Desenvolvendo o Autocuidado

Hoje em dia, sabemos que para várias doenças crônicas é necessário incorporar mudanças não farmacológicas ou de “estilo de vida” no tratamento dos pacientes, e com a hanseníase não é diferente. A atenção voltada para o tratamento farmacológico, apesar de promover a cura do bacilo, prevenindo complicações da doença, especialmente quando iniciado de forma precoce, não basta para gerar menos sequelas aos pacientes. É nesse momento que entra o autocuidado, uma série de medidas não farmacológicas voltadas para a proteção de áreas com perda de sensibilidade, para a prevenção de incapacidades a partir de exercícios e para uma maior inserção social do paciente.

Nesse sentido, percebe-se que para além do acesso aos serviços de saúde para tratamento farmacológico e reabilitação, o desenvolvimento do autocuidado é também essencial para os pacientes que têm hanseníase. Sendo assim, a compreensão dos pacientes acerca do assunto deve ser a primeira medida a ser tomada quando pensamos na adesão a esse tratamento. Os profissionais destacam, então, a importância do diálogo acessível e claro para a construção de uma base sólida de cuidados na rotina, permitindo que o paciente se aproprie daquele conteúdo. A dermatologista Maria Leide relembra o momento em que entendeu essa necessidade:

"Então a atendente de enfermagem falou pra mim "Doutora, eu não consigo aprender o nome desses músculos, são muitos músculos, e a Tadiana acha que eu tenho que aprender para ensinar para os pacientes, mas eu não consigo. Se eu não consigo, você acha que o paciente vai aprender?" E aí eu também vi que lidar com o auto cuidado era muito difícil e você ensinar isso pro paciente era mais difícil ainda, porque se você não tivesse prática de um método dialógico, de escuta, ou de tentar falar, se comunicar com o paciente da melhor forma, você não conseguiria nenhum sucesso com isso."

Maria Leide relata também que ensinar os pacientes a se cuidarem é um desafio, já que envolve mudanças de comportamento, que podem gerar uma sensação de incapacidade funcional das áreas afetadas aos pacientes, além de necessitar de uma compreensão mais ampla das possíveis complicações causadas pela não adesão a esse cuidado:

“Uma senhora chegou com as mãos feridas e eu comecei a falar com ela que ela não podia, que ela não tinha sensibilidade nas mãos, então ela não podia fazer o que ela estava fazendo, serviço de casa, tinha que ser tudo revisto, botar cabo de pau na panela, usar luva, não podia pegar em nada quente... Ela falou assim: "Então a senhora manda cortar minha mão". Ela falou pra mim assim, "eu queria que a senhora mandasse cortar minha mão". Eu fiquei olhando pra ela assim e ela repetiu: "doutora, manda cortar minha mão porque essas mãos só servem pra me trazer ferida.” (...) Então, eu hoje tenho essa conduta, eu tenho muita atenção em relação à proteção e ao autocuidado, isso é uma coisa que eu sempre ensino meus alunos, porque eu acho muito difícil mesmo você proteger pés e mãos dormentes, é um condicionamento muito difícil.

 

Apesar disso, enfrentar essas dificuldades do dia a dia é tão importante quanto o tratamento farmacológico, já que pequenas mudanças de hábito, como a proteção e a hidratação da pele, aliadas a exercícios simples, são capazes de prevenir novas sequelas. 

A assistente social Elen relembra que os cuidados devem estar de acordo com a realidade do doente para que possam ser efetivos, uma vez que a adesão é o ponto chave nessa prática. Adicionando que, os grupos de autocuidado que ela mesma ajudou a instituir no Hospital Universitário da UFRJ, ajudam os pacientes a se abrirem sobre sua adesão aos hábitos de autocuidado e sobre como eles os praticam, permitindo que os profissionais trabalhem em cima disso, além de promover maior interação social entre o paciente e outras pessoas que passam pelo mesmo:

"Na experiência do Hospital Universitário, nós percebemos que essa questão do cuidado favoreceu que o paciente tivesse mais abertura pra equipe de saúde, pra estar mais próximo da equipe de saúde. Começaram a falar muito mais, se abrirem, como eles cuidam de si próprios no cotidiano, na casa deles, e nem sempre esse cuidado ele segue as recomendações que as equipes de saúde, principalmente as recomendações médicas. Às vezes um paciente cria cuidados diante da realidade da vida dele, da cultura dele, e aí eles começam a ter coragem de falar do que eles entendem como cuidado de si mesmo. E aí com a atividade do grupo, que acontece uma vez por mês, nós trabalhamos uma série de temáticas e trabalhamos e discutimos fundamentalmente a importância do autocuidado."

Sendo assim, os grupos de autocuidado normalmente são coordenados por assistentes sociais, reunindo pacientes com dificuldades em comum e servindo como ambiente de debate e desabafo. A parceria entre os doentes e a equipe multidisciplinar - médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais - ajuda a alimentar os grupos e proporciona uma melhoria na aprendizagem do autocuidado. Elen relata um pouco de como é feita a coordenação dos grupos e de como é importante o engajamento de diversos profissionais nessa dinâmica:

"Na verdade, qualquer profissional de qualquer área pode ter como atribuição coordenar um grupo, só que tradicionalmente a profissão dos assistentes sociais, a gente trabalha, porque é histórico. (...) E aí em várias equipes, já existem assistentes sociais, a maioria é coordenado por assistente social, mas também por psicólogo e qualquer profissional. Enfermeiros, até porque a profissão do enfermeiro ela vem com essa discussão do cuidado desde seus primórdios, então qualquer profissional ele está habilitado. E, preferencialmente, que esse trabalho seja desenvolvido por uma equipe multiprofissional. Embora eu coordene esse grupo, no sentido de organizar as reuniões de grupo, esse é um trabalho de equipe, porque ele não existiria esse grupo se não houvesse uma equipe por trás desse trabalho. Nós dependemos da parceria com médicos, nós dependemos da parceria com o enfermeiro, com o fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogo. Então todos os colegas que trabalham comigo, eles, de alguma forma, interagem com esse trabalho, eles ajudam a alimentar esse grupo, orientam o paciente a participar, incentivam a participar, e também trabalham a questão do cuidado. Então eu faço o fechamento ao coordenar o trabalho, mas na verdade é um trabalho de equipe."

 

Essa tentativa em fazer o paciente praticar o autocuidado pode, no entanto, ser frustrante para alguns profissionais quando não é dada a devida importância a esse tratamento. Isso pode ocorrer por uma negação da doença, até mesmo pela falta de perspectiva em como ela pode evoluir a longo prazo caso esses cuidados diários não sejam tomados, ou pela falta de crença na melhora com a adoção desse tratamento. A fisioterapeuta Mabel nos conta de suas dificuldades com esse assunto:

"Tem pessoas que, às vezes, negam a doença e não se cuidam. Por exemplo, nós precisamos que o paciente tenha um autocuidado, ou seja, que ele consiga se manipular, que ele consiga se observar e a partir daí, já que ele não tem uma sensibilidade de boa qualidade nas mãos e pés, ele tem que se inspecionar, tem que se avaliar muito bem, e isso é difícil às vezes. Por mais que você não consegue entender como que um indivíduo não faz aquela coisa que a gente repete desde o início: não hidrata a pele, não lubrifica, não faz os exercícios que a gente pede pra fazer em casa, não toma o remédio da forma correta. Por que essa visão, às vezes a gente fica pensando, autodestrutiva? Por que é que ele tá querendo se destruir? Então é uma dificuldade justamente impedir, quer dizer, tentar impedir não, fazer com que ele entenda que o autocuidado é uma coisa básica, assim como você tomar banho, fazer sua higiene pessoal, o autocuidado é um passo a passo do dia a dia. É difícil pra ele, às vezes, entender isso. É uma barreira que eu tenho com relação a isso."

 

Por fim, percebe-se que manter uma relação de proximidade e conversa com o paciente, tal qual vemos nos grupos de autocuidado, é fundamental para que haja compreensão por parte do doente e, assim, uma maior adesão ao tratamento e possibilidade de adaptação às condições daquele paciente. Mesmo assim, destaca-se a dificuldade em abordar esse tema, e que, mesmo com o apoio da equipe multiprofissional, é necessário que o autocuidado seja constantemente trabalhado nas consultas, para conscientizar o paciente acerca de seu próprio papel na melhora, que não acaba com a tomada das medicações. Rosângela, fisioterapeuta que também participa de grupos de autocuidado no Hospital Santa Marcelina, em Rondônia, relata que:

"A gente orienta do cuidado, mas eles não conseguem, parece, que entender, por questões sociais, às vezes querem continuar encostados, como eles dizem, então eles não querem praticar, ter a prática do autocuidado. Então, por mais que a gente oriente, que a gente trabalhe, que a gente faça junto, mas muitas vezes eles em casa não dão continuidade a esse tratamento. Então isso, às vezes, quando o paciente não se conscientiza, ele traz dificuldade para o tratamento. A equipe toda está envolvida, hoje nós temos uma equipe que tem fisio, tem TO, tem psicólogo, tem serviço social, tem médico, tem enfermeiro, tem cirurgião. Não tínhamos na época, hoje temos, mas ainda assim, ele não entende, qual é o papel dele enquanto paciente. Embora a equipe esteja orientando a todo momento, mas ele mesmo não consegue ter este entendimento, entendeu? E, assim, eu sempre tive, eu não tive nenhum problema pra tratar, nem pra conviver com eles, por que o paciente com hanseníase ele precisa sentir que você é igual a ele, que você entende o que ele está passando, que ele trabalha, que ele tem uma família, as dificuldades que ele tem, então você precisa de ser próxima dele pra você conseguir trabalhar com ele com reabilitação. E, às vezes, alguns profissionais têm essa dificuldade, tem medo de se contaminar, tem medo da doença, tem medo de ter hanseníase, e isso faz um afastamento entre você, entre o paciente e o terapeuta, entre o paciente e o médico. E, graças a Deus, assim, eu consigo me relacionar bem com eles, e eles, cobro, coloco a responsabilidade em cima deles que é deles, pra eles entenderem, mas mesmo assim, alguns, eles têm essa dificuldade de quererem se tratar."