Ademir
Ademir, 51 anos, morador da cidade do Rio de Janeiro, começou a sentir febre na noite de 7 de abril de 2020, cerca de um mês depois da OMS ter anunciado a pandemia da covid-19.
"Amanheci com muito frio, me arrepiando. Achei estranho", sua esposa, preocupada ligou para o suporte telefônico da prefeitura, que lhe informou da necessidade de isolamento social e acompanhamento dos sintomas. Ficou por uma semana isolado em seu quarto, sem contato com sua família, recebendo comida pela fresta da porta. Permaneceu febril, iniciou a tossir e aos poucos perdeu o paladar. Nesse momento, decidiu procurar atendimento na Fiocruz, onde foi avaliado e liberado com as mesmas orientações que obteve pelo telefone. No entanto, já pressentia o pior: “Não me dei por satisfeito"
Por já ter sido atendido no serviço de ortopedia do hospital, Ademir resolveu procurar a emergência do HUCFF. Após uma noite em que não conseguiu dormir devido à falta de ar, Ademir veio à ao Fundão convencido de que precisava de maior ajuda. Nesse dia, realizou exames de imagem e de sangue que acusavam estado grave e necessidade de cuidados intensivos. Emociona-se ao lembrar de sua esposa chorando, depois que a equipe decidiu interná-lo: "Eu falei a ela que ia voltar. E ela se foi… não deu nem pra gente se abraçar". Nos dois primeiros dias da internação, manteve-se em suporte de oxigênio e chegou a permanecer em posição prona, mas logo foi entubado.
Ao longo da sua intubação, o hospital mantinha comunicação diária com sua esposa através de ligações telefônicas. "Minha esposa até fez amizade com a estudante que ficou responsável por essa comunicação, mesmo que muitas vezes as notícias transmitidas por ela eram ruins. Ademir apresentou diversas complicações durante a internação, como perda da função dos rins, arritmias cardíacas, diabetes, perda de massa muscular e escaras. Ficou ao todo 17 dias entubado e logo em seguida traqueostomizado.
Ao recuperar a consciência, sua primeira lembrança é a imagem de uma médica sorrindo, feliz por vê-lo acordado. "Ela falou que ficava tomando conta de mim". Ademir foi um dos primeiros casos de sucesso no suporte à covid-19 do HUCFF, em uma época em que a mortalidade pela covid-19 era alta. Ele percebia os profissionais que o acompanhavam orgulhosos, felizes e emocionados ao vê-lo recuperando-se. Os vínculos formados foram profundos: "Eu queria dizer que esse hospital aqui… eu sempre tive uma admiração por ser universitário, por formar médicos, enfermeiros, vários profissionais. E devido a isso tudo, eu fiquei mais próximo dele. Sou muito agradecido ao tratamento que eu tive aqui."
Após acordar, tinha o grande desejo de falar com sua família. No entanto, devido a uma lesão em cordas vocais ocasionada pelo período em que ficou entubado, estava sem voz. A equipe de enfermagem, notando que ele solicitava algo, tentou se comunicar com ele providenciando papel e caneta, mas também faltava-lhe a força e a coordenação para escrever. "Foi difícil, mas consegui me comunicar com mímica". A enfermeira que o acompanhava decidiu realizar, pelo seu próprio celular, uma ligação de vídeo para a esposa de Ademir. "Foi muito emocionante", ele pôde ver, pela primeira vez, vários familiares. Durante todo período, a família se reuniu em sua casa para apoiar sua esposa e filhas, e organizaram uma rotina de orações para sua recuperação.
Na maior parte em que esteve no ambiente da UTI, Ademir não estava propriamente com a doença covid-19, mas recuperava-se de suas sequelas. A principal sequela que desenvolveu em sua internação foram escaras, um tipo de lesão de pele formada depois que ficamos prolongadamente deitados e imóveis em uma mesma posição. Ademir ficou com escaras nos calcanhares e na região do cóccix, esta última mais profunda, que exigiu avaliação da cirurgia plástica. Mesmo depois da alta, foi acompanhado de perto pelo serviço especializado em integridade da pele do hospital (COMEIP).
Ademir comenta que sobre seu contágio, não sabe como aconteceu, apesar de ter algumas hipóteses, relata que trabalhava internamente no escritório, então tinha pouco contato com as pessoas. No entanto, na semana que antecedeu os sintomas andou de uber e ônibus, e antes também tinha ido a um bar.
Ao todo ficou 60 dias internado, 40 deles na UTI. Relembra dos 20 dias em que esteve na enfermaria como um tempo de reabilitação, de preparação para "ir embora", mas ainda em isolamento: "Nem na enfermaria eu pude receber visita". Após a alta, ficou por 2 meses em acompanhamento fisioterápico no HUCFF. À época, ainda usava cadeira de rodas devido às escaras nos calcanhares, e sua esposa sempre o acompanhava. Voltou a andar sem auxílio, cerca de 6 meses depois de ter recebido alta: "As coisas foram muito lentas para mim". Voltou a trabalhar 8 meses depois do início da internação, embora quisesse ter voltado antes. "Quando eu voltei a trabalhar, foi a melhor coisa do mundo. Porque me fortaleceu mentalmente, psicologicamente, e eu acho que voltei com mais prazer de trabalhar". Teve gastos financeiros com medicamentos e sessões de fisioterapia particular. Hoje em dia, vê o futuro com otimismo, e diz que o Ademir que superou a covid-19 e voltou à vida é “melhor que o de antes.”
Alcione
Alcione, 39 anos, Médico de Família e Comunidade, capixaba, reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e trabalhou desde o começo da pandemia na linha de frente em dois hospitais do sistema privado de saúde. Seguia os protocolos da covid-19, e preocupava-se, pois, é diabético e sabia dos riscos de agravamento caso tivesse a doença.
Em novembro de 2020 recebeu a visita de um familiar que estava contaminado e não lhe avisou. Uma semana depois, começou a apresentar sintomas gripais e posteriormente fez monitoramento em domicílio tomando os remédios sintomáticos prescritos por ele próprio. Logo em seguida, afastou-se do trabalho. Seu primeiro PCR foi negativo, mas não apresentou melhora, aumentando o cansaço, diminuindo a saturação e com febre persistente.
Inicialmente, buscou vaga nos hospitais privados ao qual seu plano de saúde era conveniado, mas não encontrou. Entrou em contato com seus colegas de faculdade, e um deles sinalizou que teria vaga no HUCFF, e por ele ter sido aluno, talvez tivesse abertura. Uma colega médica desse grupo o acompanhou até o hospital onde ele foi internado em CTI COVID, com acometimento pulmonar de 50%. Estava sob uso de oxigenioterapia, o que para ele enquanto médico significava um motivo de preocupação.
Com 14 dias de doença e pouca melhora, a equipe médica optou por fazer a pronação. Apesar do momento crítico, não precisou ser entubado: “E teve um deles que falou que eles estavam pensando na possibilidade (de intubação) caso eu piorasse. Teve uma das tomografias que eu fiz depois que deu uma porcentagem maior ainda de lesão. Teve uma tomografia que chegou a 80% de lesão. Eu acho que foi no momento mais crítico que eu estava”.
Sofria emocionalmente pela família e os impactos na vida das pessoas próximas, caso viesse a falecer. Isso causava muito medo, associado a preocupação consigo mesmo e se conseguiria se recuperar. Nesse processo, contou com as videochamadas realizadas pela equipe: “Às vezes eu não conseguia dormir, ficava a noite toda acordado e aí aqueles minutos ali de videochamada para mim eram ótimos e eu sabia que podia contar com alguém, tinha alguém preocupado comigo e aí me ajudou bastante no processo de recuperação da doença.”.
Alcione considera muito relevante em sua recuperação ter estado internado em hospital universitário, pois pôde ter acesso a um medicamento que estava sendo testado e que lhe causou uma melhora muito rápida. Ficou internado uma semana no CTI COVID e uma semana na enfermaria, totalizando 14 dias de internação. Após a alta, retornou a um dos seus locais de trabalho em uma semana: “Eu fiquei um mês, menos de um mês afastado do trabalho. Foi só naquele mês mesmo”. Com isso, felizmente, não houve impacto financeiro: “Tive aquela perda, do trabalho daquele mês, né? Mas nada que impactou muito a minha vida. Não fez muita diferença não”.
No pós-covid, sentiu muito cansaço nos primeiros dias, para correr, subir escadas, mas uma boa melhora da parte emocional pois percebia sua recuperação. Apresentava alguns lapsos de memória, mas não chegou a fazer nenhuma reabilitação. Acredita que por ser médico e o conhecimento do processo e o que esperar da doença, o ajudou ao longo da experiência de adoecimento, e depois que saiu da fase crítica, começou a sentir-se mais tranquilo: “O impacto de ser médico, para mim, me ajudou. E me ajudou porque eu sabia como era a evolução da doença e sabia quais… o que eu podia tentar até dentro do possível, tudo do que pudesse fazer em casa durante o tratamento. E isso me dava mais calma para passar por aquele processo”.
Contou com o apoio de amigos e sua irmã veio do Espírito Santo para ajudá-lo. Manteve a espiritualidade, que o auxiliou a lidar com os momentos de incerteza na internação hospitalar: “Então qualquer coisa que faça com que você tenha alguma esperança, contribui muito. Então, às vezes você pode confiar que ao fazer uma oração, fazer uma oração, e aquilo ali tranquiliza que você faz uma reflexão, você pede por ajuda e aquilo traz algum conforto para você naquele momento em que você está aflito, ajuda muito.”. Alcione considera ter tido uma segunda oportunidade de viver, e atualmente busca fazer as coisas que sempre quis e não fazia antes.
Ana Cristina
Ana Cristina, 68 anos, moradora do Rio de Janeiro, estava relativamente isolada em casa desde março, por receio da covid-19, até que se infectou em maio de 2020. Os primeiros sintomas, foram dor de garganta e uma leve dificuldade ao respirar, nos dias seguintes apresentou expectoração de catarro, enjoo e febre baixa constante. Dois dias depois desses primeiros sintomas Ana fez um exame para covid-19 cujo resultado foi negativo.
Entretanto, antes de ser internada, Ana compartilha que todas as decisões do seu médico assistente foram de comum acordo, que mesmo negativada para covid-19 foi medicada com antibiótico, remédio para dor de cabeça e outro para náusea. Depois de cinco dias do início dos sintomas, Ana conta que já se sentia muito fraca e foi orientada pelo seu clínico a fazer uma tomografia, e foi quando descobriram que seu pulmão estava com 25% comprometido. A partir disso ela foi internada numa unidade semi-intensiva, sem a necessidade de intubação.
Durante a primeira internação, Ana relata que não tinha forças para se sentar e precisava da ajuda da enfermeira para tomar banho. Além disso, ela compartilha que não se sentiu cuidada pela equipe multidisciplinar e, de certa forma, maltratada. Ela conta que não havia médicos suficientes para atendê-la, assim como tinham enfermeiras que não auxiliavam ela a ir ao banheiro, que não limpavam seu acesso venoso, a ponto de infeccionar. Ela pediu ao seu médico para transferi-la para outro hospital, a qual refere ter sido muito bem cuidada. Ao longo da sua segunda internação, se aproximou das enfermeiras, compartilhando histórias de vida e diz que isso a ajudou a encarar a situação com “alto astral”. Durante a internação, o comprometimento de seus pulmões evoluiu para 50%, mesmo em uso de antibióticos. Ao todo, ficou hospitalizada por 20 dias. Ana conta que antes da internação tinha um ritmo de vida agitado e a covid-19 interferiu e alterou diversos planos não só de trabalho, como em sua vida pessoal.
Alguns sintomas permaneceram mesmo após a alta hospitalar, como dores de cabeça constantes, queda volumosa de cabelo, e, também dormência na extremidade dos dedos dos pés. Ao mesmo tempo, Ana diz que ter uma vida de exercícios físicos a ajudou a não ter sequelas mais graves, pois faz pilates há 24 anos e tem uma alimentação bem regrada. Manteve essa postura ativa ao longo da sua recuperação, mesmo enquanto internada, foram passados diversos exercícios pela fisioterapia a qual ela se dedicou intensamente. No hospital, ela conseguia andar pelos corredores, mas em casa, para carregar objetos e até a bandeja com sua alimentação teve dificuldade devido a perda da força nos membros superiores. Ela ressalta a importância de controlar as emoções e ter uma rede de apoio psicológico.
Ana conta com muita indignação sua contaminação que se deu através de uma das suas vizinhas de andar. A mesma não notificou ao prédio, e a notícia veio à tona quando a ambulância foi chamada para socorrer o apartamento infectado. Ana acredita que se infectou na lixeira compartilhada com essa vizinha: “quando certamente eu fui a lixeira depois delas, deveria estar com muitos vírus no ar, mas eu não entrava lá protegida. Eu não sabia que tinha uma pessoa (infectada). E a gente acreditava no tato, as pessoas falam pouco da transmissão aérea pelo ar, com isso, essa foi”.
Por fim, Ana conta que a sua vida sofreu grandes mudanças pouco antes da covid-19. Nesse sentido, ela sente a necessidade de recomeçar. Conta que sentiu dificuldade, e que quando voltou para casa sentia medo até de sair na rua, mas compartilha que, aos poucos, conseguiu voltar a sair e criar uma nova rotina.
Ana Maria
Ana Maria, 50 anos, é psicóloga e reside em Manaus. Ela relata ter hipertensão e hipotiroidismo, o que a deixou mais preocupada quando contraiu a COVID. Ela foi infectada em 2020, nos meses de junho e setembro, ou seja, ocorreu uma reinfecção. Ela acredita que nas duas vezes em que teve COVID, a contaminação ocorreu em casa, através do marido, uma vez que ele precisou trabalhar presencialmente e acabou se infectando. Para ela, “o vírus pega quem se cuida e quem não se cuida, pois mesmo dentro de casa, mesmo se prevenindo, mesmo tendo cuidado, você pega”. Além disso, o COVID não é fácil, pois ele gera muitas dúvidas nas pessoas: “quando começa a ficar gripada, já tem uma dúvida. O nariz congestionou, é outra dúvida. Será que eu peguei”? “Será que eu estou com COVID?”, e por ter sido infectada no início, ela sentia que estava todo mundo muito perdido sobre a causa, os sintomas e a forma de tratamento, pois tudo era muito novo.
Os primeiros sintomas, segundo ela, foram: dor de cabeça, cansaço, falta de ar, ânsia de vômito e febre. “Você não consegue se enxugar, não consegue vestir a roupa, porque o cansaço é enorme”. Devido a intensa dor de cabeça, ela decidiu procurar um hospital. Porém, não considerou a possibilidade de ter sido contaminada pelo COVID. Ao chegar no hospital, foram realizados exames que deram positivo para o vírus. Na tomografia constatou-se uma mancha no pulmão, e também foram encontrados alguns cálculos renais. Ela não necessitou de internação e retornou para casa para fazer o tratamento com as medicações prescritas pelo médico: azitromicina, ivermectina e dipirona. Entretanto, os sintomas só pioraram e, ao retornar ao hospital, foi constatado 25% de comprometimento do pulmão. Na segunda vez em que ela contraiu a COVID, os sintomas foram: tosse, nariz congestionado e perda do olfato e paladar: “o sentimento que eu tenho é de que eu sou um fantasma, sabe? Você está aqui, mas você não consegue sentir cheiro, nem consegue sentir sabor”, sendo esse o sintoma que persistiu por mais de quinze dias. Além disso, ela relata ter sentido uma forte dor no estômago e nas costas, que a fez procurar novamente o hospital, onde foram realizados exames que detectaram uma alteração nas enzimas hepáticas, levando-a a ficar internada por cinco dias, mas sem a necessidade de ser entubada.
Ao retornar para casa, Ana Maria necessitou ficar em isolamento, até mesmo para não contaminar as filhas. Segundo ela, isso foi muito doloroso, pois “esse ‘não pode’, esse ‘estar isolado’ também é muito dolorido, dói demais. Dói demais não poder abraçar, não poder se despedir”. Entretanto, ela recebeu muito apoio dos familiares e amigos, visto que “eles ficavam muito próximos o tempo todo e auxiliaram em tudo”. Além desse cuidado da família e dos amigos, Ana Maria relata que por ser psicóloga, buscou ajudar a si própria, tentando manter a calma e se controlando para não piorar ainda mais. Ela também cuidou da alimentação e começou a praticar atividade física: “eu cuidei, fiz caminhada, consegui emagrecer, tratei da alimentação, dos medicamentos, mas, infelizmente, eu peguei de novo”. Em relação ao cuidado no hospital, ela diz ter recebido um tratamento mais humanizado, tanto para ela, quanto para os seus familiares, e que “isso foi muito impactante, foi algo muito positivo, muito positivo mesmo”.
Após a experiência de adoecimento devido ao COVID, Ana Maria relata que “ficou tudo muito incerto e, por isso, quer resolver tudo muito rápido, não quer deixar nada pendente, o que puder resolver agora, eu resolvo agora, justamente por conta do medo do amanhã ou do daqui a pouco”. Ela conta, também, que essa experiência a fez valorizar ainda mais a sua saúde, o cuidado consigo, bem como a querer ficar mais próxima das filhas e do marido. Ademais, ressalta-se que Ana Maria descreve ter sentido medo do vírus, principalmente em relação às sequelas que ficam: “o que vai deixar de sequela em mim? Será que eu vou aguentar essa sequela? Se eu vou ter resistência, se eu vou ter condições?”. Por fim, ela relata que o Ministério da saúde entrou em contato diversas vezes para saber o seu estado de saúde, quais eram os sintomas, e se os sintomas estavam evoluindo. Essas informações foram anotadas e havia, também, orientações sobre cuidados, o que para Ana Maria “foi ótimo”.
Carlos Eduardo
Carlos Eduardo, 57 anos, técnico de enfermagem, morador do município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Trabalhava em dois hospitais públicos quando começou a sentir os primeiros sintomas da covid-19, em agosto de 2020. Por atuar na linha de frente, conta que sua rotina mudou durante a pandemia, mesmo antes da internação, ele se isolou em casa, com medo de transmitir o vírus para sua esposa e filha. Carlos Eduardo tem certeza que contraiu o vírus em um dos hospitais em que trabalhava.
Sem nenhuma comorbidades prévia, passou a ter cansaço e sintomas gripais durante o plantão em um dos hospitais que atuava, lá procurou a médica do trabalho e foi direcionado para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Seu próximo dia de trabalho seria no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), e como funcionário se dirigiu ao serviço de saúde do trabalhador e ao notificar os sintomas foi encaminhado para a emergência do HUCFF. Depois de avaliado por médicos e realizada uma tomografia, foi diretamente para o CTI, com piora da falta de ar e da dor no peito.
Logo na sua entrada no CTI foi avisado que seria entubado, no entanto, foi reconhecido por um antigo colega de trabalho que avisou ao médico responsável que Carlos Eduardo era profissional da saúde: “Quando eu entrei no CTI eles iam me entubar porque eu tava sentado, muito dispneico, só não fui entubado porque tinha um técnico que tinha trabalhado comigo há vinte anos atrás no CTI do Mario Kroeff “. Nesse momento, a opção para o tratamento de Carlos Eduardo foi a máscara de alto fluxo (CPAP): “Aí ele (o médico) falou ‘ó, vou te dar uma chance, a saturação tá 71, se não melhorar com isso você vai pro tubo’”. Entendendo a necessidade de se acalmar, Carlos Eduardo procurou relaxar e posteriormente o médico prescreveu um ansiolítico: “’Pega um diazepam, dá um diazepam a ele de dez miligramas'. Me deu diazepam e eu dei aquela relaxada”. Sem necessidade de intubação por fim, sua internação durou 13 dias, sendo 7 dias na terapia intensiva e 6 dias na enfermaria.
Ao longo da sua internação, ele contabilizou 37 óbitos “E isso quando eu estava acordado, né?”. Diante do sofrimento da equipe e da morte de inúmeros colegas da área da saúde, Carlos Eduardo buscou apoiar os profissionais: "Porque eu sofria vendo aquilo, eu sofria vendo os colegas e você via no semblante, não faziam as coisas em você, às vezes atrasava um pouquinho, e eu falava ‘não, tá tranquilo, calma, relaxa, eu sei que tá difícil, eu sei, eu vi a maneira como vocês estavam trabalhando"'. O isolamento foi algo marcante em sua experiência, para passar o tempo na enfermaria, ele contava pela janela os carros que circulavam na Linha Vermelha, via expressa em frente ao hospital, e relata ter tido acesso ao seu telefone celular 9 dias após sua entrada na emergência, o que foi um momento de alívio.
A experiência de adoecimento de Carlos Eduardo o fez “rever alguns princípios” e repensar na sua prática como profissional da saúde, relata que após sua internação quer ter uma prática mais humanizada e cuidadosa com os pacientes que têm contato: “Eu vendo aquela quantidade de óbitos passando essa experiência que eu tive aqui na emergência, vendo as pessoas chegaram, seguraram o teu braço e falaram assim, ‘ó, eu não tô aguentando, vou morrer’. E eu saio pra jantar e voltar e ver aquela pessoa morta, aquilo ali me impactou muito, fez eu mudar mesmo. Eu hoje eu quando eu atendo eu atendo de outra forma totalmente diferente mais humana.”. Carlos Eduardo foi impactado pelo cuidado humanizado que recebeu no HUCFF e percebia que não era só com ele, mas com todos os demais pacientes. Além dos cuidados humanizados da equipe, a crença religiosa também foi um pilar muito importante para a superação da doença, já que as orações eram sua rotina. A família ainda teve papel fundamental, já que acompanharam toda a internação e o receberam com todos os cuidados.
A sua única sequela física é a parte respiratória, falta de ar e cansaço: “Eu fiquei pós covid, eu sinto muita falta de ar, muito dispneico”, e refere que até hoje qualquer atividade física se sente cansado. Atualmente, faz acompanhamento com pneumologista e também acompanha as informações atualizadas sobre a pandemia, principalmente por trabalhar em uma instituição de pesquisa, e reforça que, ao longo de sua internação, sabia-se muito pouco sobre a COVID-19. Carlos Eduardo retornou ao trabalho 30 dias após sua alta e bastante receoso: “Eu passei setembro, outubro e novembro, assim, uns noventa dias assim, muito tenso, muito tenso, o sono também acordando várias vezes à noite, entendeu? Preocupação do COVID”, sua preocupação era referente a sua esposa e filha, ele temia que ambas se contagiassem. Apesar de não ter sofrido impacto financeiro, Carlos teve outro impacto negativo após sua alta, o estigma da doença: “De chegar na padaria o pessoal ver que você chegou na padaria e o pessoal sair. Aí era bom que eu ia lá e comprava o pão, entendeu?“.
Por fim, Carlos Eduardo mantém os cuidados para evitar uma reinfecção, como uso da máscara e uso de álcool gel. Baseado na sua experiência, orienta que os pacientes mantenham a calma e confie na equipe de saúde: ”Procurar manter a calma, entendeu? Procurar aceitar que está doente, tá? E aceitar o tratamento. Isso é muito importante (...) A equipe tá para ajudar”.
Concelita
Concelita, 69 anos, aposentada, moradora do Rio de Janeiro, contraiu covid-19 em maio de 2020. Ao longo da pandemia a vida de Concelita pouco mudou, afinal estava convencida de que não ia se contaminar e não procurava muitas informações: “Eu não acreditava nela (covid-19), eu achava que ela não ia me pegar”. Devido a sua ocupação como costureira, manteve o contato com os alunos da universidade e acredita que sua contaminação foi através desse contato. Seus primeiros sintomas foram: vômito, dor nas costas e perda de ânimo: “A minha vontade era só deitar”. Concelita que faz tratamento oncológico há 3 anos relata que mesmo pertencendo ao grupo de risco, não fazia uso da máscara. Relutou para buscar ajuda médica mas duas semanas após o início dos sintomas, com muita insistência, sua filha a levou à emergência do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF).
Com uma piora significativa dos sintomas, Concelita dá entrada na emergência do hospital. Logo foi examinada e testada para covid-19, com o resultado positivo, foi internada. Apesar de contrariada, permaneceu no hospital e ao todo ficou 15 dias na emergência e 7 dias na enfermaria, totalizando 22 dias internada. Chegou a usar oxigênio, mas não teve a necessidade de intubação.
Ao longo da internação, a sensação de morte foi marcante para Concelita:“A covid, sei lá, uma sensação muito ruim. Parece que vai morrer. Sabe? (...) Eu não desejo do meu pior inimigo, porque oh doença horrível”. Outro aspecto marcante foi presenciar diversos óbitos ao longo da sua internação: “Cada vez que abria o olho, estar viva para mim era uma vitória, porque vendo as pessoas falecer dos lados, na frente, era triste”. Tinha consciência que no período do seu adoecimento, logo no início da pandemia, não existiam protocolos e as informações não eram precisas: “Aí não tinha como o médico fazer mais nada. E não tinha remédio. Não tinha vacina ainda. Foi no pico…quer dizer, a gente estava apegando ao que tinha. Não tinha a orientação como tem hoje”.
A solidão foi um aspecto muito marcante em sua internação. Na emergência, não pôde usar o celular para se comunicar com seus filhos, somente quando foi encaminhada para a enfermaria teve acesso. Nesse período, quem intermediava a comunicação entre Concelita e seus familiares foi um enfermeiro. Na enfermaria, conseguiu do próprio celular fazer chamadas de vídeo com seus filhos e netos e esse contato com a família foi essencial para sua melhora. Comenta que toda a equipe médica auxiliou bastante durante a internação: “Muito bem tratada por todos, de enfermeiro a médico, o tratamento foi nota 10”. E devido à escassez de recursos e medicamentos que o hospital viveu ao longo da pandemia, ela presenciou pequenos gestos de cuidado e solidariedade dos profissionais: “Tem médicos aqui que trazia remédio de casa, que comprava o material da cirurgia, que eles não deixaram faltar, eles sempre atenderam os pacientes dele. Quer dizer, mesmo o hospital não estando bem, ele sempre acolheu os pacientes”. O aspecto espiritual foi um ponto de apoio para Concelita, que diariamente rezava.
Após sua alta, Concelita é orientada a ficar 7 dias isolada dos demais familiares, e apesar de permanecer até mais tempo que o orientado, relata que depois que retornou ao convívio social não apresentou mais sequelas. Depois de 2 meses, apresentou um “cansaço de subir escadas” que piorou devido a um enfisema pulmonar, mas Concelita reforça que o “cansaço” foi sequela da covid-19. Ela foi atendida pelo HUCFF, no ambulatório pós COVID, aproximadamente 3 meses após de já estar em casa.
Felizmente, não sofreu grandes impactos financeiros por conta da internação, e teve apoio dos seus familiares próximos para conseguir se recuperar. Além disso, diante da experiência de proximidade com a morte, Concelita diz ter saído fortalecida, valorizando muito mais a vida. Diante dessa vivência, a postura de Concelita mudou para encarar a pandemia: “Se eu vejo alguém com, vejo lá em casa alguém tossindo, eu já taco a minha máscara, já está ali perto da máquina mesmo e assim a gente vai”. Além disso, ela e todos de sua família tomaram as vacinas - e tomarão ainda quantas forem necessárias.
Edmilson
Edmilson Simões de Oliveira
Homem, preto, 46 anos, casado, um filho, motorista, possui sinusite, residente na cidade de Salvador\BA. Durante a pandemia, Edmilson trabalhou normalmente na Fundação Casa, onde acredita ter se infectado com o coronavírus: “Então eu, provavelmente, devo ter pego lá, no trabalho”. Ele relata que outros colegas também foram infectados pelo vírus: “Detectou que tinha muita gente de covid lá, tanto os funcionários como até os próprios adolescentes (internos) que tavam lá”. Porém, segundo nos conta, a maioria deles não desenvolveu a forma grave da doença, ele, sim, e ficou internado no Instituto Couto Maia (ICOM).
Seus primeiros sintomas envolveram cansaço, tontura, dores no corpo e mal-estar, sentidos durante um dia normal de trabalho, quando estava junto com um colega: “Eu tava me sentindo assim meio cansado, o corpo, aquela maresia no corpo, aquele peso. Aí eu conversando com ele, falando com o colega ‘rapaz, não tô me sentindo bem não, bicho’”. Ele foi então para casa, sentindo-se com febre. No outro dia, ainda se sentindo mal, pediu para ser levado para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento), onde ficou horas esperando atendimento. Quando foi atendido, fez o exame PCR (Reação em Cadeia da Polimerase). Como o resultado só sairia em 3 a 5 dias, foi orientado a esperar a confirmação do exame em casa e a tomar ivermectina e azitromicina. Entretanto, durante a espera, piorou: “No sábado à noite já tava dando febre e o corpo já não aguentava mais ficar em pé. Foi [aí] que eles me levaram novamente, minha irmã e meu cunhado. E aí foi que fiquei internado”. Assim, ao retornar à UPA, o médico de plantão solicitou exame de sangue e raio-x: “Foi quando fez o raio-x foi que deu um monte de pintinha, né, preta. Aí ele [médico]: ‘Moço, você tá vendo aqui essas pintinhas pretas aqui? Seu pulmão já está... já debilitado”. O médico solicita a regulação do Sr. Edmilson para um hospital, sendo então encaminhado para o Instituto Couto Maia (ICOM).
No dia seguinte, ele foi transferido para o ICOM. Ao chegar na enfermaria, foi orientado a tomar um banho rápido e ficar no oxigênio. Ele não sabia que seu caso era tão sério, já com forte comprometimento do pulmão: “Tô lá no banho, comecei a me sentir mal, fiquei tonto, comecei a tossir pra caramba e aquela falta de ar me apertando, apertando…”. As impressões desse primeiro momento e dos que se seguiram - ao ficar no oxigênio, observar outros casos graves na enfermaria e, mesmo, pacientes morrendo - foram marcadas por forte angústia, intensificada pela lembrança de seu filho: “Aí começou a bater aquele desespero em mim. Eu penso logo no meu filho, meu filho tava bem assim, eu tenho filho pequeno, né, de... tá no tempo ele tava com 6 anos. E aí comecei a chorar…”. Diante dessa fragilização, ele recebeu suporte emocional das enfermeiras.
Durante o seu período de internação, teve cerca de 50% de comprometimento pulmonar, fazendo uso de medicamentos, dentre outros tratamentos: “Me deram… era antibiótico que dava que era Azitromicina mais a... Azitromicina se não me engano e... uma pra trombose que não podia também... pra evitar trombose e 1 comprimido de Omeprazol e outro pra poder... essa, se não me engano, era Loratadina.” Além de exames diários, realizou oxigenoterapia por 10 dias. Ele relata que percebeu uma melhora no quadro respiratório no 11º dia de internação. Ele ressalta a importância da fisioterapia para essa recuperação, assim como o excelente atendimento recebido, durante a internação: “Eu fui fazendo fisioterapia, eu todo dia tava lá fazendo fisioterapia, exame todo dia, a medicação. E aí os médicos todos, se sentia alguma coisa, o médico tava presente, as enfermeiras. Foi... graças a Deus, lá nesse hospital quando eu me internei, fui muito bem atendido, muito bem atendido, mesmo equipe muito boa”.
Ele recebeu alta hospitalar no 12º dia, porém ainda se sentindo muito debilitado: “Eu tive alta, vim pra casa, mas tinha perdido muito peso, tava muito fraco, né... Eu perdi 10 quilos em menos de 10 dias. Aí, cheguei em casa muito debilitado, muito magrinho mesmo…”. Demorou cerca de 15 a 20 dias para Sr. Edmilson se recuperar e voltar a ter forças para andar. Ele ressalta a importância do apoio da assistente social, que telefonava durante esse esse período para saber como estava sua recuperação. Também relata que estava muito apreensivo no início com a possibilidade de contaminar sua esposa e seu filho. Conta que ficou isolado, ao chegar em casa: “Eu fiquei em um quarto só, tal. Depois, foi quando ela me ligou que me informou, que eu falei com ela... ‘Ah, então pronto não tinha... pode ficar normal dentro de casa’. Aí pronto foi que ficou tudo normal, que eu mesmo tava com receio de passar pra eles, né? Como eu tive, eu mesmo fiquei com receio, mas como ela me explicou tudo, me passou toda situação como era eu peguei e fiquei normal em casa”.
Edmilson relata não ter desenvolvido nenhuma sequela física ou psicológica para além da perda de peso, após a alta hospitalar. Ele conta que abandonou hábitos prejudiciais à saúde, mantidos antes da COVID-19, assumindo agora hábitos mais saudáveis tais como a prática regular de exercícios físicos. Nas suas palavras: “Depois comecei a correr [e] tal. Até hoje, graças a Deus, não senti nada. Já fiz outros exames depois, exame de pulmão tudo pra ver como é que tava, deu tudo ok, deu tudo perfeito. Graças a Deus, eu não fiquei... até hoje não tive sequela nenhuma. Tô bem graças a Deus. Já to na academia de novo, tô malhando novamente. Já engordei de novo, agora estou só me recuperando, fazendo exercício só.” Antes de finalizar a entrevista, ele agradeceu o apoio recebido pela equipe multidisciplinar do hospital e aconselha a todos a realizar a vacinação e a tomar os cuidados necessários para prevenção da COVID-19.
Fabrício
Fabrício, 42 anos, autônomo, morador de Vargem Grande, no Rio de Janeiro, relata que no ano de 2019 teve trombose e seus médicos alertaram que ele se encaixava no grupo de risco. Teve seus medicamentos suspensos logo nos primeiros meses da pandemia devido ao fechamento do ambulatório que tratava sua trombose.
Contraiu covid-19 em setembro de 2020. Sua hipótese é que tenha sido durante o trabalho, apesar de seguir corretamente os protocolos com o uso de máscara de proteção, álcool em gel e o distanciamento social.“Eu acredito que o covid-19 foi trabalhando, acredito que foi em um condomínio que fui prestar serviço na Barra, porque em nenhum outro lugar eu tive...”. Relata que os sintomas se iniciaram rapidamente e cerca de uma semana depois, já se sentia muito mal: “É algo surreal você procurar ar e não encontrar”.
Dentre os sintomas estavam: diarreia, dor de cabeça, febre alta, falta de ar, fraqueza, desmaios, não tinha apetite e passou a se alimentar pouco. Alguns amigos o levaram para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde foi medicado com Aerolin e no mesmo dia foi mandado de volta para casa. Após isso, Fabrício continuou piorando, momento em que foi em busca de vagas nos hospitais públicos, até conseguir uma vaga para ser internado no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF).
Ele conta que seus amigos o levaram ao HUCFF e que ao se despedir tinha certeza que não sairia vivo: “Eu falei assim, olha, eu acho que essa é a última vez que você vai escutar minha voz. Eu não estou bem. Eu acho que não volto mais”. Ao chegar no HUCFF estava muito debilitado, com 78% do pulmão comprometido, logo foi internado na UTI e entubado. Fabrício diz que a única coisa que passou por sua cabeça naquele momento foi que poderia morrer e não ver suas filhas. Durante 3 dias esteve em coma e permaneceu 5 dias entubado. Na sua internação também teve o diagnóstico de pneumonia e embolia pulmonar. Após a retirada do tubo, ele conta que o processo de recuperação foi muito tranquilo e em uma semana se viu melhor, Fabricio confiava na equipe que cuidava dele e as decisões sobre o tratamento eram exclusivamente dos profissionais. Durante sua internação, a cada 2 ou 3 dias, a equipe ligava para seus familiares informando seu quadro de saúde. E em uma dessas ligações, pela primeira vez, ele pode falar com a família e amigos.
Na enfermaria, teve a oportunidade de olhar pela janela do oitavo andar do hospital e viu a Baía de Guanabara: “É algo surreal. É você despertar para uma nova vida, você ter uma nova oportunidade. Eu falo para todo mundo que isso aqui é minha segunda maternidade.” Ele diz que a experiência foi muito marcante para ele, familiares e amigos. Compartilha, também, que essa experiência de adoecimento serviu para lhe ensinar a valorizar a vida, assim como aproveitar para rever as filhas que não via há muito tempo. Fabricio presenciou óbito de outros pacientes e isso o assustou: “Você vê pessoas que você esperava que poderiam sobreviver, né? E infelizmente não conseguiram”, o que também fez refletir sobre sua própria morte e suas relações. Ao todo, Fabricio permaneceu internado por 20 dias, sendo 13 dias na UTI e 7 dias na enfermaria.
Ao receber alta hospitalar, suas sequelas foram: movimentos oculares involuntários, falta de ar e uma perda de força muscular, além da trombose que o acompanhou anteriormente a covid-19. Sobre a sua recuperação, atualmente faz tratamento no HUCFF para sua trombose e foi em apenas uma consulta no ambulatório pós-covid, fazendo o trabalho de fisioterapia motora e respiratória em casa. Ele conta que sua recuperação completa foi de 8 meses, vivendo o que conhecemos hoje como “covid longa”, retornando ao trabalho mesmo sem condições, em 15 dias. Esse retorno precoce ao trabalho, se deve também ao impacto financeiro que Fabrício sofreu devido às medicações caras e os tratamentos, e conta ainda que mesmo depois de todos esses meses não conseguiu se recuperar por completo financeiramente.
Um ponto que ele ressalta é que a preparação da equipe e a aquisição de recursos tecnológicos são fundamentais para que o hospital funcione adequadamente e consiga ser mais eficiente. Ele viu a falta de recursos dentro do HUCFF e diz: “Você vê que os médicos não tem equipamento suficiente para poder salvar aquele número de pessoas”. Por fim, Fabrício se sente positivo com o futuro e diz “enxergo as coisas com mais clareza, eu valorizo cada instante, cada milésimo, cada segundo de vida.” Hoje, ele se vê com mais fé e com maior autoestima.
Gilson
Gilson Vieira Monteiro
Homem, 58 anos, branco, prefere não divulgar estado civil, possui dois filhos, um de 25 e outro de 22, professor universitário. Sem comorbidades prévias, alérgico a frutos do mar. Internado em hospital privado, possui plano de saúde. Apesar de residir na Bahia, Gilson desenvolve covid-19 ao visitar os filhos em Manaus. Inicialmente, não desconfia de covid-19 porque, apesar de ser alérgico a frutos do mar (caranguejo, camarão), realiza o consumo mesmo assim e havia levado frutos do mar para os familiares e feito consumo, portanto, imaginou que os desconfortos que estava sentindo (dores de cabeça) estivessem associados a um quadro alérgico e não à covid-19. Ao gravar um programa de rádio e perceber que estava ofegante e depois ao tentar realizar uma corrida na esteira e não obter o desempenho habitual e ficar com falta de ar, atenta-se para a possibilidade de estar com covid-19, é então que a filha afere sua saturação com um oxímetro e a partir do resultado (66%), compartilhado com um amigo e um familiar, ambos médicos, recebe a recomendação e se dirige para um hospital. Gilson descreve esse momento da chegada como se fosse uma bomba relógio “eu já cheguei por volta das 14 e já entrei para reanimação. Quando eles viram meus números, de 66 de saturação, 299 de batimentos cardíacos, eu já estava para explodir… fizeram a tomografia, segundo os médicos do hospital eu tava com 90% do pulmão comprometido.”
Gilson é internado na UTI e vive uma experiência marcante por estar lúcido em um setor que acredita não ser feito para as pessoas ficarem conscientes. Essa experiência é tão intensa que ele se propõe a escrever um livro sobre ela “tô tentando escrever esse livro que falei né? Provisoriamente o nome é “12 dias” né? relatando essa experiência… o ser humano que vai pra UTI não pode estar lúcido, e eu estava… eu não fui entubado, eu acompanhei, tudo, todo aquele sofrimento das pessoas, dos médicos… dos técnicos de enfermagem. Eu estava o tempo todo lúcido… eu lembro muito bem que a minha luta sempre foi pra ficar 12 dias sem dormir… porque eu tinha que ta controlando tudo”
A internação na UTI é marcada por diversos eventos negativos. Seja pelas experiências de dor física que o acompanharam ao longo do internamento devido às intervenções terapêuticas, sendo o exame de gasometria e a aplicação de anticoagulante os procedimentos descritos como mais dolorosos “a gasometria é um exame… doloroso demais, eu saí de lá com os dois pulsos completamente… roxos na verdade, de sangue, onde passava. E a barriga tomando clexane que era o anticoagulante. São as duas coisas muito terríveis do processo.”. Seja por testemunhar o sofrimento ao seu redor “e eu percebi o sofrimento delas, principalmente quando se perde um paciente, a dor de um médico de quando se perde um paciente. Eu soube no período que tava lá de lá de 4 mortes, todas por covid… E eu … separava o quarto pelas cortinas, e quando eles fechavam as cortinas, para mim aquele palco era a dor das outras pessoas, que eu não estava vendo o que elas estavam passando, aí começava assim a criar algumas imagens.”
Os sons existentes na UTI também criaram, para Gilson, memórias desagradáveis de sua internação. Ele descreve como uma conversa entre as máquinas “tem outra coisa assim que é terrível, a coisa mais terrível de todas elas, são as máquinas conversando entre si, uma dispara, a outra dispara e você fica naquele “TOIM TOIM TOIM” [Imita o som das máquinas], parece assim, todas as igrejas do universo batendo o seu sino ao mesmo tempo e aquilo batendo na sua alma, no teu ouvido. É infernal… eu fico todo arrepiado quando lembro, porque aquilo ali me traumatizou permanentemente… aquelas máquinas parecem que ganham vida”.
Para contornar seu quadro, Gilson se empenhava em estar ativo quanto às terapêuticas instituídas pedindo aos fisioterapeutas que o colocassem na VNI, por exemplo, durante a madrugada, quando as máquinas estavam disponíveis. Durante sua narrativa, em muitos momentos, ele atribui sua recuperação de um quadro tão grave, a seu preparo físico prévio e aos exercícios de respiração diafragmática que fazia, devido a sua experiência com as aulas de canto coral.
Durante a internação, Gilson viveu o período de falta de oxigênio em Manaus e testemunhou o grande caos que ocorreu. Ele atribui sua alta precoce a esse fato, pois não se encontrava plenamente recuperado, mas necessitou de um longo período de acompanhamento e reabilitação que estava realizando por ocasião da concessão da entrevista. “O período de recuperação que ainda não terminou, hoje eu faço fisioterapia, faço uma hora de esteira, faço atualmente respiron de manhã e de tarde… depois da saída do hospital … naquele auge em que Manaus faltou oxigênio, eles não me transferiram, mas me mandaram pra casa, ainda não tava tudo zerado ainda não, se não fosse aquilo eu não tinha ido no outro dia não.”
E viu com indignação, à época ainda internado, o governador do estado ir a Brasília pedir o tratamento precoce, que à época já se sabia que não possuía efetividade, uma vez que, em Manaus, os kits de medicação eram altamente difundidos e, mesmo assim, a rede de saúde entrou em colapso, devido ao aumento de casos graves. Por causa dessa situação da rede de saúde do estado, ele relata ter perdido muitos amigos e conhecidos da UFAM, onde trabalhou por 24 anos “A gente perdeu muita gente e inclusive ex-estudantes, ex-orientados foi assim foram morrendo muitas pessoas assim… assustador o ambiente em Manaus.”
Gilson relata o uso de muitas medicações, inclusive, aponta o uso prolongado de corticóide como a causa de um descontrole da glicemia, precisando de tratamento e acompanhamento específico para diabetes após a alta “depois que eu saí do hospital aí descontrolou tudo”. Além disso, por possuir um plano de saúde com coparticipação, durante a entrevista, Gilson presume um forte impacto financeiro devido a seu período de internação (em torno de R$ 60 mil), que foi também um dos aspectos que o fez não querer ser transferido para Goiás durante o período da falta de oxigênio, uma vez que a transferência ensejaria novos gastos no internamento.
Como mudanças na vida, em virtude do adoecimento por covid-19, ele aponta as modificações na vida laboral, enquanto professor. “Eu acho que o professor Gilson de agora é um professor muito mais humano e muito mais desumano, né? Acho que a moeda tem os seus dois lados. Tem algumas coisas que eu não aceito mais e tem outras que eu sou bem tolerante. Então acho que eu aprendi muito nisso. Eu acho que o professor Gilson de antes, era um professor muito mais técnico nas suas avaliações dos seus estudantes. Professor Gilson de hoje ele vê a técnica, mas ele olha as histórias pra entender melhor… motivo dessas avaliações.” E também no modo de ver a vida, ressaltando ter se apartado de algumas atividades anteriores que ocupavam mais o seu tempo e ter se reaproximado da família “eu mudei eu fazia um poema todos os dias, eu tinha três blogs, eu ficava de discussão na internet … eu larguei tudo aquilo, não faço mais os blogs, não faço mais os poemas, eh fiz uma limpeza também dos amigos e dos inimigos… tomei algumas decisões depois de uma covid que precisam [ser tomadas] e acho que me reaproximei um pouco mais da família também eu acho que isso ajudou…”.
Glauciane
Glauciane, 38 anos, moradora de São Paulo, psicóloga e na época de sua infecção por covid-19, em julho de 2020, trabalhava no Hospital de Campanha do Anhembi. Sabendo dos riscos de seu trabalho, já mantinha um certo isolamento em relação à sua família e tomava todas as medidas de precaução preconizadas pela OMS - uso de máscara, higiene das mãos e uso de roupa privativa. "Eu já estava isolada mesmo desde quando eu entrei no hospital de campanha. Eu separei esse quarto para mim, com banheiro. Eu via meu filho de longe, meu marido de longe pela janela. Eu já estava isolada. Ninguém aqui em casa pegou”. O distanciamento foi algo muito difícil para ela e para o filho pequeno que sentia falta do contato com a mãe.
Acredita que sua contaminação tenha ocorrido em uma segunda-feira no próprio trabalho, em um contato mais próximo com uma paciente: “Estava indo embora e mesmo de avental, tudo, ela pediu um abraço. E eu falei assim: ‘olha, dá pra gente se abraçar assim de longe…’ E ela falou assim: ‘não, eu tô de avental’. E aí eu caí nessa, assim, eu acho que eu infringi as leis aí... Aí a gente acabou dando um abraço, foi rápido, mas eu acabei sentindo a pele naquele momento, a pele dela no rosto”. Na quarta-feira, Glauciane inicia os primeiros sintomas: dores no corpo, tosse, fraqueza e falta de ar, posteriormente, perda de olfato e paladar, no entanto, ela nega a possibilidade de ser covid-19: "eu achei, que era um resfriado”.
Seu primeiro teste deu negativo. Após 5 dias, ela repetiu o teste e o resultado foi positivo. Depois, fez a tomografia que sinalizou 50% de comprometimento pulmonar, foi quando ela percebeu seu estado: “Então foi aonde me pegou! Eu falei... ‘Eu tenho um filho’, e aí eu falei: ‘é agora!’. Quando eu estava lá com o paciente, você dar um apoio, um acolhimento, você consegue ver de outra forma. E agora eu sou o paciente, eu preciso de cuidado, como é que fica? Como é que vai ficar para a minha família, como é que eu vou ficar?”.
Ela se interna em um hospital que tem cobertura do seu convênio no município de Diadema. Sua evolução a preocupava pois percebia a piora dos sintomas. Nesse momento, a tosse era persistente: “Eu falei: ‘e agora? Tem chances de recuperar?’. ‘Tem’. Mas também tem chances de piorar, ‘e agora?’. ‘Que eu vou fazer com isso?’. E ali aquele momento foi onde começou cair as lágrimas”. Logo em seguida o médico conversou com Glauciane sobre os exames e internação: “Olhando o seu exame de sangue, o que que você acha que a gente vai fazer? Internar? Não tem jeito, vai ter que internar você. Eu sei que vai ser muito difícil para você, a gente vai ter que internar”. Ela permaneceu internada por 7 dias na semi-intensiva e não precisou ser entubada.
Ao longo da sua internação, buscou manter o equilíbrio “para eu poder melhorar e sair dessa!”. Ela lembra que conversava com seus pacientes com covid-19 sobre “manter o equilíbrio": “eu acho que isso foi uma questão bem importante, eu lembrar disso porque eu comentava com os pacientes para manter o equilíbrio, eu falava: "vamos manter o equilíbrio" e acho que isso me auxiliou bastante, me ajudou bastante. Apesar da estratégia de enfrentamento, os primeiros dias foram difíceis: “no primeiro dia eu fiquei bastante emocionada, não queria falar com ninguém. Passava um filme na minha cabeça porque essa doença é desconhecida, ‘e agora?’. ‘E agora que eu vou fazer?’. ‘E agora como é que eu fico? Vai pra onde? Será que a medicação está certa?’.
O isolamento foi outro aspecto difícil para Glauciane: “O que afetou bastante foi o isolamento, mesmo com o celular, a gente falando com a família... o isolamento, o fato de as pessoas chegarem toda mascarada, toda cheia de avental o tempo todo com medo, dá pra você ver que as pessoas têm medo de chegar perto e isso é muito ruim. É uma situação muito ruim”. Os momentos de angústia não eram raros e as noites eram as partes mais difíceis. “As noites eram terríveis para dormir, mesmo a psicóloga falando das técnicas para dormir porque dava falta de ar, não tinha posição para dormir. Isolada ali, ‘e se eu morrer agora? Como vai ser?’. Mas ao mesmo tempo no meu medo não era nem da morte, meu medo era de deixar meu filho, deixar... e preocupada com meu trabalho”.
Esse período de internação lhe proporcionou uma mudança na forma de encarar sua profissão: "Quando eu voltei pro hospital eu já tratava de outra forma, assim, porque eu tinha passado por aquilo e sabia que eu estava passando, então eu respeitei um pouco mais (...). Eu acho que eu pude ter outro olhar”. O adoecimento impactou financeiramente:“Porque eu tive que me afastar do trabalho, aí você acaba entrando pelo INSS. E aí só, com essa pandemia, aí só um auxílio-doença e é um valor para todo mundo”.
Após sua alta, ficou em isolamento doméstico por 14 dias. Percebeu sintomas como lentidão e tosse, como também um prejuízo na memória: “muito esquecida, eu ainda estou muito esquecida, eu guardo as coisas eu não lembro mais de jeito nenhum!”. Recuperou seu paladar, mas ainda não o olfato. Voltou a trabalhar em outras atividades e não relata nenhum outro sintoma.
Glauciane vivenciou o estigma da doença: "Uma outra questão relevante foi o preconceito que sofreu na vizinhança quando voltou para casa: “Foi no dia que eu cheguei do hospital. Porque já estava com mais desespero, meu filho estava me esperando lá fora e aí os vizinhos falaram: ‘não chega perto’, nem do meu filho que estava lá fora. ‘Não chega perto’. ‘Tá todo mundo com covid”. Ela se mostra compreensiva, mas sente-se mal com o distanciamento das pessoas por ter se contaminado.
O seu adoecimento consolidou seu interesse em atuar na área da psicologia hospitalar e possibilitou novas perspectivas de futuro : “É... eu procuro... eu quero continuar nessa área hospitalar. Eu acho que isso me deu mais força, mesmo, para enfrentar outros desafios mesmo. Então assim seja com covid, seja tuberculose, um soropositivo... Então, assim, eu quero trabalhar com essa área hospitalar dessa parte de infecção mesmo. Eu acho que é bem interessante. E procurar mesmo me especializar nisso”.
Janilda
Janilda, 56 anos, enfermeira, moradora do Rio de Janeiro, atua no setor de pediatria do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF). Em maio de 2020, teve sintomas de alergia e resolveu fazer o teste de covid-19 no próprio hospital, já que os profissionais da saúde que trabalhavam com ela começaram a adoecer. Nesse exame, Janilda testou positivo, mas como a sintomatologia não era grave, não se preocupou, e retornou para casa com prescrição de analgésicos e antialérgicos. Sua preocupação começou 2 dias depois, quando a falta de ar e o cansaço aumentaram, assim ela procurou novamente a emergência e dessa vez, foi internada: “Eu não consigo lembrar os detalhes da emergência, o atendimento, eu só sei que eu acordei 32 dias depois”. Janilda acordou na UTI sem saber ao certo o que estava acontecendo, e no mesmo dia foi direcionada para a enfermaria traqueostomizada.
Ao chegar na enfermaria tentando assimilar o que estava acontecendo, Janilda, se deu conta da gravidade do seu quadro: “Assim que eu cheguei na enfermaria descobri que eu não levantava”, devido à grande perda de peso e massa muscular. Por ser da área da saúde, relata que o susto é maior, “você entende o que está acontecendo”. No quarto dia de enfermaria, teve um quadro de trombose na perna direita, o que dificultou ainda mais sua recuperação. Na enfermaria, nos primeiros dias de recuperação, Janilda recebeu auxílio de uma sobrinha e sua cunhada que eram profissionais da saúde e também contou com o apoio da nora. Permaneceu mais 30 dias internada na enfermaria, totalizando 62 dias. Apesar da alta, não sai totalmente recuperada, ainda dependente de cuidados.
Janilda relata não lembrar muito de seu período internada, principalmente na UTI, entretanto tem memórias do período em que estava em ventilação assistida: “Eu tenho mais de 20 anos de enfermagem e nunca tinha visto as pessoas contarem os sonhos desse período de CTI, de intubação. E eu lembrava, cada dia lembrava de cada um deles. Alguns eram muito ruins, outros eram como se fosse um pedido de socorro”. A relação com a equipe multiprofissional foi ótima e Janilda tem uma recordação especial da enfermaria: “No hospital, eu tive uma experiência muito forte que me deu muita esperança, foi quando as meninas chegaram para mim, os profissionais da área, e trouxeram uma tela para eu pintar. Mesmo sem conseguir segurar o pincel, o apoio e o acolhimento da equipe a incentivaram: “Eu consegui pintar uma tela aqui dentro”. Esse momento foi muito marcante para Janilda já que a pintura é algo muito importante para ela.
Após a alta, Janilda sofreu os impactos de uma longa hospitalização, demorou 4 meses para voltar a andar, teve dificuldades de mobilidade e locomoção e necessitou do auxílio de cadeira de rodas e posteriormente andador. A prática de yoga na praia foi um dos pontos relevantes para sua reabilitação, conseguindo voltar a fazer coisas que gosta muito. Quando já conseguia andar, teve acesso ao ambulatório pós-covid no HUCFF e iniciou acompanhamento. Fora do ambulatório, fez acompanhamento com ortopedista e angiologista e iniciou o tratamento com anticoagulante. Meses depois apareceram diversas sequelas como: queda de cabelo, perda de dente, alteração das cordas vocais e problemas no ouvido, além do prejuízo na sua memória que relembra emocionada.
Algo que marcou a estima de Janilda foi a cicatriz da traqueostomia: “Como mulher, a gente fica um pouco envergonhada no começo, porque fica uma cicatriz, e eu não tinha cicatrizes visíveis no meu corpo”. Ela relata que é uma lembrança, e hoje em dia, tem muito orgulho das suas cicatrizes. Apesar de não ter grandes impactos financeiros e ter ajuda dos filhos, comenta que teve prejuízo devido aos gastos com medicação: Xarelto e Daflon, fisioterapia e fraldas. Sobre o trabalho relembra: “O meu angiologista chegou a acreditar que talvez eu não pudesse voltar a trabalhar por causa dessa dificuldade”. Janilda insistiu e não aceitou ser dependente de terceiros. Depois de 2 anos, conseguiu a liberação para voltar ao trabalho.
Sobre estigma, Janilda relata que não sofreu nenhum tipo de distinção como paciente, mas sentia preconceito quando as pessoas sabiam que era profissional da saúde. Outro ponto que de destaque foi o apoio de sua família na sua experiência de adoecimento: “Descobri nos meus filhos uma força também muito grande, o apoio deles foi além do que eles imaginavam”. A fé e a oração também foram recursos importantes para suportar o período hospitalizadaEm termos profissionais, a sua internação lhe fez repensar na relação com os pacientes: “Hoje dentro da enfermaria eu acredito que eu sou uma profissional melhor. Muito melhor no trato com os colegas, no trato com as pessoas”, e também fez pensar sobre os valores da vida: “Então esse olhar do outro lado me fez mais humana. E eu aprendi também que hoje um café, você tem que tomar ele devagarzinho, sentindo o sabor do momento. E eu não reclamo mais porque eu sei que do outro lado tem alguém muito pior do que eu. Então eu aprendi a ser mais forte, aprendi a agradecer e aprendi a me cuidar mais, a ter esse respeito com a prevenção”.
Jorge
Jorge, 51 anos, aposentado, morador de Duque de Caxias, é paciente assíduo nos ambulatórios do HUCFF por causa das diversas comorbidades que possui, como hipotireoidismo, diabetes, hipertensão, cirrose hepática, obesidade e lesão na coluna, que o fazem tomar uma base de 14 a 16 remédios (fora a insulina) por dia, limitando suas atividades diárias. Nesse sentido, quando a covid-19 começou a surgir, sentiu medo do contágio pela sua condição de saúde. Em abril de 2020, apesar de ter optado por se manter em casa para se proteger, sua esposa, que é a principal responsável pelos seus cuidados, continuou saindo para farmácias e mercados, locais nos quais ele acredita ter ocorrido a infecção dela e, consequentemente, a dele.
Seus primeiros sintomas foram expectoração com sangue e falta de ar, que associou às suas outras comorbidades e não a um possível quadro de covid-19, fazendo com que Jorge demorasse a ir para a emergência, que só aconteceu quando ele estava com grande comprometimento pulmonar:: "No terceiro dia, a doutora disse que, se eu não tivesse vindo nesse dia, do jeito que eu cheguei aqui, que eu já cheguei aqui carregado, eu teria morrido em casa.". Por conta desse comprometimento, lembra apenas de flashes do momento em que chegou ao hospital e fez os exames.
Jorge entrou pela emergência do HUCFF, e logo após foi internado diretamente na UTI, na qual ficou entubado por 8 dias. Ao longo da sua intubação, vivenciou momentos que até hoje não consegue distinguir se realmente aconteceu ou foi um sonho, como ele relata: "Eu tive com Deus, conversando com ele. Ele ficou assim na minha frente, eu me via deitado, ele conversava comigo e eu pedia, a única coisa que eu pedia a ele, era pra ele me deixar ir pra casa". Jorge reconhece que sua fé o ajudou a ter força para reagir à intubação e ao cansaço da doença, e no oitavo dia, retirou o tubo por conta própria, e começou a respirar sozinho novamente.
Após esse tempo na UTI, Jorge foi encaminhado para a enfermaria do hospital, na qual teve dificuldade para realizar suas atividades sozinho, pois tinha o impeditivo da falta de ar e de uma fraqueza muscular desenvolvida na internação. Nesse contexto, conta que recebeu auxílio de seus colegas de enfermaria, tanto na parte física, ajudando-o a comer, quanto emocional, já que a amizade desenvolvida entre os internados melhorava o ânimo do local. O auxílio dos profissionais também foi marcante para Jorge, que conta que se sentiu acolhido por todos, tendo observado um bom tratamento sendo prestado a ele e aos pacientes próximos. 2 dias depois, recebeu alta, totalizando 10 dias de internação.
Ao chegar em casa, já conseguia andar curtas distâncias, porém grandes esforços ainda o cansaram. A fraqueza muscular persistia e teve que se esforçar para recuperar a capacidade motora que perdeu, contando com auxílio da sua esposa, sua grande companheira. Demorou quase 40 dias em casa “para se sentir forte”. Dos serviços do HUCFF, não recebeu auxílio específico para reabilitação motora, apenas orientações sobre exercícios de fisioterapia pulmonar e realização de exames no ambulatório pós-covid. Do aspecto financeiro, teve prejuízo: “Eu tive que gastar um pouquinho mais com o remédio, né? Pra poder ter essa recuperação. E vim aqui pro hospital, porque não tinha ônibus, eu tava vindo de uber”.
Apesar de não ter mantido nenhuma sequela física da covid-19, seu emocional ficou bastante abalado. Ciente das suas comorbidades, teve medo de morrer ao longo da internação e medo da reinfecção após a volta para casa, a qual poderia levá-lo de volta ao hospital. Associado a isso, desenvolveu uma sensação de gratidão e de vontade de viver, decorrente da oportunidade de superar essa situação: “Quando você chega assim perto de quase morrer e você tem esse privilégio de continuar vivo, quando foi muita gente, acho que toca um bocadinho na gente, né?”
Kátia Verônica
Kátia começa sua narrativa dizendo que a COVID-19 grave é "aterrorizante", e certos aspectos da experiência vivida são impossíveis de serem explicados. Seus primeiros sintomas foram súbitos: mal estar e febre alta, que rapidamente evoluíram para falta de ar. "Era angustiante, você procura o ar e não acha". Por ter plano de saúde, Kátia procurou um médico particular, que solicitou uma radiografia de tórax, diagnosticou pneumonia bacteriana e a liberou para casa com a prescrição de antibióticos e antitérmico. "Era dezembro de 2020. Naquela época, ainda não tinha nem vacina."
Por ser nutricionista de um hospital universitário que atendia COVID-19 e funcionária da UFRJ, Kátia já suspeitava que pudesse ter pego o coronavírus. Ao sair da consulta, decidiu: "eu não vou pra casa, vou pro centro de atendimento do fundão." Ao chegar, foi logo atendida, e diz que a equipe ficou "apavorada". Os profissionais estavam habituados a realizar apenas a testagem, e não a prestar o primeiro atendimento em COVID-19. Mesmo assim, prontamente reconheceram a gravidade do caso, e o médico responsável solicitou uma ambulância e acompanhou pessoalmente Kátia ao HUCFF. Deu entrada na emergência do hospital no dia 11 de dezembro, onde permaneceu durante 2 dias. Após o resultado da tomografia e com a progressão de seu estado clínico, a equipe decidiu transferi-la ao CTI para melhor monitorização.
Kátia não foi sedada ou intubada: permaneceu lúcida durante toda a internação. A equipe do CTI optou por investir em ventilação não invasiva (máscaras de oxigênio), em uma época em que ainda se aprendia sobre o melhor suporte intensivo ao paciente com COVID-19. Kátia diz ter preferido assim, pois "não queria perder a consciência". No entanto, ela nos lembra que a lucidez no ambiente do CTI não é melhor do que a "temida" intubação: ela pode também ser assustadora. Lembra-se da solidão de ficar presa ao leito, "cheia de fios", conectada a diversos aparelhos de monitorização - incluindo cateteres invasivos. Passava várias noites em claro, sem dormir e esperando o amanhecer. "Eu ficava rezando pra amanhecer. Porque seria outro dia, pra estar melhor e poder ir embora."
Os piores momentos da internação foram quando presenciou, ao seu lado, o óbito de outros pacientes que estavam travando a mesma batalha que a sua. Apesar disso, refere não ter se rendido ao desespero ou ao medo da morte: "eu não me deixei abater, porque eu acho que essa doença tem muito de psicologia. Se você se deixar abater, você não consegue sair dela." Lembra-se das palavras de uma médica do CTI que a acompanhou durante a internação, incentivando-a a ter calma. "Vai fazendo tudo devagar, não se apresse para nada." A música "Devagar, devagarinho" de Martinho da Vila, que a médica cantou nesse dia, acabou por virar seu lema, lembrando sempre dela nos momentos em que precisava se tranquilizar.
"E eu vou te dizer, ser sincera: eu acho que se eu tivesse em outro lugar, talvez eu não sobreviveria não." Kátia elogia a dedicação de todos os profissionais que a atenderam. Recebia visitas diárias de médicos, incluindo visitas de madrugada quando era preciso. Considera que os enfermeiros que a atendiam a tratavam "como se fosse um parente", principalmente nos momentos de higiene. Lembra-se, também, do atendimento com assistentes sociais, e as chamadas de vídeo com sua família que eles realizavam periodicamente.
Por ser nutricionista do hospital onde ficou internada, Kátia conhecia a maioria dos profissionais da equipe de nutrição. Diz que o apoio que recebeu de seus colegas de trabalho foi essencial. "Toda vez que ia quentinha, eles botavam um bilhete preso, para dizer: 'olha, a gente está aqui, você está indo bem, não pode desistir'. Isso era o maior incentivo". Lembra-se também, com humor, dos momentos em que seus conhecimentos como nutricionista se intrometiam na decisão das colegas: "me dá água de côco! Bota potássio para dentro, porque estou perdendo"; "é um consumo absurdo de massa magra! Mete proteína pra mim, três ou quatro Polenguinho, dois bifes, dois frangos".
No dia 20 de dezembro, Kátia recebeu alta do CTI e foi transferida à enfermaria comum, onde permaneceu por 4 dias. Lá, foi capaz de dar seus primeiros passos e chegou a auxiliar uma colega que estava internada ao seu lado. Foi para casa no dia 24 de dezembro, véspera do natal - era seu objetivo passar o natal em casa com a família. Ao falar sobre o período após a internação, diz que foi diagnosticada com diabetes durante a internação, e no momento ainda utiliza duas medicações e implementa mudanças no estilo de vida. Faz acompanhamento regular com clínico geral e endocrinologista particulares, e realiza exercícios fisioterápicos em casa para recuperação. Voltou a trabalhar 4 meses depois, e toda vez que entra no HUCFF se lembra da internação, dizendo "ter medo de pegar novamente, com essa gravidade".
Mabia
Mabia Souza das Neves
Mulher, preta, 27 anos, casada, sem filhos, pós-graduada, Enfermeira Administrativa em núcleo de segurança e supervisão da equipe, residente de Salvador\BA. Durante a pandemia, atuou em 2 hospitais filantrópicos, sendo pediátrico e geral para adultos assistencial e crianças. Acredita ter contraído o vírus no ambiente de trabalho, teve covid no início da pandemia em abril de 2020, foi atendida em hospital de campanha (SUS) em Salvador, não precisou de UTI.
Relata que no hospital que trabalha montou-se um centro de testagem só para os profissionais de saúde, realizava testes com certa frequência, o último que fez deu negativo, mas começou a demonstrar os seus primeiros sintomas que começaram leves, mas progrediram rapidamente, e com a piora procurou o atendimento médico, segundo nos conta: “O que me levou a procurar mesmo uma unidade hospitalar, foi a questão da dispneia, eu estava muito desconfortável, muito desconfortável, não estava conseguindo dormir, e eu percebi naquele momento que eu precisava de um apoio…”, a partir disso, procurou uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e pediu outro teste, “E la eu refiz o teste, eu refiz o teste, só que, eu já procurei essa unidade, eu já tinha conseguido fazer uma tomografia, então eu fiz uma tomografia e no momento que eu dei entrada nessa UPA, já tinha um exame de imagem, que já demonstrava que a minha tomografia, existia o padrão video-fosco, e nesse momento eu já fiquei hospitalizada e após o 2º exame, deu mesmo reagente para Sars-cov2.”
Mabia também nos conta que apesar de só ter sido hospitalizada nesse momento, ela já se isolava e mantinha o afastamento da família devido ao seu trabalho, “Então eu passei por um processo de afastamento da minha família. Antes mesmo do meu adoecimento. Porque, por ser enfermeira, por estar atuando na linha de frente, a primeira coisa que a gente pensa é proteger os nossos. Então eu resolvi me afastar do meu esposo, então passei um período sozinha mesmo, e eu tive esse processo de adoecimento, então teve a questão psicológica e emocional porque eu estava vivendo um turbilhão de emoções, de medo e consegui, né? Ainda tive que passar esse momento sozinha, mas passei esse momento sozinha por escolha e porque eu sabia que existiam pessoas e que existiam famílias que precisavam de mim naquele momento...”, E que manteve suas escolhas mesmo sem o apoio da família, que pedia para ela pedir demissão,“ E eu dizia, 'Vocês não entendem! Não é assim sair dessa profissão, é missão'...”.
No hospital, agora como paciente, retrata o receio, por nunca ter sido hospitalizada, “Eu trago um ponto assim crucial. Eu nunca havia sido hospitalizada. Eu nunca fiz nenhum procedimento cirúrgico. Nada mais invasivo. Então, naquele momento de hospitalização, de internação, eu pude inverter o papel, e quando eu inverti o papel eu pude ver que tudo que eu falo, que eu tenho falado voltando para as questões de segurança do paciente, ficaram muito explícitos para mim naquele momento, sei que existia muito medo dos meus colegas…” Durante aquele cenário de guerra, relata as incertezas do prognóstico e o medo constante, “Eu mesma me senti muito amedrontada porque era uma doença que estava no início, os protocolos mudavam quase que diariamente, não existia ainda fechado uma droga de escolha, eram várias drogas que estavam utilizando, que eu não sabia qual era a que tinha eficacia, então tive muito medo, tive medo de uma complicação, eu desaturei muito…”
Durante o período hospitalizada, relata ter tomado diversos medicamentos devido à falta de padronização dos mecanismos para enfrentar a doença e que isso teve correlação com as suas repercussões físicas, “Eu lembro que eu comecei o tomeflu e completei um ciclo, fiz o uso da azitromicina, eu fiz o uso da ceftriaxona, e utilizei um corticoide que eu não lembro o nome ainda, não fiz o uso de anticoagulante, porque ainda não era padrão, não se entendia que poderia teria a trombose, de trombos, não sei se essa falta do anticoagulante, esta repercutindo agora, nessa suspeita de TEP, e analgesia para dor e hidratação com soro fisiológico, tive muitos episódios de hipotensão também, onde eu não tinha nenhuma queixa, a equipe só conseguia identificar que eu estava hipotensa no momento mesmo da aferição de sinais vitais, e depois eu ouvi muitos relatos desses mesmo…”. Também comenta que diante do caos, teve uma assistência dos profissionais de saúde mais afastada que o ideal e que ficou evidente após uma situação de risco de vida, ela nos conta, “No momento da minha admissão eu informei, eu tenho reação extrapiramidal a aplazil, e mesmo assim, mesmo informando que eu tinha reação extrapiramidal a aplazil, foi preparado pra mim por 5x esse medicamento, então veja que a chance de uma administração incorreta de um medicamento, ela ficou ali na minha frente, ali latente...”. Felizmente, ela estava acordada todas às vezes, e devido ao seu conhecimento soube como reconhecer o medicamento antes da sua administração.
Após alguns dias, recebeu alta, e com isso, percebeu os impactos físicos e psicológicos que a COVID-19, teve na sua vida, relata que, uma semana após, teve outro diagnóstico, “Tive um diagnóstico de derrame pleural, e ainda carrego sequelas da COVID-19, aproximadamente em 1 mês e meio, eu tive uma suspeita de TEP de trombose (trombo embolismo pulmonar) e ainda assim, fiz todos os exames, angiopc e descartei a TEP, mas ainda assim, passei pela pneumo e ela me disse 'Sequelas da Covid', é uma doença que marca a vida, assim como marcou a minha vida…”. Percebeu também alterações no trabalho, que voltou imediatamente após a alta, que não tem a mesma vitalidade de antes, nos conta, “Eu sempre fui uma pessoa muito ativa, eu sempre fiz muitas coisas durante o meu dia, e eu entrei em um conflito mesmo, um conflito pessoal, porque eu tinha uma fadiga que eu não conseguia explicar o porquê dessa fadiga, então, eu comecei a entrar em conflito, em paranoia, comecei a me entristecer muito, porque eu tive que entender e que aprender, que existia uma Mabia antes do Covid, e que hoje existe outra Mabia, uma Mabia que tem que parar, não pode cometer excessos…”. Além disso, também relata, “Tive confusão mental, de esquecimento, o meu vocabulário ficou muito... eu posso dizer que pobre, eu esquecia as palavras, e ainda hoje eu sei qual é a palavra, só que eu tenho muita dificuldade ainda de falar, de lembrar a palavra, para falar.”
Mabia conta que atualmente faz terapia e acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, para se readaptar as mudanças ocorridas pós-COVID, agradece a força recebida mesmo que distante nesse período de isolamento antes e pós-hospitalização, “Eu mesmo distante, eu tive minha rede de apoio, que são à minha família, meus pais, minhas irmãs, meu marido, e que mesmo distante me deram força e cuidaram de mim, após a minha alta estiveram ali comigo todos os dias. Minha irmã é especial, ela foi fundamental para minha recuperação…”. Antes de finalizar a entrevista, ela deixa uma mensagem, principalmente, para os profissionais de saúde, sendo ela uma delas, devido aos acontecimentos durante a hospitalização, pedindo mais humanização: “Eu sei que vocês estão com medo, eu sei que vocês deixaram a família de vocês para estarem aqui, mas eu também deixei a minha família e adoeci, a gente não pede pra adoecer, então nesse momento, que eu sou uma colega, e estou em uma posição de fragilidade, eu peço que vocês olhem pra mim como se estivesse olhando para vocês, porque hoje sou eu, mas amanhã pode ser uma de vocês, e vocês vão precisar de uma assistência cuidadosa, de um olhar humanizado, no seu momento de cuidado...”.
Márcia
Márcia, 40 anos, técnica em enfermagem, moradora do Rio de Janeiro, relata que em junho de 2020 adoeceu por covid-19. Isolada dos demais familiares, por estar na linha de frente, ela conta que em um dia de folga se sentia bem e decidiu limpar a casa, porém, no dia seguinte, pela manhã, sentiu muito cansada, um cansaço que segundo Márcia era “diferente”. No dia 31 de maio, após esse primeiro sintoma, ela cogita a possibilidade de estar doente e posteriormente, a caminho do trabalho com sua colega, comenta: “Acho que eu estou com covid, estou muito cansada, não estou bem". Sua colega, que já teve a doença, sugere que Márcia vá para o hospital.
Ao chegar, ela fez uma tomografia, entretanto foi mandada de volta para casa com a prescrição sintomática. No dia 2 de junho, Márcia sentiu a piora do cansaço, e conta que sua irmã chamou o SAMU para levá-la em uma emergência médica, porém, ela se recusou a ir, deixando sua irmã extremamente preocupada: “Você vai morrer. Você não está vendo o jeito que você está.” Sua tia, na mesma noite a convenceu de procurar o serviço de saúde, momento em que Márcia já se apresentava com falta de ar aos pequenos esforços.
Márcia fez uso de diversas medicações até chegar ao HUCFF: “Assim que eu fiquei sabendo que eu estava com covid-19, o médico que me atendeu me passou Clavulin, Azitromicina, Ivermectina. Me passou uma bombinha, mas que eu fiquei pior com aquela bombinha. E acho que foi isso. Me passou umas quatro ou cinco medicações”. Ao chegar no hospital realizou o teste de swab nasal, que confirmou a covid-19.. Lá, permaneceu um dia na emergência e depois 10 dias na enfermaria. Ela conta que foi tratada com antibióticos e anticoagulante, e que ficou acamada na maior parte do tempo com auxílio de oxigênio por cateter nasal. Isso a impactou do aspecto psicológico pois estava acostumada a ser ativa no trabalho e na vida pessoal. Em toda sua internação ficou com o celular e pra ela isso foi bom, pois conseguiu se comunicar com seus familiares, e diz que isso os deixou mais calmos. Sua comunicação com a equipe multiprofissional também foi boa, Márcia teve oportunidade de conversar sobre seu tratamento, e diz que foi atendida dentro das suas necessidades. Seu medo era por conta de ter contraído logo no início da pandemia, momento em que ainda não haviam tratamentos bem definidos. Por lidar com pacientes intensivos, acredita que se contaminou durante o trabalho.
Em uma nova posição, agora como paciente e não como profissional que trabalha com pacientes graves, ela compartilha que parte do seu medo quando foi internada, vinha de ter presenciado muitos óbitos: “Foi a primeira vez que eu me vi em cima de um leito e é muito complicado, você tentar manter a tranquilidade e a serenidade para passar isso também adiante”. Nesse momento, ter fé foi importante para ajudar a manter a calma. Já financeiramente, ela compartilha que ao contrair covid-19, estava no primeiro mês de trabalho no hospital. Teve muitos gastos com medicamentos, mas após esse primeiro mês, conseguiu organizar a vida financeira. Conta ainda que, no início da covid-19, para se manter informada, recorria às pessoas que trabalhavam na área da saúde.
Após sua alta médica, Márcia teve que se recuperar por 15 dias antes de voltar ao trabalho, e que tarefas cotidianas como limpar a cozinha a cansavam. Entretanto, não chegou a fazer nenhum tratamento de reabilitação e recuperação após a sua alta. Ela considera que se recuperou totalmente após um mês da sua alta médica, a única sequela presente é o esquecimento. Ela conta que no trabalho não vê tanto problema por serem tarefas repetidas constantemente, mas diz que esquece o nome de alguma palavra ou o nome de alguém. Além disso, ela sente que algumas pessoas da rua onde ela mora a trataram diferente: “As pessoas tinham um pouco de medo e receio”.
Márcia vê o futuro com otimismo, principalmente como profissional que trata pacientes graves por covid-19 e relata que na sua perspectiva, depois da vacina as coisas ficaram melhores e também pelo fato de atualmente, termos mais conhecimento da doença:” eu quando fui trabalhar com COVID no CTI, que foi meu segundo contato com COVID, eu já tinha sido vacinada, então eu via diferença. A diferença que era muito grande do antes e do depois. O antes também era porque tinha muito medo do contágio, aquela coisa toda. E o depois que você já conhece a doença, você sabe que você não quer passar por ela de novo. Mas você já sabe como é que é. Você quer prestar o melhor cuidado possível. Você já está vacinada. Você está dentro de um setor que também é de COVID, é outra situação”.
Maria Cláudia
Maria Cláudia, 40 anos, dentista, moradora do Rio de Janeiro, contraiu a covid-19 em setembro de 2020. Por ser da área da saúde e atender seus pacientes em consultório, conta que continuou exercendo sua profissão durante a época de restrições ao contato, já que sua renda dependia diretamente do trabalho. Apesar de ter sido cuidadosa na atividade laboral, relaxou em outros aspectos, mantendo também o contato com outras pessoas, as quais considera ter sido a fonte de contágio, especificamente no aniversário de seu marido, em que possivelmente alguém que estava com a doença passou para ela, seu marido e também para outras pessoas, sendo ela a única que desenvolveu a covid-19 com gravidade.
Conta que a doença começou com sintomas de febre, calafrios e dores no corpo, e foi se agravando, com febre e cansaço progressivos que não passavam com uso de antitérmico e antibiótico. Maria Cláudia buscou atendimento médico durante os primeiros dias do quadro e a conduta era de tratamento sintomático e observação. Com a piora dos sintomas, continuou procurando o hospital, porém resistia a internação devido a preocupação com seu filho, já que ele também estava infectado.
No décimo dia de sintomas, teve que ser trazida ao hospital novamente, já sem conseguir andar ou falar por conta do cansaço. Já internada, precisando de suporte de oxigênio de alto fluxo, ela relata que não havia vagas disponíveis para internação no hospital que se encontrava e que teve que ser transferida para outro hospital com disponibilidade de leito no CTI. Após a transferência, ficou um total de 9 dias internada em um hospital privado, sendo 8 dias na terapia intensiva.
Durante a internação, a possibilidade de intubação foi levantada, mas ela recusou essa conduta, pedindo para não realizarem o procedimento, visto que, pelas informações que circulavam na época, tinha o pensamento de que quem “entubou morreu, entubou não volta”. Sendo assim, ficou acordada e com máscara de oxigênio de alto fluxo durante os períodos mais críticos da doença. A forma encontrada para melhorar sua saturação de oxigênio foi através de manobras, como a pronação, propostas por um fisioterapeuta, o qual teve papel essencial na sua evolução e melhora.
Além do sofrimento físico, representado pelos sintomas, pelas rotinas de exame e tratamento, Maria Cláudia também relata que do aspecto emocional, a falta da família decorrente do isolamento social e a ausência do celular, foram pontos que a deixavam angustiada, já que não conseguia receber notícias dos seus parentes, nem os informar sobre sua condição. No 3° dia de internação, através de conhecidos, conseguiu que lhe devolvesse seu celular, o que foi motivo de alívio, principalmente porque poderia falar com o filho, já que a distância dele era algo que a angustiava.
Maria Cláudia sente falta de ter recebido um cuidado mais humanizado por parte da equipe de saúde, que não demorava muito nos atendimentos e nas conversas com os pacientes. Ela reconhece que esse aspecto pode estar relacionado ao medo que os profissionais tinham de contrair a covid-19. Ela por estar consciente do que acontecia ao seu redor, adotou uma postura ativa em sua internação, apesar de suas limitações clínicas. Negociava com a equipe o uso de calmantes, buscando permanecer orientada e lúcida, como ela relembra: “teve um dia que eu dormi o dia todo que eu percebi, eu falei (...) ‘eu estou piorando? Porque eu só estou dormindo’”. Teve a iniciativa de pedir para reduzir o oxigênio e optou por técnicas de respiração guiadas por ela mesmo para reduzir os níveis de ansiedade. Recorreu também à espiritualidade, representada pela crença em Deus, para se acalmar ao longo dos dias.
Após a alta, sentiu muita falta de ar, teve dificuldade em pequenas atividades, e atualmente o desconforto são em maiores esforços. Outro sintoma persistente, é o prejuízo na memória de curto prazo que atrapalha sua rotina ao executar tarefas básicas, como desligar o carro e trancar a porta de casa ao sair. Ela conta: “Eu tenho que pensar muito para não esquecer das coisas para fazer tudo certinho porque se eu não faço, esqueço”.
Do aspecto psicológico, as crises de ansiedade também permaneceram, porém de forma controlável: “Depois disso eu fiquei com um pouco de crise de ansiedade, sabe? (...) A parte psicológica para mim me afetou mais do que qualquer outra coisa.”. De certa forma, até hoje lida com os impactos emocionais da sua experiência de adoecimento: “É esse lance de pensamento de morrer, de deixar o Theo, não quero doença, pânico de hospital, não quero mais hospital nem a pau (...). Não posso imaginar ficar internada, sabe? A internação para mim é um bicho de sete cabeças, eu não posso imaginar isso aí, não”.
Maria Verônica
A história de Maria Verônica com o vírus começou de forma atípica. A carioca de 59 anos, nos conta que em abril de 2020, nas primeiras semanas da pandemia, procurou um hospital particular próximo a sua casa por conta de um “mal-estar” no estômago, para o qual foi indicada uma tomografia de abdome, que não mostrou nenhuma anormalidade abdominal. No entanto, como aparece uma parte do pulmão na imagem, uma das médicas radiologistas do hospital conseguiu identificar características suspeitas e pediu que ela voltasse e fosse internada para fazer uma nova tomografia de pulmão e, posteriormente, um teste para covid-19. Os novos exames mostraram acometimento compatível com a doença e resultado positivo, confirmando o diagnóstico.
Apesar de estar assintomática quando foi internada, no dia em que saiu o resultado do teste, Verônica havia piorado muito e tornou-se necessário transferi-la para o semi-intensivo. No dia seguinte, coincidentemente seu aniversário, teve que ser entubada. O momento da intubação, assim como outras medidas tomadas até então, foi feito com a aprovação de Verônica, mesmo sem entender direito o que era a doença, não só ela, como os médicos também, visto que a pandemia ainda era recente. Houve uma concentração de esforços e recursos para seu caso por parte dos profissionais. Nesse sentido, relata: “Hoje com toda essa escassez de leitos hospitalares, talvez eles não tivessem tempo nem recursos para fazer o que fizeram por mim, então eu não tive a preocupação e eu até então não sabia o que que era a doença direito e acho que nem eles soubessem, e arriscaram tudo em mim como uma das primeiras pacientes de covid daquele hospital”. A partir do momento da intubação, permaneceu sob sedação durante 50 dias, sendo 21 deles entubada e o restante com ventilação pela traqueostomia. Maria Verônica passou pelo CTI específico para covid-19, ficou mais um tempo no CTI geral e, posteriormente, no quarto, totalizando aproximadamente 90 dias no hospital.
Nesse período em que permaneceu sedada, apesar de não lembrar, teve assistência de 2 médicos além da equipe habitual, o que foi arranjado por um amigo seu, que também trabalhava no hospital onde ficou internada. Esse mesmo amigo, pela possibilidade de circular lá dentro, esteve presente no seu despertar o que trouxe uma “alegria muito grande” para ela e que considera ter ajudado na sua recuperação. Além disso, também pode ver outras pessoas de seu círculo de amizade por meio de chamadas de vídeo intermediadas pela psicóloga do hospital. Dentre todas as pessoas com quem falou, as conversas com seu psiquiatra foram marcantes, sobretudo por ter enfrentado momentos ruins no passado com o auxílio dele. Sendo assim, Verônica destaca que, de uma maneira geral: “o mais importante do despertar foi poder encontrar as pessoas que eu gosto muito”, tendo sido presencialmente ou online.
Após ter acordado, ainda havia um longo caminho de recuperação pela frente. No momento em que estava no CTI geral, já desanimada por todo o tempo passado ali e por ainda estar sozinha grande parte do tempo, recebeu da equipe, sobretudo das enfermeiras, um cuidado essencial para sua melhora, caracterizado pela insistência das profissionais em conversar e principalmente, animá-la. Essas iniciativas das enfermeiras acabaram a contagiando e fazendo com que ela mesma procurasse interagir e se movimentar mais, ainda que de forma limitada, inclusive exercitando a voz, prejudicada pela traqueostomia, com músicas. Ela relata que: “a coisa mais importante tirando essas visitas, ver suas amigas entrando e tal, foi a alegria das pessoas que a gente implantou. Esse clima apesar de eu estar sem movimentar, apesar de eu estar toda ruim ali na cama, a gente conseguiu ter alegria e brincar, o ânimo foi muito bom, então eu acho que isso foi fundamental.” Dessa forma, Verônica manteve sua evolução e foi encaminhada para o quarto.
Quando foi para o quarto, apesar da melhora clínica apresentada, ainda manteve as sequelas que o CTI trouxe, representadas pela traqueostomia, por uma “escara” na região sacra e por um déficit motor no lado esquerdo do corpo. Dessa forma, pela consequente incapacidade de se movimentar e de falar bem, se viu dependente de outras pessoas para se comunicar e para tentar aliviar os desconfortos que sentia, o que se confrontou com o fato de sempre ter sido muito ativa e independente na sua vida: “Eu tô numa cama onde eu não consigo me mexer, onde eu preciso usar fraldas porque eu não levanto para ir ao banheiro, onde eu me alimento por sonda, eu não falo porque eu tô com a traqueostomia, então assim, você ainda usa as vezes o oxigênio porque a respiração ainda não tá boa, então você depende de todo mundo, você não tem mais a menor chance de fazer nada sozinho”.
Sendo assim, após viver uma experiência de adoecimento grave, Verônica refletiu sobre valorizar as coisas simples da vida, que passam despercebidas quando estamos acostumados a fazê-las: “Eu reaprendi a respirar, reaprendi a comer, reaprendi a falar, reaprendi a andar, coisas que a gente faz no dia a dia com uma velocidade que a gente não valoriza”. Ao sair do hospital, por todas as sequelas desenvolvidas, houve necessidade de manter alguns cuidados e serviços médicos, sendo disponibilizado através do plano de saúde. Sua alta foi condicionada pelo serviço de homecare, representado pelo auxílio de um enfermeiro que fazia os curativos da úlcera, de uma fisioterapeuta para ajudar na recuperação motora e de um médico para acompanhar sua evolução pós-alta. Em fevereiro de 2021 teve alta do serviço de curativos, mas ainda continuou com o neurologista devido a uma “neuropatia que herdei do CTI". Manteve o serviço de endocrinologia, clínico geral e nutricionista.
Por fim, a fé e a religião, que já mantinha desde pequena sendo criada na Igreja Católica, foram pilares na experiência de adoecimento de Maria Verônica. Nesse sentido, defende que todos tenham sua fé, mesmo que não seja a mesma que a dela, já que durante sua internação, tornou-se claro que, não haveria sentido todas as dificuldades que ela passou sem Deus para ressignificá-las, ou que ela não teria saído daquele período com vida sem a ajuda divina, colocando-se como um instrumento para Ele e os profissionais fazerem seu trabalho. Desse modo, ela relata que: “Eu digo que sou testemunha viva de que esse Deus existe, senão eu já tinha ido embora. Os médicos foram fantásticos, foram aquilo que eu falava antes pra você, você venceu a covid? Não, eu não venci a covid, as pessoas que cuidaram de mim e que Deus iluminou essas pessoas, certamente”.
Maristela
Maristela, 66 anos, funcionária do hospital da UFRJ, moradora do Rio de Janeiro, contraiu a covid-19 em março de 2020, logo no início da pandemia. Possui hipertensão e glicose alterada e acredita que se contaminou após uma carona que deu a uma pessoa que apresentava sintomas, mas não diagnosticou a doença. Alguns dias depois, Maristela e seu esposo começam a apresentar os primeiros sintomas. Ele, de forma branda e leve e ela com cansaço, bastante falta de ar e tosse, o que a fez procurar o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF). Na sua primeira ida à emergência, numa quarta-feira, a médica examinou Maristela e passou orientações: “me deu um papel, um mapinha assim, pra eu ir seguindo aqueles passos, se eu piorasse, pra eu voltar”. No domingo de manhã, depois de uma noite com muita falta de ar, Maristela retorna à emergência do HUCFF. Ao fazer a tomografia, foi constatado que estava com um comprometimento pulmonar de 25% e precisaria ficar internada.
Por duas vezes, Maristela quase foi entubada, e ao longo da sua permanência na enfermaria conseguiu ter acesso ao seu celular o que foi muito importante para manter contato com seus familiares, também utilizou o celular para buscar mais informações sobre o vírus. Porém, destaca-se que, por vezes, devido ao estado em que se encontrava, nem sempre tinha forças para segurar o celular. Tinha receio de ser entubada pois presenciava diversas mortes ao longo da sua internação, além de receber mensagens e ligações que reforçaram seu receio: “Ah, não deixa te entubar, não”, em resposta, ela lembrava da escassez de materiais e profissionais no sistema público e respondia: “Não entuba todo mundo, porque não tem aparelho, não tem respirador, não se preocupe, só vão me entubar se eu tiver muito mal, no final de carreira mesmo”.
Além disso, relata que “era tudo muito temeroso, porque não tinha protocolo, não tinha como cuidar do paciente, pois ninguém conhecia a doença ainda”. Segundo ela, muitos profissionais eram do grupo de risco e precisaram se afastar. Por conta disso, sentiu falta de um acompanhamento durante o período em que esteve internada como, por exemplo, de um fisioterapeuta, pois “os funcionários que eram fisioterapeutas da casa já eram mais idosos, aí não podiam ir, ficaram afastados”. Ela permaneceu 29 dias internada e por 2 vezes foi direcionada para a UTI: uma vez para a UTI COVID que era alocado na própria emergência, e em segundo momento, devido a uma trombose.
Depois de receber alta, Maristela começou a fazer fisioterapia em casa, através de um programa online, realizado por profissionais do país inteiro, destinado a pacientes que ficaram internados por conta da covid-19. Porém, 6 meses depois, o hospital começou a oferecer um ambulatório para paciente com sintomas pós covid-19, então ela saiu deste programa nacional e continuou a fisioterapia no hospital. Além dos sintomas já citados, Maristela relata que também sentia o corpo pesado “como um chumbo”, o que a impossibilitava de realizar diversas atividades, uma vez que sua vontade era apenas ficar deitada. Como sequela da covid-19, ela relata que teve queda de cabelo, levando-a achar que ficaria careca; passou a ter problemas de memória; dificuldade na fala; e trombose, que precisou tratar por bastante tempo . Por causa da perna, Maristela não conseguia caminhar direito, então ela diz: “mudou muita coisa na minha vida”.
Maristela sentiu que as pessoas não queriam ficar perto dela por medo de contrair a covid-19 ou por medo de contaminá-la novamente. Em casa “ficou aquela preocupação de limpar tudo, passar álcool”, manter distância, até porque o médico pediu que ela e o marido ficassem em quartos separados e utilizassem banheiros diferentes. Essa rotina durou cerca de 30 dias. Ela conta que tentou manter o bom humor desde a internação até o momento em que retornou para casa, pois considera que “o paciente tem que ser paciente” e mesmo com dificuldade, Maristela orava e cantava. Ela também recebeu mensagens de amigos e familiares que estavam orando por ela: “Então tinha essa corrente, essa força espiritual que ajuda muito o paciente… traz assim um conforto, uma paz interior muito grande”. Do aspecto financeiro, não teve impactos pois pôde utilizar o serviço público de saúde. Sobre as medicações, contou com ajuda de seus familiares.
Depois da sua experiência de adoecimento, Maristela considera necessário “ter força, fé e acreditar que vai vencer, não se deixar abater”. Ademais, ela destaca que é preciso melhorar a comunicação entre os profissionais de saúde e os pacientes e familiares, pois a família acaba não tendo notícia dos pacientes que estão internados. Por fim, ela agradece a Deus e a todos os profissionais pelo cuidado que recebeu enquanto estava internada.
Margareth
Margareth, 56 anos, moradora de São Paulo, relata que em agosto de 2020, após seu marido ser internado com covid-19, sentiu um cansaço extremo, e pensou que, por mais que ela estivesse o dia todo no hospital, o cansaço não se justificava. No dia seguinte, pela manhã, ela sentiu uma arranhadura na garganta e uma leve dor de cabeça. Em seguida, começou a ter outros sintomas como: febre, náusea, perda de paladar e olfato, fazendo Margareth recorrer à assistência médica. Ela entra em contato com seu médico assistente que orienta a ida para o mesmo hospital privado que seu marido estava internado, para ela fazer a primeira consulta e exames de imagem e PCR. Com evolução rápida dos sintomas, no quinto dia, Margareth estava se sentindo extremamente doente e “sem condições de andar, sem condições de tocar no meu corpo”, retornando ao hospital. Nesta segunda ida ao hospital, ela foi internada com um acometimento pulmonar de 25 a 50%. Conta que antes de ser internada tomou azitromicina por orientação do seu médico. Ficou 24 horas no pronto-socorro internada, sem conseguir um leito, mas já sendo medicada.
Ao todo, Margareth ficou 10 dias internada na enfermaria. No início de sua internação não conseguia respirar, ao ponto de precisar de suporte de oxigênio, e ouviu a equipe médica preocupada com seu estado de saúde: “manda avisar a UTI porque ela está progredindo muito rápido”. Margareth conta que não perdeu as esperanças e já no sexto dia de tratamento, devido a sua melhora clínica, começou a desenvolver exercícios de fisioterapia mais acentuados, o que distanciou a necessidade de ir para a UTI. Mesmo nessa situação de fragilidade, Margareth destaca o cuidado e acolhimento da equipe multiprofissional, principalmente pela atenção ao seu sofrimento devido a questão do isolamento: "Eu percebi que mesmo que eu não precisasse de uma atenção de uma enfermeira, elas entravam no quarto só para conversar comigo”.
Após sua alta, ainda apresentava perda de olfato e paladar, e também chegou a perder peso, mas conseguiu recuperar em casa. Margareth conta ainda que sofreu com o cansaço ao fazer atividades rotineiras, sem ter fôlego para realizá-las, como também uma importante perda muscular, ao ponto de demorar 3 meses para andar sozinha dentro de casa. Outra sequela também foi a perda de memória para fatos recentes, nesse sentido, ela conta: “a minha memória, eu acho que ficou bastante atacada, não é que eu esqueci os fatos passados, mas sabe esses compromissos do dia a dia? Eu me esqueço com muita facilidade tudo, eu tenho que anotar se eu quero cumprir com as minhas obrigações”. Também relata insegurança ao retorno do cotidiano, como por exemplo, andar na rua.
Margareth acredita ter sido infectada pelo marido em um voo do Rio de Janeiro para São Paulo, com lotação máxima e a bordo pessoas sem máscara. Após 5 dias ele passou a ter sintomas respiratórios, quando foi internado. Margareth foi internada após 5 dias da internação do marido. Em relação à dinâmica familiar, Margareth conta que a filha de 22 anos se mostrou muito madura perante ao adoecimento dos pais, tomando decisões difíceis, como: a intubação do pai e a retirada da barba. Margareth refere o quanto a covid trouxe a sua consciência da “morte” e da solidão.
Ao chegar em casa do hospital, Margareth conta que a recomendação médica foi de permanecer em isolamento por 14 dias , e também precisou contar com o auxílio da filha para tomar banho. Ao mesmo tempo, havia a preocupação da família com uma possível sobrecarga da filha que estava responsável pelos cuidados.
Margareth é membro de uma Igreja evangélica e conta que, fazer parte de uma comunidade cristã foi de grande importância para o bem-estar da família, e ressaltou a importância do acolhimento e cuidado neste momento de dificuldade. Nesse período da pandemia, ela conta que nem ela e nem o marido, que é pastor, tiveram seus empregos afetados, e que, inclusive na igreja a qual são líderes tem feito o trabalho de ajudar pessoas que foram afetadas financeiramente e emocionalmente pela pandemia. Ela compartilha que, por fazer parte da liderança da igreja, teve acesso às informações necessárias em relação à covid-19. Além disso, ela acompanhou os jornais televisivos para se manter atualizada. Para ela, “O mundo nunca mais vai voltar a ser como era antes”, mas ainda assim ela acredita que o futuro será mais seguro, que por mais que o vírus se multiplique rapidamente, acredita que a ciência conseguirá alcançar essa velocidade do vírus.
Por fim, ela salienta a importância de uma pessoa com suspeita de covid-19 procurar a assistência médica. Na sua experiência, ela conta que os sintomas começam amenizados e evoluem rapidamente, por isso a importância de ser urgente o diagnóstico e tratamento. Outro ponto que Margareth ressalta é a pessoa ter uma crença religiosa nesse momento de dificuldade, associado aos recursos da ciência e com isso fazer o que for possível para ajudar as pessoas à nossa volta.
Nelson
Nelson, 56 anos, auxiliar de farmácia do HUCFF, nascido na região Norte e residente da cidade do Rio de Janeiro. Em seu trabalho, realizava entrega de medicações entre os setores, o que lhe garantiu um contato próximo com as equipes hospitalares. Apesar de tomar todos os cuidados que lhe era orientado, não mantinha totalmente o isolamento social. Reside com a esposa e a filha e outros parentes moram próximos, mas uma parte de sua família é de São Paulo.
Tem o hábito de andar de moto e apesar da preocupação, arriscou uma viagem para ver a mãe em Cubatão em maio de 2020, pois temia muito não a ver mais. Nessa viagem se contamina com a covid-19 e já retorna para casa com sintomas, apresentando intensa fraqueza e falta de ar (sensação de afogamento) quando chega no domicílio.
A esposa o acompanha até o HUCFF, onde ele permanece internado por volta de 26 dias, a maior parte na UTI e alguns dias na enfermaria. Foi entubado, apresentando 75% de comprometimento do pulmão. Apresentou episódios de alteração de consciência, e ao acordar, sofreu pela solidão e saudade causados pela ausência de contato diretamente com a família: “Me sentia sozinho, sem ninguém. Não sabia se eu ia viver, se eu ia morrer ou não”. Para Nelson, a internação na UTI foi algo muito marcante do aspecto psicológico: “Deixa a gente abalado esse negócio, fica estranho, fica nervoso mesmo, não consegue falar com ninguém, só vê estranho, pessoas morrendo. Então, acho que para mim aquilo dali foi muito pesado, muito, muito pesado.”.
Após a desospitalização, ainda permanece em recuperação, sendo cuidado pela família. A cunhada realizava curativos em uma úlcera por pressão e a esposa cozinhava uma dieta especial para seu fortalecimento. Também fez tratamento com o serviço de fisioterapia do HU, mas não quis fazer acompanhamento com o Ambulatório Pós-COVID. Hoje, apesar de melhor da dispneia, do cansaço e ter recuperado o peso, ainda sente algumas sequelas da covid-19, como lapsos de memória, alteração na visão, uma úlcera gástrica em tratamento e uma possível trombose que o impacta em outro tratamento que precisaria fazer no joelho. Do aspecto financeiro, não teve gastos extras, e no que diz respeito à gestão do lar, sua esposa conseguiu administrar durante sua ausência.
Ao ser perguntado sobre o apoio que recebeu ao longo de toda sua experiência com a covid-19, Nelson afirma que recebeu um intenso apoio familiar e da comunidade religiosa que frequenta (é católico), muito emocionado por ter recebido diversas mensagens e orações, inclusive de colegas que vieram a falecer por covid-19, o que lhe magoou bastante. Teve familiares doentes, como a sobrinha que também chegou a ficar internada no HU e que procurou estar próximo. É muito grato a equipe que lhe prestou assistência hospitalar e que os profissionais de saúde precisam de uma maior valorização e credibilidade, inclusive do ponto de vista governamental.
Paula
Paula, 40 anos, moradora de Brasília, nascida na região centro-oeste, é psicóloga e contraiu a covid-19 no primeiro pico da pandemia, em junho de 2020. Relata, a princípio, não ter associado os sintomas à doença, pensando que era apenas uma sinusite característica dessa época de inverno. Devido a semelhança dos sintomas, 7 dias após o início, ela procura um hospital privado para descartar a hipótese de covid-19. Nesse momento, além dos sintomas de sinusite, ela também apresentava tosse. Logo que chegou foi internada, onde permaneceu por 23 dias, sendo todos na UTI: “E aí, quando eu fui na emergência de um hospital particular com os sintomas que eu disse pro médico que eu tava tendo, ele já pediu uma tomografia do meu pulmão. E aí, constatou 75% de comprometimento pela covid-19. Eu fui direto para a UTI”. Paula conta que não esperava por isso e que estava bem fisicamente, portanto não expressou grande reação, acrescentando que: “Não tinha noção que estava tão grave porque eu não tinha aquele sintoma que eu via na TV, que as pessoas ficavam com falta de ar.”. Não sabe como contraiu a doença e relata que transmitiu o vírus para marido e filha, ambos com sintomas brandos. Ficou tranquila por ter certeza que não contaminou nenhum paciente ou colega de trabalho.
No início da sua internação ainda conseguia efetuar suas necessidades básicas sozinha, no entanto, a partir do terceiro dia, começou a ter falta de ar até nas atividades mais básicas, como se levantar e tomar banho. Ela relata: “para eu ir no banheiro tinha que haver uma enfermeira, para me ajudar a levantar, para ir ao banheiro, não conseguia tomar banho sozinha”, o que demonstra o agravamento de seu estado de saúde e a dependência de uma equipe que se encontrava sobrecarregada Nesse momento, mesmo buscando outras alternativas para adiar a possível intubação, como a posição de prona, houve piora clínica, que levaram os profissionais de saúde definirem que fariam o procedimento.O momento da intubação foi de grande medo para Paula, pois a via como sinônimo de morte, e conta que, antes do processo, pediu muito para que não fosse realizado.
Apesar de intubada, oscilava entre sonolência e consciência, sem ficar completamente sedada, como é o habitual no procedimento. Ela atribui sua sobrevivência a esse estado lúcido e interativo, que a permitiu se comunicar com médicos e enfermeiros, indicando onde tinha dor e do que necessitava a cada momento. Esse estado, que para ela foi positivo no sentido da vigilância sobre seu próprio tratamento, também a fez experienciar momentos de ansiedade e angústia, pois lidou com o pensamento sobre a morte dia após dia, como por exemplo, com a movimentação dos médicos em outros leitos e com os barulhos que ouvia: “ Eu pedia muito para dormir, para pelo menos, eu não ver a hora que eu tivesse morrendo. O ruim era isso, eu vou morrer e ainda vou ter que ver e é por isso que eu ficava pensando: ‘eu vou morrer hoje, dia tal, mês tal’, eu ficava tentando fazer esse controle”.
Apesar de estar consciente e a equipe saber dessa condição, Paula percebia que esse conhecimento era seletivo por parte dos profissionais, que em determinados momentos não davam tanta importância às suas queixas, como é exemplificado no momento de passar informações sobre seus familiares. Ela relata: “Eles (os familiares) tinham meu boletim, todo dia, cinco horas da tarde, mas eu não tinha notícia nenhuma de ninguém e eles não me davam notícias porque eu tava entubada. Então ao mesmo tempo que estava ali consciente, tinha hora que eles me tratavam como se não tivesse tão consciente, como se não tivesse vendo". Isso se deu até o dia da extubação, quando recebeu a visita de seu marido. Nesse sentido, ela relata que sentiu falta de um olhar médico mais humanizado e acolhedor durante sua passagem pelo hospital, não só por ela, mas também por ali estarem internados outros pacientes com covid-19 que poderiam falecer a qualquer momento.
Paula ao longo da sua internação, usou o fato de ser psicóloga como estratégia para lidar com o período em que ficou na terapia intensiva. No entanto, ao final da sua internação, seu emocional já não suportava mais e sua alta foi um momento muito conturbado: “Eu acho que eu nunca tinha tido crises de ansiedade. Eu acho que ali foi a minha primeira crise de ansiedade. Quando a médica plantonista ia assumir o plantão da noite entrou, aí eu entrei em desespero, chorei muito, falava que se não me dessem alta, era melhor me levar para um hospital psiquiátrico, porque eu não estava mais aguentando ficar ali, (...) foi um desespero mesmo, assim, por isso eles me deram alta, porque ficar lá, já estava fazendo mais mal do que bem”.
O retorno ao trabalho foi devagar, já que se sentia insegura para retornar ao seu cotidiano:“Eu fiquei quase um ano sem atender. Voltei a atender esse ano em 2021, depois que tomei a segunda dose da vacina, eu voltei atender. Eu não queria atender nem online, não me sentia confortável”. Sobre o aspecto financeiro, não teve grandes prejuízos
Paula conta sobre as sequelas emocionais que covid-19 deixou em sua vida. Ao voltar para casa, desenvolveu crises de ansiedade mediante gatilhos que a faziam lembrar da doença, como reportagens passando na televisão. Tinha medo de sair na rua e estar em contato com outras pessoas, o que poderia causar uma reinfecção e, portanto, a voltar para o hospital. Ela relata: “Então era como se eu não tivesse... estou viva, mas não posso viver. Eu tô viva, mas eu não posso ir ali na esquina, que eu tô correndo perigo de voltar pro hospital, de ser infectada de novo, porque não tinha vacina”.
De uma forma positiva, sente-se mais presente para viver, pois entendeu que nem sempre estaremos vivos no dia seguinte para realizar os planos. Sendo assim, ela tenta diariamente colocar isso em prática, reforçando que ainda mantém o planejamento para o futuro que gostava de fazer: “eu planejo, está tudo certinho, mas eu preciso também experienciar esse hoje, porque pode ser o último dia, igual eu pensava no hospital, foi o último dia que vi minha filha e eu não me despedi direito, então fica muito isso”.
Reneé
Reneé tem 57 anos, é cabeleireiro aposentado, reside sozinho no município de Nova Iguaçu e é paciente do HU há mais de 30 anos. Trata uma cardiopatia e convive com problemas vasculares de membros inferiores, tratado na DIP. No setor de Cirurgia Vascular, acompanha uma insuficiência venosa crônica desde de criança, já tendo ficado internado no HUCFF algumas vezes por isso.
Desde o começo da pandemia procurou manter o isolamento corretamente, segundo as orientações da equipe que o trata. Contudo, recebeu a visita de familiares em outubro de 2020 que posteriormente apresentaram sintomas de contaminação, assim como ele, que teve dores de cabeça e no corpo, e uma febre muito alta que o levou a Clínica da Família com a suspeita de covid-19. Apesar do resultado ser negativo, a equipe da unidade lhe recomendou procurar assistência no HUCFF pois ele apresentava uma alteração cardíaca relevante. Após as orientações, evoluiu com uma piora clínica no período de 2 dias, sendo levado para a emergência do HU pela irmã. No hospital, identificou-se uma lesão pulmonar de 60% e o vírus da covid-19 no pericárdio, sendo considerado um caso grave.
Reneé, apesar da gravidade, busca dialogar com a equipe para que não ocorra a intubação, e passou diversos dias procurando reagir a doença para evitar isso, pois acreditava que com as limitações da sua saúde, não sobreviveria: “Eu sabia que seu eu fosse entubado eu não voltaria. Eu tinha isso comigo devido ao problema cardíaco que eu já tinha (...)”. Negociava com a equipe o procedimento porque acreditava ser capaz de se recuperar sem a ventilação mecânica e também sentia na equipe uma parceria e confiança: “Pedia para a equipe esperar, e dava um tempo, pedia ‘por favor, esperar só mais um pouquinho’. Então eu sabia até que limite eu estava tendo, tentando suportar para mim não ser intubado. Porque eu sei que o momento que eu não estivesse mais aguentando mesmo, mesmo com um aparelho na bolsa para eu conseguir respirar, eu ia falar que sim, eu ia desistir mesmo”. Conseguiu se recuperar da pericardite e no sétimo dia foi transferido para a enfermaria, onde teve um infarto pulmonar. Posteriormente, foi transferido para a enfermaria de Pneumologia onde fez o tratamento respiratório e motor.
Nesses momentos, estar sozinho lhe pesou muito, pois temia morrer sem se despedir das pessoas próximas, teve pouco acesso a videochamadas até estar autorizado a usar seu telefone. Ficou internado por um período de 82 dias e após a alta, contou com ajuda de suas irmãs e amigas para cuidar de suas atividades e recuperação. Logo em seguida, apresentou dificuldades motoras e intenso cansaço, precisando de apoio constante para realizar sua rotina, o que lhe abalava emocionalmente. Buscou outras formas de suporte, frequentando uma academia de reabilitação além de fazer o tratamento de fisioterapia pela UFRJ. Permaneceu sentindo-se cansado, e durante uma consulta, foi solicitado uma tomografia que identificou 3 tromboses pulmonares, e foi internado novamente após 15 dias da alta anterior. Fez acompanhamento pela Pneumologia com tratamento usando corticoide e teve alta ao completar um ano.
No início de 2022, teve uma nova internação, desta vez por conta de celulite e trombose venosa. Além das sequelas motoras, que foram recuperadas, também apresentou uma calcificação das artérias, o que lhe trouxe sintomas como taquicardia, dores, pontadas e hipertensão, identificando piora durante a madrugada, nesse período de internação tratou também esses sintomas de pós-covid-19, não só da infecção primária. Reneé afirma: “A covid-19 que trouxe várias sequelas que eu não tinha”, aumentou a frequência de internações hospitalares, entre outros diversos problemas: dores nas pernas, cansaço, nódulos na garganta, respiração comprometida, esquecimento e lapsos de memória e a piora da doença vascular prévia. Do aspecto financeiro, houveram gastos extras: “(...) alguns tipos de medicações que eu tinha que tomar, nem todas eu tinha no hospital, eu tinha que comprar”. Apesar de não precisar gastar com exames ou consultas, as medicações foram suficientes para impactar seu orçamento.
Apresenta um prejuízo na vida social, pois não consegue mais frequentar ambientes com muitas pessoas por causa da dificuldade vocal, atividades como falar muito, rir, cantar, ficam prejudicadas, impactando seu senso de identidade. Também teve prejuízo no seu trabalho: “Não aguento ficar muito tempo em pé, não aguento mais todo o processo que eu fazia de química”. Conviver com as alterações provocadas pela covid-19 desperta nele medo e questionamento sobre sua vida: “Não sei o que pode acontecer, porque é sempre uma coisa nova que parece, mas isso mexe um pouco com a minha cabeça”. Apesar disso reconhece que teve uma grande melhora e superou limites: “Devido a lutar e a persistir, eu por persistência mesmo, eu falei para mim mesmo que ia tentar me recuperar, tentar chegar ao meu limite para passar o meu limite. Eu consegui, mas muita coisa ainda me incomoda, porque eu não consigo realizar tudo aquilo que eu fazia com frequência, tipo academia, não consigo mais fazer como eu fazia (...)”.
Reneé sentiu uma diferença de tratamento por parte sua comunidade após a alta, um “distanciamento”, mas reflete que talvez não seja preconceito, mas uma precaução da parte deles: “sabendo também que eu tinha várias sequelas e por não querer trazer, durante o período da covid-19, de novo, uma contaminação para dentro da minha casa”. Ele participou ativamente de seus tratamentos e demonstra uma boa compreensão sobre o próprio corpo. Tem um contato muito próximo com as equipes onde se trata (Vascular, DIP, Pneumologia e recentemente Otorrino), o que o fez dialogar e negociar sobre o seu tratamento, considerando a comunicação muito acolhedora e verdadeira. Demonstra gratidão pelo tratamento recebido.
Roberto
Roberto, 62 anos, funcionário público, morador do Rio de Janeiro, contraiu covid-19 em setembro de 2020, enquanto estava trabalhando. Ele conta que no meio da pandemia começou apresentar sintomas, mas por estar sempre precavido, não considerou a possibilidade de estar contaminado, então procurou um médico particular, que o diagnosticou com rotavírus, o que acabou retardando o tratamento adequado. Após a ida ao médico, Roberto ficou cerca de uma semana até fazer o teste de covid-19, sendo este um fator que contribuiu para o agravamento dos sintomas. Com a piora do quadro, no dia 26 de setembro, ele procurou a emergência do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), a qual é funcionário, e nesse momento já apresentava falta de ar importante, muito cansaço e perda de paladar. Foi direcionado para a emergência e precisou ser internado com 50% do pulmão comprometido.
Após sua entrada no hospital, ele conta que teve momentos marcantes como ter dificuldades para evacuar e que em apenas um dia, três sondas foram colocadas para que ele pudesse urinar: “Então isso é um sofrimento a mais que eu passei, desnecessário”. Dois dias após sua internação, foi encaminhado da enfermaria para a UTI. Na sua permanência na terapia intensiva, sentia muitas dores devido a posição de prona em que se encontrava, além da máscara de alto fluxo (CPAP) que era incômoda. Nesse momento, Roberto tem a vaga memória da equipe de saúde o apoiando: “briga, briga, luta, respira, busca, faz isso”. Mesmo assim, ele precisou ser entubado. Após sair do tubo, Roberto tinha a sensação de ter apenas dormido, para ele, este seria um efeito das medicações, pois ainda estava oscilando em consciência. Posteriormente, ainda ficou cerca de 23 dias com a traqueostomia e ao todo permaneceu hospitalizado 60 dias.
O aspecto emocional foi algo bastante impactado na experiência de adoecimento, principalmente porque Roberto sentiu falta de uma melhor comunicação entre seus familiares e a equipe da UTI, visto que a família dele recebeu “informações inconsistentes” e houve “muita falha na comunicação” gerando sofrimento aos envolvidos. Devido a isso, eles buscaram diferentes meios para obter informações do quadro de saúde dele, porém, ele destaca que a equipe de enfermagem fazia ligações de vídeo em seus próprios celulares para que os pacientes internados pudessem se comunicar com suas famílias, sendo este um fator positivo enquanto ele estava internado.
Muito debilitado, Roberto conta sobre momentos “traumatizantes” que viveu ainda internado, um desses momentos foi sua luta constante para conseguir se sentar: “A primeira vez que me colocaram sentado na cama, numa cadeira e tiraram até uma foto. Eu me lembro que fiquei num desespero tremendo”. E para sua alta acontecer, Roberto precisava andar e ter sustentação nas suas pernas, mas o medo foi uma barreira a ser superada: "Era muito pânico, eu tinha muito medo, que era mesmo por causa da fraqueza, tava totalmente debilitado, né?”. Nesse sentido, Roberto primeiramente negou o tratamento de fisioterapia, mas se deu conta que não poderia ficar com uma angústia no peito, levando-o a aceitar melhor o tempo em que estava no hospital e a sua recuperação.
No que diz respeito às sequelas da covid-19, Roberto relata que apresentou praticamente todas. Ele teve queda de cabelo, em que o cabelo deixou de crescer por cerca de 6 meses, apresentou problema na parte sexual, como ejaculação precoce e falta de ereção, teve incontinência urinária, sentia muitas dores. Outra sequela muito marcante para ele foi o medo e o pânico que ele tinha de sair de casa: “A insegurança, isso é uma coisa, é uma sequela”. Ademais, ele destaca que estava em tratamento de uma depressão prévia, e seu psiquiatra particular o diagnosticou com depressão pós-COVID. Sua memória também foi afetada, relata esquecimento de muitos fatos, datas, até o nome da esposa: “E eu tenho até hoje, por exemplo, para escrever algumas palavras banais, eu tenho dificuldade…”.
Devido às sequelas, os médicos falavam que ele só poderia retornar ao trabalho depois de um ano, porém, Roberto foi persistente e se esforçou no processo de reabilitação. Fez fisioterapia e aprendeu novamente a fazer as necessidades básicas. Ele conta que "acordava às 4 horas da manhã, ficava sozinho no sofá fazendo fisioterapia até 9 horas da manhã”. Então esta determinação contribuiu para que em 6 meses ele retornasse ao trabalho, superando as expectativas médicas. Ressalta-se, que além da determinação de Roberto em fazer a fisioterapia, ele também mudou alguns hábitos da sua vida, pois entrou em uma academia, passou a fazer exercícios físicos e mudou toda a sua alimentação. Após essas mudanças, um ponto positivo foi que houve uma significativa redução dos seus medicamentos. Financeiramente, ele não teve maiores impactos.
Ele ressalta que considera importante o desenvolvimento de uma cartilha sobre as diferentes sequelas, pois essas informações podem tranquilizar muitas pessoas. Além disso, ele relata que faltou uma orientação melhor por parte dos profissionais, mas ele entende que no momento que contraiu a covid-19, as informações ainda eram muito escassas, ainda era tudo “muito novo, muito confuso, não tinha vacina”. Ele conta que recebeu uma orientação mais clara e direcionada, somente em 2022.
Atualmente, Roberto se considera uma outra pessoa, totalmente mudado em praticamente todos os aspectos, relata uma postura mais positiva. Ele optou por ter mais qualidade de vida, de aproveitar o tempo que tem, vivendo intensamente todos os dias, a vida é um sopro. Por fim, Roberto se considera “um vitorioso nas conquistas que eu tô tendo, que eu tô vivendo”, e que após a experiência da COVID, ele passou a agregar mais valor a tudo que tinha.
Rosana
Rosana Karina da Silva Santos
Mulher, preta, 43 anos, solteira, um filho, ensino médio completo, assessora parlamentar. Possui amigdalite, teve febre reumática e possui problemas nas válvulas cardíacas, residente de Salvador\BA. Teve Covid em 2020, no início da pandemia, o início dos sintomas foi constatado em uma visita à sua família numa cidade do recôncavo da Bahia. Tratando-se da zona rural, o local onde reside com seus parentes nessa cidade, os poucos moradores do local apontaram como a fonte transmissora da contaminação para lá naquele período inicial de identificação de primeiros casos, porém só ela teve episódio de internamento no Instituto Couto Maia (ICOM), não precisou de intubação, mas usou outras técnicas como Ventilação Não Invasiva (VNI).
Rosana relata que inicialmente negligenciou as recomendações, e com isso, acabou transmitindo o vírus para a família toda, sendo os primeiros casos da cidade, e sentiu muito medo da morte, ao receber a confirmação do diagnóstico, “No início, eu fui muito negligente, eu não usava máscara, você vê que a minha covid foi logo no início, né? E eu... por não acreditar no início, eu viajei pra lá, infectei meus pais e... assim, só vim descobrir quando cheguei aqui em Salvador, comecei a sentir uma dorzinha nas costas e perdi o paladar, e o olfato. E aí quando eu, como eu tenho um probleminha na válvula, então assim... eu fui pra... fiz o exame e aí testei positivo, foi um baque pra mim, achei que fosse morrer diante de tantas notícias ruim, né?? Todo mundo morrendo, foi naquela época que tava todo mundo desesperado, ninguém tinha conhecimento, né, pra gente... né, minha família toda foi infectada, porque depois que eu descobri que eu estava, todo mundo da minha família, 10 pessoas testaram positivo...”.
Os primeiros sintomas foram bem fortes, causando desconforto, cefaleia, diarreia e mais alguns sintomas, mas não imaginou que fosse covid, “Eu perdi o paladar e o olfato, senti uma dor de cabeça muito forte, dor de garganta e umas pontadas no ouvido, o olho ardia bastante, os olhos ardiam bastante e era uma dor de barriga... era muito forte…”. Com um pedido, da irmã fez o teste PCR em uma Unidade de campanha LACEN, e ao receber a confirmação do diagnóstico, ficou amedrontada “Entrei em pânico, pensei que fosse morrer, comecei a chorar, pensei que não fosse ver mais meu filho. E aí, nessa... foi um pânico assim pra família, a família toda com medo [risos] foi um terror, passamos um terror na nossa vida. Assim, minha família toda…”. Foi orientada a ficar em casa, sentiu dores nas costas, e por ter problemas no coração, sentiu medo de piorar e procurou o ICOM, “Como eu tava com covid, eu fiquei com muito medo, e aí eu fui pro Couto Maia, aí chegou lá a médica quando me examinou, eu tava com suspeita já de trombose, ela olhou meu oxigênio, meu pulmão tava bastante afetado, aí eu fiz uma tomografia, meu pulmão tava um pouco afetado e ela tava suspeitando de trombose, aí foi aí que ela me internou logo... na mesma hora, ela disse: ‘eu vou lhe internar’, aí eu entrei em pânico.”
Em sua experiência de internação narra o terror vivenciado, com dificuldades de relembrar os momentos, relata que o que mais marcou foi a incerteza de sobreviver e as constantes mortes que faziam parte do cotidiano, “E tinha acabado de falecer uma pessoa ali que ela tinha vindo do hospital... Irmã Dulce, porque teve um problema no Hospital Irmã Dulce, foi na época que teve um pessoal que veio do Irmã Dulce que veio um monte de senhores idosos pra... ficarem internados lá e inclusive ela tava comigo lá, então ela... ela falava demais, ela me assustava porque ela ficava falando: ‘ah, você entrou, tá na cama de uma pessoa que faleceu de covid. Você também tá de covid?’ [risos] isso me assustava muito, sabe? Então era um terror...”
Recebeu alta após alguns dias de internação, mas continuou o tratamento em casa, e mesmo com a alta ainda estava muito amedrontada, “Na hora fiquei com medo, eu queria ter 100% de certeza, porque eu ainda continuei fazendo tratamento em casa, o médico passou mais 7 dias de antibiótico. Então assim, quando eles me deram alta, eu... queria saber se realmente eu tava curada, mas me deram mais 15 dias em casa e passaram mais 7 dias de antibiótico, então eu queria saber que eu tava curada, fiquei assustada: ‘aí, será que eu to boa pra voltar pra casa?’ Ainda tive muito medo de morrer…”, além disso, foi estigmatizada pela COVID-19, teve muito medo da represália, foi culpabilizada publicamente e os seus familiares foram ameaçados de morte por parte dos moradores do vilarejo, “Eu me senti muito mal, me senti muito mal, me senti frustrada, meus familiares e vizinhos, e amigos me culparam porque fui pra lá e fui a primeira pessoa né, a levar a doença pra lá segundo eles. Sofri muito, muito, precisei de ajuda psicológica, porque... eu chorava muito, tinha medo de morrer, né? Como é que se diz, todo mundo falando, me sentindo culpada por ter infectado meus pais que são pessoas que tem vários problemas de saúde, mas graças a Deus a única pessoa que foi mais prejudicada fui eu, porque a única pessoa que ficou internada fui eu…”.
Ao falar das repercussões da COVID em sua vida destaca o impacto nas relações familiares, “Até hoje eu tenho uma frustração, me dá vontade muito de chorar quando eu vejo as pessoas... quando eu voltei pra minha terra fui ver meus pais, meus vizinhos lá... todo mundo... é... foi um comentário, vários áudios falando de mim, que eu levei a covid, então isso foi horrível…”. Além de alterações físicas, se sente mais cansada, dores nas costas, e sobretudo psicológicas, principalmente porque os familiares, ainda mantêm um certo afastamento devido a tudo que aconteceu dela e do filho, e ela lida com a culpa, “Como eu que coloquei, eu ainda sofro esse... Ainda tem essa confusão na minha família: ‘ah, não venha não’ e eu to sem ver, não vejo desde o ano passado…”.
Com profunda gratidão, finalizar a entrevista agradecendo todo o atendimento recebido no ICOM, e alerta que a COVID-19 não é uma ‘gripezinha’, como foi divulgado no início da pandemia, e recomenda o uso da Vacina no seu enfrentamento, “Sim, tem que tomar sim, a vacina influencia muito, ajuda muito, Porque só de pensar agora né, que aconteceu isso comigo, eu vi que realmente, se eu não tivesse tomado a vacina... porque é diferente, não é uma gripezinha…”.
Soraia
Soraia Ribeiro da silva
Mulher, branca, 51 anos, solteira, 2 filhos, técnica e autônoma, possui quadro de asma grave, ansiedade, tabagista, residente de Lauro de Freitas\BA. Acredita ter contraído o vírus no hospital que foi internada devido à crise de asma, realizou vários testes e nenhum positivou para COVID-19, apesar do agravamento dos sintomas, “Não me lembro exatamente esse processo de tá com o vírus e nenhum exame dá positivo ai depois da positivo, então assim, eu atribuo que eu possa ter pego a covid no meio desse processo, porque uns dois, três dias depois que eu tava no hospital foi que veio dar positivo o exame. Então eu não sei te precisar em relação a isso né, só médicos mesmo pra dizer, eu fui internada com uma crise de asma com inflamação nos brônquios muito severa aonde eu tava completamente sem ar…”. Teve COVID em 2021, e ficou internada na UTI semi - Intensiva do Instituto Couto Maia (ICOM), não precisou ser entubada, mas usou técnicas como Ventilação Não Invasiva (VNI).
Soraia relata que estava vacinada, e estava passando bem a pandemia até que teve uma crise de asma devido à ansiedade e precisou de atendimento médico com urgência, ela imaginou que fosse a COVID-19, e foi fazer um teste em um laboratório particular, que deu negativo. Mas com a piora dos sintomas, procurou atendimento em uma UPA, “Mas a crise estava muito forte da questão respiratória e eu fui parar numa UPA aqui no município onde eu moro, aqui em Lauro de Freitas. Fui pra UPA em Itinga, chagando lá entrei pela emergência né, tava dando baixa a saturação e já fiquei na emergência lá no aguardo do possível reestabelecimento né, dos medicamentos, dos corticoides, mas aguardando uma transferência para um gripário…”. Ao chegar no gripário precisou ser transferida devido à piora do seu quadro respiratório para o ICOM, e ao chegar lá realizou outro teste que positivou para COVID-19.
Ao chegar no ICOM, ficou em uma UTI, “Só fiquei com o oxigênio e comecei a receber todos os medicamentos, toda a assistência para reverter essa questão minha respiratória…Eu lembro que um dos exames que me deixou de uma certa forma um pouco mais tranquila, foi feito em mim no Couto Maia, foi uma ressonância e aí foi detectado que eu tava com 25% de comprometimento nos meus pulmões, mas por conta de uma inflamação né, nos brônquios, por conta dessa crise de asma…”. Complementa que apesar do seu quadro de asma, o que a deixou apreensiva, se não fosse essa crise, ela passaria assintomática pela COVID-19, porque não desenvolveu nenhum sintoma característico, foi para semi-UTI, e depois a enfermaria, até receber alta.
Relata com alegria o apoio recebido pelos familiares, e principalmente das cartas nesse período de internamento, “Os processos lá no Couto Maia, são as carta né que chegam, a coisa mais maravilhosa, ainda tenho elas guardadas aqui né, o pessoal mandava entrava em contato e eles depois iam me entregar essas cartinhas, minha nossa senhora isso é maravilhoso…”. Após alguns dias internada recebeu alta, “Passei cerca de sete dias, sete, oito dias internada onde eu tive alta e vim cumprir aí no caso a quarentena da covid em casa…”.
Soraia felizmente afirma não ter sequelas da COVID-19, “Então, graças a deus eu não tenho nada, eu vejo algumas pessoas que já tiveram, que eu tenho contato, que ficaram com algumas sequelas, mas eu posso afirmar que eu não fiquei com sequela nenhuma, não perdi nenhum momento paladar, nada que representasse um pós-covid com algum agravante…”. Com uma profunda gratidão agradece o atendimento recebido pelos profissionais do ICOM, diz que com certeza isso teve impacto nesse quadro positivo, “Eu ainda citei por várias vezes e ainda cito hoje, ali não tinham apenas profissionais da área de saúde, pra mim ali tinham anjos, porque todos do pessoal da limpeza, da higienização até os médicos, passando pelos técnicos, enfermeiros enfim. Foram todos assim de uma atenção maravilhosa, nisso, nossa senhora, não tem preço, eu sou grata e vou ser grata pro resto da minha vida e isso dá um conforto isso dá, uma tranquilidade, isso melhora o quadro de qualquer paciente, nenhum momento eu tava desassistida…”. Essa excelente recuperação alterou a sua perspectiva e hoje busca a melhoria dos seus hábitos, “Hoje procuro me cuidar né, justamente o auxílio dos cuidados desse lado emocional hoje eu faço terapia, foi um pouco depois desse primeiro internamento, um pouco depois eu comecei a terapia né e sigo com ela até hoje. Então é um cuidado como o todo né, mente e corpo, porque a mente da gente é algo muito poderoso, tanto pro positivo tanto pro negativo, isso eu tenho toda a consciência disso, de sair, de me recuperar graças a deus, enquanto outras pessoas não tiveram a mesma sorte né, essa chance, eu procuro me cuidar em todos os sentidos. Isso me trouxe ainda mais esse desejo e essa busca…”
Vera Lúcia
Vera Lúcia, 67 anos, aposentada, moradora do Rio de Janeiro, começa nos contando que em julho de 2021 teve uma tosse muito forte, mas tinha deixado claro aos seus familiares que não queria ser levada para a emergência. Devido a intensidade da tosse, os filhos a levaram para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA): "Aí os filhos queriam levar para o hospital. E eu não queria ir. Aí fiquei tossindo, tossindo. Aí o outro ligou para o outro filho. Veio me buscar e me carregaram pro UPA”. Lá, não conseguiram fazer uma radiografia, e também não fizeram o teste para covid-19, dessa forma, Vera voltou para casa com a prescrição de um xarope.
Um dia depois, Vera tinha consulta de rotina marcada no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), e por estar ainda estar tossindo de forma exacerbada foi levada para a emergência. Ela realizou uma nova radiografia e fez o teste de swab nasal, e ao positivar para covid-19 não entendeu o porquê: “Eu não sei o porquê, eu não fui pra canto nenhum, não me misturei com ninguém, entendeu?”. Vera ainda conta que não ficava em lugares fechados, e que ao ir dormir abria as janelas para ventilar a casa. Entretanto, acredita que mesmo ela não saindo possa ter contraído covid-19 pelo filho mais novo, pois ele era o único na casa que saía durante a pandemia. Após os exames, recebeu a notícia de que ficaria internada. Ela conta que nesse momento ficou apavorada, pois saiu de casa para uma consulta de rotina e acabou sendo internada.
Logo após sair da emergência, ela foi encaminhada para o CTI fazendo uso de uma máscara de oxigênio. Durante todo o processo da internação estava consciente do que acontecia à sua volta. A partir do momento que saiu da emergência, Vera perdeu o contato com a família. Já na UTI, ela conseguia comer por conta própria, mas para urinar ela usava uma comadre, por conta da dificuldade de se locomover. Ela ficou por 8 dias na UTI, e conta que se sentiu cuidada tanto pelos profissionais da saúde quanto pelos profissionais da limpeza. Entretanto, ela conta que não havia uma comunicação entre ela e os profissionais quanto ao seu tratamento, aos medicamentos que tomava e também não teve comunicação com seus familiares enquanto esteve na UTI. Nesse sentido, Vera diz que não se sentiu autônoma em seu tratamento, diz que é uma pessoa reservada e esperava os procedimentos serem feitos, confiando na equipe. Seus familiares ficaram desesperados por não conseguirem notícias, a ponto de um dos filhos ir ao hospital, mesmo sabendo que não poderia vê-la, para ter notícias da mãe. Após a UTI, ela foi para a enfermaria, onde ela tirou a máscara de oxigênio, pois conseguia respirar sozinha, tomar banho sozinha e ir ao banheiro sozinha. Ao todo permaneceu internada, mais ou menos 10 dias.
Para Vera, foi difícil lidar com o isolamento ao longo da internação: “Se eu morrer, eu vou morrer e ninguém sabe da minha vida, ninguém sabe como é que eu estou, como que foi”. Ela diz que se sentiu abandonada, pois é apegada aos filhos e não poder dar notícias a eles e não receber notícias deles a deixou preocupada e com saudades. Depois de alguns dias, quando estava na enfermaria, ela conseguiu ver os familiares e amigas por vídeochamada e diz que isso a acalmou, pois conseguiu saber como estavam e eles também a viram. Para lidar com toda a carga emocional e do próprio adoecimento Vera conta que tem “força para tudo”. Ela diz que outro motivo que a deixou abalada durante a internação foi o fato de ter perdido uma irmã por conta da covid-19.
O fato de Vera presenciar os óbitos de outros pacientes a deixava preocupada, se questionando se poderia acontecer com ela devido a imprevisibilidade da covid-19. Em contrapartida, Vera se viu animada por ser bem tratada pelos profissionais do HUCFF. E mesmo com as preocupações durante sua internação, ela diz que não sentiu medo da morte, mas sentiu medo de ser entubada, porque segundo ela “se dissessem que iam me entubar eu ia me apavorar, aí eu sei que eu ia morrer antes de me entubar”.
Com base na sua experiência, Vera destaca a importância de uma boa comunicação entre equipe e a família do paciente: “Tenho certeza que a família vem na porta perguntar pelo paciente, como a minha vinha, entendeu? Então, chegar e dar atenção, conversar”. Ela também ressalta a importância de cuidar da própria saúde e ter as vacinas em dia para que todos possam viver saudáveis.
Após sua alta, Vera não fez nenhum acompanhamento médico ou fisioterápico e continuou fazendo os afazeres domésticos. Relata que quando cozinha precisa redobrar a atenção para não queimar, pois até hoje tem sequelas como a perda parcial do olfato e do paladar. Ela conta que outra sequela são as quedas frequentes por conta da perda de força muscular, e que isso a impede de ir para determinados lugares, pois sente-se insegura e com medo de cair. Para ela, voltar viva para casa é uma nova chance de voltar à vida e se sente esperançosa novamente.
Viviane
Viviane, 38 anos, moradora do Rio de Janeiro, possui comorbidades prévias ao seu adoecimento por covid-19 que ocorreu em maio de 2020. Diabética e hipertensa, vivia o medo de ser contaminada, mas sua família como um todo não conseguia cumprir o isolamento, uma vez que seu marido precisava trabalhar fora de casa. Seus primeiros sintomas aconteceram no final de abril: febre, tosse e dores no corpo. O esposo não queria deixar de jeito nenhum Viviane ir para o médico com medo que ela não voltasse mais, pois nesse momento, existiam muitas notícias divulgando as informações de óbitos dos pacientes internados por covid-19. Depois de 15 dias, Viviane piora seus sintomas e é levada pela primeira vez ao atendimento de emergência, com falta de ar significativa e piora do quadro febril. Apesar do oxímetro marcar 98%, Viviane relata que se sentia mal e mesmo assim retornou para casa.
Conforme os sintomas iam piorando, mais medo Viviane e seus familiares sentiam de uma possível internação. Entre os dias 10 e 15 de maio, Viviane relata que seus sintomas pioram consideravelmente e ainda surgiram dores de cabeça fortes e episódios de desmaio: “Eu não estava aguentando mais mesmo, eu falei ‘se vocês não me levarem, eu vou acabar morrendo dentro de casa’”. Nesse momento ela é levada para o Posto de Assistência Médica (PAM) localizado em Del Castilho, zona norte do Rio de Janeiro. Ela é internada com oxigenação de 75% mas conforme a gravidade do seu caso, precisava de uma transferência urgente para um hospital com terapia intensiva, pois onde ela estava não tinha o suporte necessário. Depois de 10 dias no PAM, a equipe conseguiu uma vaga no CTI do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) pelo sistema de regulação – SISREG.
Ao chegar no HUCFF recebeu todo o suporte necessário. No CTI, Viviane continua usando oxigênio de alto fluxo e também fica na posição de prona. Em um momento, a equipe chegou a entrar em contato com a família sobre uma possível intubação, que não ocorreu. Estar acordada em um ambiente de CTI não foi fácil para ela, já que presenciou diversos óbitos: “Olha, vou te falar, pra mim foi muito difícil porque eu vi morte acontecendo na minha frente”, para lidar com a situação ela solicitou que a equipe fechasse a cortina do box em que ela estava: “Eu não aguentava ficar vendo aquilo ali, acho que me enfraquecia mais”. Viviane permanece 18 dias no CTI mais 2 na enfermaria, totalizando 20 dias no HUCFF.
A distância da família foi um fator que marcou muito esse período no CTI: “Foi muito difícil pra mim, ficar longe da minha família, dos meus filhos”. A saudade e fragilidade de sua saúde eram tão grandes que Viviane não estava mais aguentando. Diante disso a equipe de enfermagem providenciou uma ligação de vídeo com a família, o que a deu força e conforto para seguir o tratamento e se recuperar: “Depois que eu vi a minha família, porque quando você não vê a sua família, você não tem apoio de ninguém, você acha que você tá sozinha e eu tô. No momento ali eles me levantavam, eles me davam palavras de conforto, sabe?”.
O impacto emocional e físico da doença foi grande e Viviane relata que chegou a pensar em desistir: “Eu fiquei muito, muito, muito abalada mesmo, tanto é que teve uma parte que eu queria até me entregar”, desejando em alguns momentos a morte: “Senhor pode me levar, mas eu não aguento mais”. O aspecto espiritual foi uma fonte de sustentação ao longo da sua experiência de adoecimento, junto com o suporte que recebeu de sua família nas chamadas de vídeos mediada pela equipe: “Então o que eu estava precisando era de apoio da minha família, eu precisava deles e ver que eu tinha força pra lutar contra aquela doença, porque é uma doença que eu não desejo pra ninguém”. Além disso, outro ponto crucial de sua recuperação foi a ótima relação com a equipe médica que, mesmo diante de um cenário ruim, a incentivava a continuar lutando, apesar de ela relatar que alguns profissionais tinham medo de se contaminar ao se aproximarem dela.
Seus outros familiares também se contaminaram com a covid-19, mas apenas ela evoluiu com tamanha gravidade. Gravidade essa que traumatizou os membros de sua família, de forma que sua filha mais velha ainda lida com certo medo em relação a qualquer questão de saúde da mãe.
Após a alta, o trauma não foi a única coisa que ficou. Viviane relata ainda ter dificuldade de locomoção, tosse, fadiga, paladar alterado e problemas de memória. Além do grande impacto financeiro que a família enfrentou. Viviane perdeu as faxinas que fazia, ficou dependendo do programa de Auxílio Emergencial oferecido pelo governo e as sequelas da covid-19 a impediram de se reposicionar no mercado de trabalho. Nesse sentido, mais uma vez, o apoio familiar foi imprescindível, tanto em termos financeiros, quanto no cotidiano da recuperação, Viviane conta que sua filha mais velha a ajudou nesse processo. Apenas 3 meses após sua alta que iniciou o acompanhamento no ambulatório pós-covid do HUCFF e de hipertensão no ProHArt, também no hospital. Viviane ainda tenta se recuperar de tudo que foi vivido: “Foram momentos muito ruins mesmo, que eu nunca tinha vivido na minha vida” e, após tamanha dificuldade enfrentada, ela tenta organizar sua saúde e se cuidar mais.