por meio do Whatsapp e de vizinhos quando não há conhecimento adequado sobre a importância e a segurança das vacinas.
Como profissional, seu desejo é que os profissionais da saúde incentivem e destaquem a importância da imunização. Que eles estudem mais, tenham empatia e exerçam a educação em saúde, de forma a combater a desinformação sobre as vacinas disseminadas na sociedade. Como pessoa otimista e esperançosa, ela espera que as pessoas aprendam com a situação mundial, se tornando mais empáticas, e que a pandemia engrandeça e favoreça o avanço da ciência.