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Todo o processo da campanha de vacinação contra a covid-19 foi permeado por inúmeros conflitos das mais diferentes origens. Desde o questionamento sobre o tipo de imunizante, a validade dos frascos, chegando até o profissionalismo dos profissionais da linha de frente da imunização, passando pela indagação quanto aos critérios adotados pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Fica evidente alguns dos desafios enfrentados na linha de frente da saúde pública. A seguir, profissionais narram os principais aspectos que delinearam esses conflitos.
Um MFC da AP 3.3 destaca a fase da campanha de vacinação em que o critério para receber o imunizante era a partir das comorbidades (escalonado por faixa etária). Para garantir que as orientações da SMS-RJ fossem cumpridas, as unidades possuíam uma triagem para avaliar os comprovantes dos diagnósticos prioritários para a vacina. Tais regras nem sempre eram de fácil compreensão pela população leiga o que motivou embates nas unidades. Definir quem tinha prioridade com base na gravidade das condições médicas levou a discussões acaloradas.
Em alguns momentos, a falta de vacinas causou grande frustração na população. Profissionais de saúde tiveram que lidar com pessoas que esperavam por horas e culpavam os trabalhadores pela indisponibilidade. Por outro lado, as regras rígidas sobre quem podia receber a vacina em determinados momentos também causaram conflitos. Pacientes não entendiam por que não podiam ser vacinados fora do seu município ou por que precisavam esperar a segunda dose
A vacinação por comorbidades. Enlouquecedor. Agora [outubro 2021] que a gente tá chegando, tipo assim, no final da primeira dose da campanha, acho que a coisa até tá um pouco mais assim, tá tranquilizando um pouco (MFC Átila).
Até que tem um momento [abril/maio 2021] na campanha que começa a chegar nas pessoas que tinham comorbidades. E aí, foi um momento novamente muito difícil, porque a gente passou a ter que regular quem tinha que tomar vacina de acordo com a comorbidade e a gravidade. Então, aí chegava um paciente hipertenso leve querendo tomar vacina e a gente dizendo para ele que não, que ainda não era a vez dele, que ele era hipertenso leve, e ele brigava, porque ele achava que era direito, porque não tá claro qual era o critério, aí era o critério de hipertensão grave, aí ele fala “mas se eu não tomar o remédio a minha pressão fica grave”. Aí a gente tem que tentar discutir, enfim, conversar com paciente, foi uma fase muito difícil. Quando os critérios não são muito claros, não são muito comunicáveis assim com a comunidade, isso deixa o profissional exposto na linha de frente, porque a gente fica seguindo uma regra, que tá lá posta para gente, que a gente até compreende bem, mas o paciente não (MFC Márcio).
Em outra etapa da campanha, foram consideradas as profissões. Nesse momento, houve confusão sobre quem era considerado profissional de saúde versus trabalhador da saúde. Recepcionistas e cozinheiros de hospitais questionavam por que não tinham a mesma prioridade que médicos e enfermeiros, resultando em frequentes confrontos.
[...] por exemplo, essa distinção entre o que é profissional de saúde, o que é trabalhador da saúde. Era o tipo de coisa que acontecia, chegar uma recepcionista, por exemplo, de um hospital, aí ela é trabalhadora de saúde ou ela é profissional de saúde? A cozinheira do hospital é trabalhadora de saúde ou profissional? Daí, trabalhador era uma regra, era uma idade, profissional era outra regra, outra idade [...] todo dia era uma briga, eu acho que isso desgastou bastante a gente, já foi uma fase assim de maior desgaste tanto do ponto de vista dos atendimentos de covid quanto das orientações da vacina também (MFC Marcio).
A falta de clareza nos critérios e as constantes mudanças nas normas de vacinação geraram frustração tanto nos profissionais quanto na população. A falta de uma comunicação eficiente fez com que muitas pessoas não entendessem ou aceitassem as regras, levando a reclamações e ameaças de processos.
No início foi muito difícil, porque a gente tinha que negar vacinação para profissional de saúde. E aí eles não aceitavam, mas a gente não tinha outra opção. Então cada profissional de saúde ia receber a vacina na sua unidade. E não recebiam. E aí, eles estavam ali cobrando, reivindicando, xingando, chamando a polícia. Fazendo… como é que chama gente? B.O., porque não tinham acesso a vacina como se fosse algo da nossa governabilidade de decidir quem toma e quem não toma (ENF Caroline Teixeira).
Da vacina, é o problema da idade. O usuário que às vezes não está no momento para fazer a vacina. O usuário que não entende que se ele tem uma sindrome gripal ele não pode fazer a vacina nesse dia. Você faz uma anamnese. Você pergunta e às vezes ele omite. [...] Como ele chega querendo escolher! E orientar as reações adversas que ele retorne para unidade para notificar isso também. Foi muito difícil até entrar na cabeça das pessoas. Muitas pessoas “ah, porque eu tenho trombose, não posso fazer essa só posso fazer aquela" (ENF Maria Aparecida).
As brigas na vacina. Essa situação da vacina de vento... Nossa senhora! Como a gente escuta! “Tem vacina aí mesmo?” “Como é que é?” Nossa mãe! E isso é o pior. A gente “senhor, tá aqui”, aí aspira, aí mostra, aí fala qual é a vacina com toda destreza, toda bem... mas tem gente que não escuta. As pessoas querem tirar foto, a sala da vacina aglomerada, cheia, não pode ficar muito cheio. [...] Aí você fala com a pessoa que não está observando, não tá prestando atenção no que você tá falando e acaba tudo, aí a pessoa pergunta: “Que vacina que eu fiz?”, “O que você fez?”, "O que você me deu?”. Porque não prestou atenção no que você tava falando naquela orientação. É complicado. Mas estamos na luta!” (ENF Maria Aparecida).
Eu acho que o estresse começou a ser com os 60 e pouquinho. No meio disso, os critérios foram mudando. Era fator idade, aí depois comorbidade, e aí eles mudavam de novo e a gente ficou nesse indo e vindo novamente e muitas vezes a população não compreendia (ENF Bruna Saldanha).
No começo era bem restrito, tinha que ser feito na idade certa, quem fez a primeira dose, a segunda dose não podia ser feita noutro lugar do município do Rio por um determinado tempo. A gente tinha que seguir as regras. As pessoas falavam que a gente estava querendo matar elas, que a gente estava negando vacina. Aí queriam chamar a polícia. E cada hora mudava a vacina, as normas da vacina mudavam, e a população culpava sempre quem estava lá na frente (ENF Bruna Campos).
Muitos indivíduos queriam escolher qual vacina tomar, recusando-se a receber a disponível. Esse comportamento resultou em brigas e até ameaças aos profissionais de saúde. A preocupação com reações adversas, como trombose, fez com que as pessoas mudassem suas preferências de vacina ao longo do tempo. A desconfiança nas vacinas foi exacerbada pela desinformação. Pacientes exigiam ver os frascos e conferiam os lotes e a validade, acreditando que poderiam receber vacinas fora da validade.
[...] no Jóquei, é, porque eles abriram lá um polo de vacinação, lá sim, lá as pessoas queriam escolher, se não tivesse, "não vou tomar, queria saber onde tem". Agora, assim, na Rocinha não teve tanta implicância com as vacinas, não. Agora Jóquei, eu digo assim, zona sul, teve muita briga, teve gente que chamou polícia, queria agredir, foi bem complicado. [...] quando a gente escrevia lá qual era a vacina que lia, "ah, não, não quero essa”. “Ah, então, só tem essa". Às vezes eles rasgavam papel e jogavam assim em cima de você, ou queria arrumar confusão, aí chamava o responsável do PV e que queria aquela tal vacina, e falava que a gente estava negando vacina, só que não tinha realmente aquela vacina ali, entendeu, que ele queria tomar. Enfim, foi estressante, mas não estou generalizando, como eu falei, mas assim, teve uma parte muito, muito chata por isso da gente ser maltratada (ACS Leticia).
Foi sobre o estresse que a gente tinha em relação a, embora, seja um procedimento que a gente tem que fazer, mas fica assim toda hora você tem que pegar, você tem que mostrar o lote, você tem que mostrar a dose que você tá aplicando. Porque teve a questão com as notícias de que teve gente que estava aplicando ar, e não vacina, então a gente teve até profissional que foi filmada em vídeo, profissional da Unidade. [...] é uma coisa muito chata de toda hora, você tem que mostrar. Quando a gente administra a Pfizer, por exemplo, uma dose pequenininha, 0,3ml, toda hora, você tem que ficar puxando para mostrar, a pessoa falar que não tá vendo, ou então a gente sabe que fica sempre um pinguinho ali no canhãozinho da agulha, a pessoa falar que aquele restinho não entrou e deveria ter entrado. Esse desgaste era muito grande (ENF Bruna Saldanha).
A propagação de informações falsas e boatos nas redes sociais alimentou a desconfiança em relação às vacinas. A ideia da "vacina de vento", onde as pessoas acreditavam que estavam recebendo apenas ar, exemplifica esse problema. Isso resultou em uma necessidade de comprovações detalhadas e um aumento nas filmagens dos procedimentos.
Outro ponto de conflito foram os desabastecimentos pontuais que colocaram a equipe da APS em evidência como causadores daquela falta de insumo.
Foi raro isso acontecer, mas acontecia em alguns momentos, da gente ficar sem vacina na Unidade, sem estoque. E aí também era um problema, porque aí a gente ficava com as pessoas dentro da unidade, esperando chegar a vacina, sem previsão, se ia chegar amanhã e aí as pessoas começam a ficar incomodadas. [...] A população nem sempre entendia. Acha que a culpa é nossa, acha que a gente tá escondendo a vacina, que a gente tá querendo dar vacina aos nossos familiares (MFC Marcio).
Porque teve um momento que parou o fornecimento da vacina. E voltou. E o povo ficava desesperado. "Eu quero vacinar e tá acabando", assim foi bastante desgastante no sentido de lidar com o público e ter que explicar que não era você que estava criando as regras, existe alguém superior que cria e a gente tem que seguir. [...] tinha um desgaste às vezes até com ofensas da população para a gente com palavras de baixo calão, enfim, porque a gente não podia vacinar, porque ela não estava naquele critério (ENF Bruna Saldanha).
Houve conflitos gerados por usuários que tentaram se utilizar de posição social, profissão ou cargo ocupado para obter benefícios. Profissionais de saúde enfrentaram agressões verbais e ameaças, especialmente quando as vacinas não estavam disponíveis ou as regras mudavam frequentemente. A frustração dos pacientes era muitas vezes direcionada aos profissionais na linha de frente. Tentativas de suborno e uso de influência para receber a vacina fora da vez foram relatadas também.
Tinham as pessoas que queriam dar carteirada para tomar a vacina. Tinham as pessoas que precisavam tomar a vacina e se recusavam a tomar, inclusive tem até hoje (ENF Debora).
E as pessoas vinham perguntando “com quem que eu tô falando?” “quem é você?” Ameaçando questão de processar, e aí no final ela saiu xingando, ofendendo mesmo eu e a outra profissional, com palavras pesadas assim, de baixo calão mesmo. E revoltadíssima, falando que iria processar (ENF Bruna Saldanha).
Desde as pessoas quererem subornar a gente pra poder conseguir a vacina fora da época, até a polícia, que baixou lá, que a gente levou uma carteirada (ACS Raquel).
Acho que as pessoas que têm um poder aquisitivo maior, elas acham que elas podem tudo. Chega lá, "sabe quem eu sou?" Já começa a querer se impor. "Ah, eu vou ligar pro Secretário, eu vou ligar", entendeu? Então, é mais, eu acho que é sobre o poder aquisitivo, de chegar lá, "ó, você sabe quem eu sou?" "Eu quero tomar tal vacina, entendeu?" Então, já teve algumas pessoas que chamaram a polícia, porque falavam que [os profissionais] não queriam dar a vacina e, às vezes, nem tinha vacina lá. [...] na Rocinha, eu não vi nenhum caso da pessoa querer ou escolher ou querer arrumar algum tipo de briga por conta de não ter aquela vacina que ela quer tomar (ACS Leticia).
Teve de um tudo. Usuário que fugiu com o comprovante de vacina e depois a gente teve que fazer a busca ativa para dizer que ele não estava vacinado de fato (ENF Leônidas).
um senhor que veio, ele se auto-intitulava médico, falava que ele era médico do CTI de covid lá em um hospital de Acari e tal. Ele sentou na cadeira e falou: “ah, finge que aplica aí.” E eu pensei, “será que eu estou ouvindo direito?” “Finge que aplica” Aí eu falei, “O senhor pode repetir, por favor?” “Ah, é porque eu sou médico lá no hospital de Acari, eu trabalho num CTI com pacientes de covid, eu nunca peguei covid na vida. Isso é uma mentira da mídia, eu preciso da vacina porque eu preciso viajar para o país tal. Finge que aplica, você finge que aplica, eu finjo que tomei, a gente finge que acredita nessa palhaçada, e eu vou embora e tá tudo bem”. Aí eu fiquei uns dois segundos sem acreditar no que eu tava ouvindo, e eu falei: “O senhor pode levantar da cadeira, a dose vai ser retirada da sua caderneta de vacinação, se o senhor se recusa a tomar, a gente não vai realizar administração, porque a gente não finge que imuniza, a gente não finge que trabalha”. Eu sei que no final das contas, ele tomou a vacina muito a contragosto e foi embora. E essa foi uma das situações que me vem sempre à memória, de uma situação não boa com relação à vacinação (ENF Kátia Brito).
Em algumas unidades, caso ocorresse de sobrar doses em um frasco que não poderia ser armazenado até o próximo dia de expediente, essas doses remanescentes eram ofertadas. No Rio de Janeiro, a situação ficou conhecida com a expressão “xepa da vacina”, e também foi motivo de aglomerações, aumentando o estresse dos profissionais responsáveis.
A famosa xepa. Mas isso era muito, isso era muito desgastante. Porque a população ia buscar lá em peso, em muita quantidade. E já chegavam de manhã perguntando pela sobra de vacinas no final do dia. Nossa você... não gosto nem de lembrar, porque às vezes ficava assim: 30, 40 pessoas aguardando. A gente ia lá, conversava, explicava e falava “Não vou ter mais do que oito não, não vou ter mais do que nove, então não adianta ficar aqui. Você está se expondo, está em uma aglomeração aqui, praticamente”. [...] Nossa, era terrível, assim… Essa fase foi muito ruim (ENF Leônidas).
Os conflitos na campanha de vacinação contra a covid-19 destacam a complexidade de administrar uma vacinação em massa em meio a uma pandemia. A clareza na comunicação, a consistência nas regras, e o suporte aos profissionais de saúde são cruciais para mitigar esses conflitos. Aprender com essas experiências pode ajudar a melhorar a gestão de futuras campanhas de vacinação, garantindo um processo mais harmonioso e eficaz para todos os envolvidos.