Experiências Marcantes no Cuidado

O cuidado da hanseníase se estabelece de forma diferente que em outras doenças por vários motivos: a complexidade de informações sobre cura e contágio, que deve ser transmitida para o paciente mesmo sendo difícil até para os profissionais entenderem, o teor emocional que as fortes experiências de preconceito podem gerar e que precisam ser abordadas constantemente, além de um tratamento que envolve não só medicamentos, como o autocuidado também. Nesse sentido, a experiência de cuidado é desafiadora, sobretudo para os profissionais menos experientes, e acaba gerando momentos inesquecíveis, tanto de situações positivas vividas pelos cuidadores quando conseguem acessar e cuidar do doente por completo, quanto negativas, relacionadas a dificuldades de realizar essa tarefa.

Já a partir do diagnóstico, os profissionais se deparam com o desafio de explicar o que é a hanseníase, já que há muito estigma e falta de informação relacionados à doença. Por isso, as experiências na comunicação sobre o diagnóstico de hanseníase são marcantes para muitos profissionais. A técnica de enfermagem Antônia nos diz que o momento do diagnóstico demanda sensibilidade dos profissionais:

"Eu lembro de um caso que o paciente soube que tava com hanseníase e ele já tava sequelado, e quando ele obteve o diagnóstico mesmo que era hanseníase, que ele tinha que se internar. (...) E aí ele recebeu esse diagnóstico, esse homem, e ele ficou desesperado e ele tacou fogo no próprio corpo, e ele teve 60, 70 por cento do corpo queimado porque ele não aceitava. Então assim, foi bem marcante esse caso, nunca esqueci e quase que ele perde a vida. Então naquele tempo a gente não tinha acompanhamento dos psicólogos, então a gente dava uma de psicólogo, a gente era cuidadora, era tudo. Mas foi um caso bem marcante." 

 

O cuidado em abordar o tema do diagnóstico vai além da consulta, pois a maioria dos pacientes não deseja que sua doença seja escancarada para o mundo, mantendo o tratamento e os problemas trazidos pela hanseníase em particular. Maria Leide enfrentou essa dificuldade ao tentar buscar os pacientes que não retornaram para a consulta:

"Uma outra história também, e que tem a ver com as minhas dificuldades, com esse meu sofrimento no início, desse início meu em Caxias, foi que eu achei por bem recuperar todos os abandonos de tratamento, e eu levei alunos, e fizemos levantamentos... A secretaria de saúde do Rio de Janeiro tinha uma cartinha amarela, um aerograma, que tinha assim: "departamento de doenças transmissíveis", que aí não cobrava, e você mandava uma cartinha. Eu lembro que eu consegui, não sei como, eu copiava, não sei como era aquele método, se já tinha xerox, não sei como era. Só sei que tinha uma cartinha padrão pras pessoas: "você não concluiu tratamento, comparecer tal dia". E aí eu recebi uma paciente que ela falou assim "doutora...." Primeiro que essa paciente, eu chamei esses pacientes de abandono pra uma reunião no sábado, e essa paciente apareceu na reunião do sábado. Aí eu falei com ela "mas a senhora tem que aparecer na consulta também" e ela falou "doutora, eu não vou na consulta, e da próxima vez que a senhora mandar uma carta dessa pra minha casa eu vou denunciar a senhora, porque a senhora não pode mandar uma carta com esse nome de departamento de doenças transmissíveis e o correio... a rua inteira ficou sabendo que tinha uma pessoa com doença transmissível". Eu havia mandado mais de 100 cartas, foi uma... Eu achava que eu estava fazendo o melhor."

 

A precaução em relação a não revelar publicamente a doença vem do preconceito e do medo da reação das pessoas ao redor. Apesar do ato de expor que tem hanseníase não necessariamente gerar uma reação ruim em todos, frequentemente os relatos são de discriminação. Sônia contauma experiência marcante desse tipo:

"Teve um caso que me marcou muito de uma criança de 11 anos, que a mãe trabalhava numa escola, na mesma escola que a criança estudava. Ela, na ingenuidade, contou pra todo mundo que a filha estava fazendo tratamento de hanseníase. A criança teve um problema psicológico severo, depressão com 11 anos, e teve uma doença chamada Alopécia Areata que o cabelo dela caiu todinho da cabeça, junto com a hanseníase por esse problema. Porque o preconceito ainda é muito grande. Então, eu sempre oriento os pacientes a ficarem mais reservados, mas para a própria proteção do paciente, porque acontecem muitos casos assim."

 

A necessidade de uma maior atenção para esses pacientes se expressa também em relação ao autocuidado, isto é, à proteção que a pessoa acometida por hanseníase tem que pensar cada vez que realiza uma tarefa, para não se machucar ou piorar suas sequelas. O autocuidado, no entanto, que pode ser difícil de se compreender ou aceitar, como Maria Leide relata:

"Eu me lembro de uma história, de algumas histórias que me marcaram profundamente com relação ao cuidado. Uma senhora chegou com as mãos feridas e eu comecei a falar com ela que ela não podia, que ela não tinha sensibilidade nas mãos, então ela não podia fazer o que ela estava fazendo, serviço de casa, tinha que ser tudo revisto, botar cabo de pau na panela, usar luva, não podia pegar em nada quente... Ela falou assim: "Então a senhora manda cortar minha mão". Ela falou pra mim assim, "eu queria que a senhora mandasse cortar minha mão". Eu fiquei olhando pra ela assim e ela repetiu: "doutora, manda cortar minha mão porque essas mãos só servem pra me trazer ferida". Eu não sabia o que dizer pra aquela mulher, foi uma coisa, assim, eu nunca esqueci daquela mulher insistindo, e depois ela voltou na consulta e voltou com essa história de novo "manda cortar minha mão, manda cortar minha mão".”

 

Além de todo o cuidado extra necessário, há uma carga emocional que histórias tão sofridas trazem, sendo necessário um olhar atento e cauteloso, para não perder de vista a melhor forma de ajudar o paciente, seja com diagnóstico ou com tratamento. Maria do Carmo nos conta: 

"Eu atendi uma criança lá no hospital, com doze anos, treze anos, esse menino foi internado pela pediatria porque tinha um distúrbio psiquiátrico e estava com impregnação pelas medicações que ele usava há muito tempo. E esse menino, foi chamado a gente porque ele tinha algumas lesões de pele. E ele tinha... Foi internado, também, com suspeita de automutilação. Ele já não tinha mais os dois dedos da mão e não tinha um dedo do pé e, no fundo, essa estória de automutilação não existia. Ele tinha hanseníase. Ele não sentia esses dedos, então nas horas de tensão maior pela situação psiquiátrica dele, ele comeu os dedos. Então assim, você poder acolher esse menino, dar estímulo a ele... Eu me lembro que depois de uns seis meses de tratamento chegou o Carnaval, e ele me chega com o cabelo todo pintado, todo... sabe, você vê uma pessoa desabrochando. Pra mim isso foi muito significativo, você poder fazer a diferença nessa situação."

 

Nesse sentido, muitas vezes  a relação que os profissionais criam com os pacientes através do cuidado torna-se muito positiva, sendo marcante tanto para profissionais, quanto para pacientes. Isso acontece pela percepção da gratidão pelos ensinamentos trocados entre ambas as partes, pela confiança depositada durante o acompanhamento, que costuma ser longo, e pelo cuidado e carinho prestados pelos profissionais. Silvana nos conta de um paciente com quem se mantém próxima até hoje:

"No primeiro seminário de cirurgia em que eu participei lá no HU, eu fui para o centro cirúrgico assistir às cirurgias e tinha um paciente, que eu tinha feito a captação desse paciente no posto de saúde e tinha levado ele para o hospital para ser operado lá, e esse paciente se apegou muito a mim, e eu nem tinha noção que ele tinha esse apego todo por mim. E quando eu entrei no centro cirúrgico, e que me falaram que o paciente estava apavorado com a cirurgia, eu fui até o pré-operatório, e cheguei lá e conversei com ele. Ele estava chorando, chorando muito, e falando para mim: ‘eu não vou operar, eu não vou operar, eu não vou operar’. E eu conversei com ele e disse: ‘não se preocupa, eu vou ficar a cirurgia toda de mão dada com você’. E eu entrei para sala de cirurgia, e eu fiquei segurando a mão do paciente durante a cirurgia inteira. E naquele momento, eu percebi, foi ali que eu percebi, a importância que a gente tinha na vida do paciente, chegou até ser emocionante para mim ver todo aquele apego. E esse paciente, depois que ele teve alta, ele falava comigo todos os dias, ele me ligava para me dizer como estava o dia a dia dele, a evolução do caso dele, e até hoje. E foi naquele momento que eu tive a noção da importância de um profissional tratar desses pacientes, de acolher esses pacientes, como naquele momento eu pude acolher, naquele momento que ele estava apavorado e eu pude estar do lado dele. Então esse momento foi marcante, foi um momento que me despertou o quanto seria gratificante investir cada vez mais nestas condutas, neste tratamento, neste acolhimento, em todo o processo de tratamento desses pacientes.

 

Maria do Carmo completa, trazendo a noção de que o acolhimento é importante para que o paciente volte ao consultório:

"Outro paciente que a gente teve agora, que é um paciente que ele era alcoólatra, de rua, era um paciente muito complicado que já faleceu, inclusive, mas ele dizia, eu gosto de vim aqui porque aqui foi o primeiro lugar que os médicos me olharam como gente. Então assim, é muito, muito especial isso, eu me emociono toda vez que eu me lembro dessas coisas." 

Por fim, para adicionar às satisfações experimentadas nessa prática, são marcantes para os profissionais as histórias de pacientes que, com o impacto que o cuidado traz à vida deles, e mesmo com todos os problemas e preconceitos trazidos pela hanseníase, são capazes de ter esperança no seu futuro e sonhar, como nos conta Mabel:

"(...) um paciente que ele contraiu hanseníase com 13 anos, 13 anos de idade, ele morava no interior do Brasil, em Goiânia, e ele tem reabsorção dos 10 dedos. E ele chega pra mim perguntando, no momento da prova do Enem, que que eu vou fazer, que que eu não vou fazer. E eu disse assim, "qual seu sonho? O que você quer ser como profissional? O que você sonha como profissional?" "Ah, eu queria ser médico veterinário ou médico, ou advogado". Bom, como você vai falar pro paciente que ele tem uma vida limitada, que aquela limitação de ter metade dos dedos, dos dez dedos, vai limitá-lo para uma ação. Como é que ele vai ser um médico se ele vai ter um momento de cirurgia, um momento que ele vai ter uma manipulação. Como é que você vai chegar pra ele e falar que ele vai ter essa limitação pra vida dele, vai ter que, de repente, procurar outra profissão porque ele tem um limite que, na cabeça dele de menino, de rapaz, ele não reparou que aquela deficiência levaria a uma incapacidade de escolha profissional. E eu tive que... não, vamos tentar, você vai ter que passar, explicar pra ele que o que iria acontecer, e ele escolheu Direito. Aí quando chegou esse ano agora, ele foi, ele passou para UFRJ, para Direito, está cursando Direito. Encontrei com ele hoje no campus lá. Então, quer dizer, ele conseguiu contornar um pouco o caminho dele e está feliz, dentro da possibilidade, das limitações de um grau 2 de incapacidade."