Médicos (6)

 

Maria Katia é médica dermatologista, especialista em hanseníase desde 1992 e professora da UFRJ. Em suas palavras, cuidar de pessoas com hanseníase "é uma experiência intensa e mobilizadora". Durante o trabalho que desenvolve em seu ambulatório ou em projetos de colaboração com o Ministério da Saúde, ela entra em contato com histórias de vida carregadas, em que o diagnóstico de hanseníase muitas vezes significa uma mudança de vida para seus pacientes. Do lugar de uma profissional de saúde que vivencia a prática clínica, nos diz que "nenhum de nós passa por essas experiências sem ser afetado por elas".

Maria Kátia revela que, por diversas vezes, chega em casa cansada após muitos atendimentos. Apesar disso, nos diz que essas experiências agregam muito afeto, gratidão e vínculo: "cada paciente tem uma história para contar, e com cada uma nós aprendemos". Esse diálogo entre profissionais e pacientes, apesar de acontecer em poucos minutos num ambulatório cheio, é uma "troca muito rica", que leva a criação de vínculos definitivos. Afinal, "toda relação implica em enriquecimento pessoal."

Para Maria Kátia, a hanseníase é um ensinamento muito grande para todos os profissionais de saúde, formados ou em formação. Pensando em seus alunos de graduação, a professora diz que ensinar a medicina através da hanseníase é uma oportunidade de "entender uma doença em todos os seus aspectos". A hanseníase permite ensinar como é o cuidado de uma doença crônica, em que existe a necessidade de tomar remédio todos os dias por muito tempo, em alguns casos. Permite, também, entender epidemiologia e saúde coletiva, pois a hanseníase permanece no Brasil um problema de saúde pública, com áreas endêmicas bem delimitadas. Para além disso, através da vivência no ambulatório, os alunos podem compreender a complexidade de uma doença transmissível que pode afetar o indivíduo em seu trabalho, em suas relações familiares e na comunidade em que vive. Dessa forma, com a hanseníase, o aluno pode "aprender o biopsicossocial e a ver com outros olhos o modelo da atenção integral à saúde".

Ao falar sobre a cura na hanseníase, um tema muito questionado pelos pacientes em seus atendimentos, ela reconhece que os próprios profissionais de saúde precisam reconsiderar o conceito de cura em hanseníase, pois a seu ver, ele ultrapassa o conceito bacteriológico. Argumenta que, se pensarmos em um cuidado mais amplo, uma pessoa que continua com a necessidade de tomar medicamentos, fazer cirurgias e frequentar os serviços de saúde, mesmo após o fim da poliquimioterapia, não pode ser considerada "curada". "Nós temos que aprender a ouvir, a entender qual a experiência de adoecimento dessas pessoas'', para além de repetir discursos e exigir dos pacientes uma compreensão que está em conflito com sua experiência de adoecimento.

“Não me toque, doutora, eu tenho aquela doença. A doença da bíblia.” Maria Kátia lida diretamente com o estigma na relação com o paciente, além de defrontar-se com a preocupação com a transmissão. Quando fala especificamente sobre a transmissão, ela considera que o contágio da hanseníase “é um mito, e está posto na sociedade”, no sentido da doença ser contagiosa mesmo após o tratamento: é difícil para o paciente acreditar nas palavras do médico quando ele explica que a hanseníase deixa de ser contagiosa com o tratamento. Ela dá o exemplo de pacientes que já terminaram a poliquimioterapia e continuam excessivamente preocupados com a transmissão para pessoas queridas: “Posso brincar com meu neto, abraçar ele? Ele pode comer no mesmo prato que eu como?” O medo da transmissão muitas vezes "ultrapassa o racional” e está presente inclusive nos profissionais de saúde. Lembra-se da ocasião em que descobriu que seus residentes de dermatologia tinham resistência a frequentar o ambulatório de hanseníase por medo de contaminação.

Maria Kátia se orgulha do ambulatório que trabalha no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ. Ela reconhece o êxito da equipe multidisciplinar, que se esforçou por criar e liderar, quando testemunha a transformação de histórias de vida: quando vê um paciente com pé caído voltar a andar após uma cirurgia, quando uma paciente com mão em garra volta a exercer seu trabalho manual, ou quando pacientes com dores crônicas recuperam suas atividades. “É muito gratificante”. Este é o motivo pelo qual Maria Kátia encara a área da reabilitação em hanseníase com bastante esperança.

 

Maria Leide é médica dermatologista e atua com a hanseníase desde 1975, quando era interna da Faculdade de Medicina, e nesta época trabalhou com pesquisa no Instituto de Leprologia. Como médica, trabalhou em um centro de saúde de Caxias, um dos municípios mais endêmicos naquela época. Em 1979, se tornou professora da UFRJ, atuando no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho.

Ao começar sua carreira médica, o contato intenso com pessoas com hanseníase foi desafiador para Maria Leide, e ela nos conta que sua reação na época foi dizer “eu não estou preparada, eu não fui preparada pra isso”. Sempre tentando entender melhor os pacientes, organizou grupos de pacientes e projetos de extensão sobre a doença que possibilitou seus alunos terem um contato mais próximo com eles. Apesar de ter enfrentado dificuldades no seu trabalho, acabou marcando a tendência da doença em Caxias, ajudando a notificar inúmeros pacientes em um só ano.

Atualmente, depois de tanto tempo lidando com pacientes hansênicos, a seu ver, as dificuldades principais são o perfil socioeconômico dos doentes e a doença em si, que pode se prolongar. O estigma pela hanseníase é somado ao preconceito e aos problemas trazidos pela pobreza, sendo mais difícil manter os cuidados para evitar as reações, que podem ser desencadeadas por diversos fatores, incluindo o sofrimento emocional, em razão das dificuldades de vida, por vezes, a violência.

Maria Leide destaca que falar sobre autocuidado com os pacientes e fazê-los praticá-lo é trabalhoso e requer muito diálogo e entendimento. A linguagem deve ser acessível e termos essencialmente médicos nem sempre são bem-vindos para adentrar a realidade do paciente. Recorda um caso em que uma senhora, já sem sensibilidade nas mãos, não aceitava a limitação que o autocuidado traria para o seu dia a dia, já que toda sua maneira de fazer as coisas em casa teria que ser revista. Frente a isso, a paciente falou "doutora, manda cortar minha mão porque essas mãos só servem pra me trazer ferida".

O momento do diagnóstico também requer atenção e cuidado da equipe de saúde, principalmente por ser uma doença que guarda um passado de muito preconceito e que pode ser de difícil aceitação para o portador. Apesar de alguns pacientes defenderem que a relação entre lepra e hanseníase deva ser escondida, Maria Leide adquiriu o costume de explicar esse ponto já que a imagem da lepra ainda está presente na memória da população. Ela reforça que “não tem como você apagar uma determinação histórica de uma doença tão forte como essa, uma imagem tão forte como essa” e tenta, portanto, mudar a impressão que as pessoas têm da doença.

Por fim, Maria Leide conta que é uma felicidade como médica ver os pacientes recuperados, ainda mais pela imprevisibilidade da doença e pela duração do tratamento. Pacientes podem ter sequelas e reações mesmo após o fim das doses dos medicamentos. Então, quando não ocorrem intercorrências, e surge a oportunidade de dar alta, é uma confirmação de que a cura existe, que ela inclusive mostra como exemplo para outros pacientes. Como ela está em contato muito próximo com os pacientes, comenta que, com relação ao tratamento, “você sempre se chateia quando não dá certo e sempre fica feliz quando dá certo”. Ela ressalta ainda que a cura não é simples de ser abordada e depende muito do tipo de hanseníase que o paciente apresenta, sendo “muito fácil você trabalhar a cura com um paciente que tem duas manchinhas e que não tem nenhuma deformidade, é mais difícil trabalhar a cura com um paciente que tem deformidade, e com reação é mais ainda”.

 

Desde o início de sua carreira, há 25 anos, a dermatologista Maria do Carmo trabalha com hanseníase em Natal, Rio Grande do Norte. O que antes era uma escolha, tornou-se uma necessidade ao voltar para sua cidade natal, após a especialização, e se deparar com a realidade do sistema de saúde no tratamento dessa doença. Tudo isso talhou, ao longo da sua vida, sua experiência como profissional.

Maria do Carmo ressalta, com frequência, que aprende constantemente com os pacientes. As consultas a ensinam a lidar com as pessoas, a ser gente, a ser alguém melhor na sociedade. Compreende seu trabalho no SUS como o retorno para a sociedade, que ela tem satisfação em fazer, já que sua formação médica foi consolidada em instituições públicas.

Para Maria do Carmo, a hanseníase requer uma equipe multidisciplinar, na qual todos trabalham juntos em prol do bem-estar do paciente. Isso porque, nas palavras da dermatologista, “é questão da gente assumir a humanidade da gente e a cidadania que a gente tem, que a gente nasceu pra ter alguma melhoria aqui”. Assim, uma medicina com o olhar humano, uma medicina diferente, tem como pressuposto uma atenção mais completa ao paciente no contexto que ele está inserido.

A experiência de Maria do Carmo lhe ensinou que a reabilitação do paciente não é só física, mas também mental, social e econômica. Para isso, o profissional de saúde tem um papel fundamental no acolhimento do paciente, uma vez que isso é um fator relevante para que o indivíduo se mantenha no tratamento e, assim, a reabilitação torne-se algo mais viável.

Por fim, em tantos anos de atuação, seria impossível não abordar o preconceito. É uma realidade intrínseca, estabelecida com raízes sólidas e profundas na sociedade. Testemunhar o preconceito entre colegas e ouvir relatos de pacientes fez-se uma rotina quase que diária para Maria do Carmo. Entretanto, esses mesmos anos de atuação fizeram a doutora compreender o médico como um agente ativo na desconstrução desse preconceito - nele mesmo e em todo seu ciclo social. Dessa forma, podemos repensar a hanseníase, e Maria do Carmo nos ensina a confiar na mudança, mesmo que lenta.

 

Sua formação em medicina começou em Minas Gerais, na Universidade Federal de Uberlândia, mas seu primeiro contato com a hanseníase foi apenas na residência médica. Em Goiás, no Hospital de Doenças Infecciosas, referência na doença, Sônia se apaixona pelo cuidado na hanseníase, estando há 15 anos nessa área de atuação. Atualmente é dermatologista em Porto Velho, Rondônia.

Em tantos anos de experiência, Sônia notou que na maioria dos casos o paciente apresenta um forte auto–estigma. Nesse sentido, explica que o médico possui um papel indispensável no sentido de ajudar o paciente nesse difícil processo de aceitação. Não só o médico, mas toda a equipe multidisciplinar, a qual é essencial no tratamento da hanseníase.

Sua felicidade está na certeza de que, enquanto médica, cumpre sua missão de cuidadora, de fazer “a diferença na vida de alguém”, para além do conceito tradicional de saúde-doença. Nessa perspectiva, Sônia enfatiza que mudar “o prognóstico dessa pessoa que poderia estar sequelada, prevenir as incapacidades, reabilitar e reinserir o paciente até no mercado de trabalho” lhe traz muita satisfação. Ela ainda explica que o médico deve conversar durante as consultas, pois os pacientes têm dúvidas que, por vezes, podem parecer simples, quase óbvias para os profissionais. Relata que, de fato, existe uma dificuldade na compreensão, por parte do paciente, dos conceitos de reação e de cura e, por esse motivo, o diálogo é indispensável.

Por outro lado, a maior insatisfação é “o diagnóstico tardio de hanseníase”, especialmente quando são “casos de pessoas jovens com sequelas graves”. Além disso, os recursos limitados dos pacientes, que muitas vezes vêm do interior, seja numa viagem de barco de várias horas, seja por estrada. “Doutora, eu levantei meia noite, fui de bicicleta até a cidade pegar a van da prefeitura para vir…” ou “o paciente vem para consultar no mesmo dia e voltar no mesmo dia” saindo de Vilhena a 800 quilômetros de Porto Velho. Tudo isso interfere com o tratamento, “a distância é a principal dificuldade aqui”.

Por fim, Sônia reafirma que a hanseníase tem cura e alerta que o diagnóstico precoce é determinante nesse processo: “a hanseníase tem cura, que as pessoas comecem a se olhar e procurar qualquer alterações que tiverem, e que por mais que a gente trabalhe, ainda tem muitos casos aí não diagnosticados (…). E que os colegas médicos, as equipes multidisciplinares comecem a pensar mais em hanseníase, porque diagnóstico precoce é tudo nessa doença”.

 

Cirurgião ortopedista atuante em casos de hanseníase há 28 anos, Elifaz Cabral resume sua experiência de cuidado em uma palavra: gratificante. O médico de Porto Velho acredita que o reconhecimento que recebe dos doentes é a principal satisfação no seu trabalho com cirurgias preventivas e reparadoras, afirmando ainda que os aprendizados técnicos que adquiriu com a enfermidade lhe são muito úteis em outras áreas da ortopedia, inclusive na traumatologia. No que tange às dificuldades enfrentadas, ele destaca o estigma que os próprios profissionais sofrem “é como se a gente tivesse um carimbo na testa (…) como se fosse (você) um bacilífero” e a falta de profissionais e investimentos no manejo da doença, problemas que, para ele, são facilmente transponíveis quando se é comprometido com o serviço.

Apesar de abordar pacientes em estágios mais avançados da doença, Cabral conhece a dificuldade de aceitação do diagnóstico e valoriza o diálogo aberto para sanar dúvidas. As conversas vão além da explicação do quadro clínico, abordando também transmissão, contágio e prognóstico, principalmente com enfermos que apresentam a forma “neural pura” da doença. Quando o assunto é a cura, o médico reforça a importante diferença entre a cura epidemiológica e a cura percebida pelos pacientes, relacionada principalmente com a reabilitação de sequelas e a vigilância de reações hansênicas. Investido não apenas no cuidado da doença ativa, Cabral reforça a relevância de trabalhar a reabilitação em diversas esferas. Para ele, a cura não existe enquanto houver sequelas motoras, emocionais e sociais envolvidas, sendo de maior importância o desenvolvimento espiritual e a reinserção no mercado de trabalho e no ambiente familiar desses doentes. Nesse sentido, Cabral destaca a parceria realizada com o SENAC de Porto Velho, que oferece, a cada turma de formação profissional, duas vagas para pacientes hansênicos reabilitados fisicamente, proporcionando-lhes reabilitação socioeconômica.

Por fim, ao abordar os preconceitos sofridos pelos pacientes ele considera a mudança da nomenclatura de “lepra” para hanseníase como positiva, já que reduz o estigma histórico no Brasil. Como estratégias para mitigar a discriminação, Cabral conta que ofereceu palestras e sessões de filmes dentro do hospital para equipe de profissionais que trabalhavam, ou não, no setor, pois acredita ser a disseminação de informações confiáveis a melhor forma de reduzir os estigmas associados à doença, ainda muito presentes hoje em dia.

 

Marcia Jardim é neurologista e trabalha com hanseníase desde 1997, na Fiocruz, Rio de Janeiro. Ela relata que atende dois grupos de pacientes, um que apresenta a “forma neural pura”, que seriam pacientes sem lesão dermatológica, mas com comprometimento motor ou com perda da sensibilidade, e que frequentemente chegam para que ela faça o diagnóstico. O outro grupo é de pacientes que apresentam complicações da hanseníase, que já foram curados, do ponto de vista infeccioso, mas que evoluíram com as chamadas reações. E ela destaca que algumas vezes isso deixa o paciente cansado e ele pergunta “mas não estou curado?”. Marcia complementa: “ele não consegue entender porque é que ele ainda evolui nos quadros de inflamação do nervo, disfunção neurológica ou perda da função neurológica.”

Entretanto, Marcia conta que há pacientes que ficam aliviados e até contentes com o diagnóstico, dado que, muitas vezes, são pacientes que investigam por anos uma possível doença e que não tiveram o diagnóstico até aquele momento. A médica relata ainda que esses pacientes, ao serem diagnosticados, sentem medo de transmitir para alguém, especialmente a família, e que ela tenta tranquilizá-los, já que a forma neural pura não é transmissível.

Sobre o tratamento de reações e sequelas, Marcia compartilha que é necessário um cuidado intenso para evitar ou mitigar as sequelas nos pacientes que evoluem gradativamente com deformidades, o que se torna complexo, diz ela. Esses pacientes “têm a sensação que a doença não vai acabar nunca”, e ela acredita que é muito mais difícil e complexo para o paciente que mantém as reações após o final da poliquimioterapia. Ela destaca ainda que, na Fiocruz, onde trabalha, menos de 1% dos pacientes apresentam recidiva, no entanto quando os pacientes apresentam reações é comum pensarem que “a doença voltou”. Ela nos fala o quanto é importante os profissionais orientarem sobre o autocuidado, principalmente quando há perda de sensibilidade, casos em que o paciente pode se machucar sem perceber.

Nesse sentido, Marcia acredita que o cuidado dos pacientes deve ser muito próximo, juntamente à equipe multidisciplinar, no sentido de informá-lo “o tempo inteiro” de sintomas diferentes, para que ele retorne ao serviço médico o quanto antes. E isso o ajuda no tratamento e até mesmo quando esse paciente recebe a alta, ou seja, quando está curado, mas tem a possibilidade de apresentar complicações. “O cuidado tem que ser muito próximo, não dá para passar um tempo sem fazer isso: informar esses pacientes o tempo inteiro de que qualquer sintoma diferente, eles têm que retornar”, diz ela. Marcia também acredita que esse cuidado faz a diferença na vida das pessoas, e exemplifica com o caso de um paciente que apresentou reações após dez anos de receber sua alta, mas que ele voltou ao serviço médico para buscar ajuda, e ressalta que, caso ele não tivesse procurado, provavelmente não teria o tratamento adequado.

Para ela, durante um período, foi difícil entender que a cura não significava ausência de evolução da doença. Esse fato também é difícil para o paciente entender, mas necessário para que seja feita a autovigilância, já que podem ocorrer reações posteriores, mesmo com a cura bacteriológica. Por isso, Marcia tranquiliza seus pacientes, dizendo: “uma hora isso acaba”.

Para Marcia, o trabalho multidisciplinar é essencial para a recuperação do paciente. Ela destaca que “o trabalho, tanto do fisioterapeuta como do terapeuta ocupacional, são fundamentais para esses pacientes, principalmente os que têm déficit parcial”. Com isso, ela acredita que uma reabilitação seja possível, desde que haja muita persistência e uma conduta profissional adequada.