Sobrecarga de trabalho

Temas: APS

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Ainda em março de 2020, muitos profissionais de saúde portadores de comorbidades e gestantes foram afastados mediante decreto municipal, seguindo as recomendações da OMS. Tal iniciativa, por um lado, tranquilizou os trabalhadores com maior vulnerabilidade, enquanto, por outro, fragilizou a oferta de serviços e sobrecarregou as equipes pela redução do número de profissionais disponíveis para dividir as escalas, a exemplo da equipe de enfermagem que, segundo o Conselho Federal de Enfermagem, contabilizou 660% de aumento de afastamentos na segunda quinzena de abril de 2020. Aos profissionais que permaneceram na assistência, manteve-se a atenção quanto à possível manifestação de sintomas, com afastamento e realização de exame RT-PCR sempre que indicado. Os afastamentos de curta e longa duração, por Covid-19 ou devidos a outras causas foram sentidos nas UBSs, sobretudo naquelas onde a incompletude de equipes já se apresentava como fator limitante à produção de serviços. Estudos realizados com profissionais de todo país apontaram que 72% referiram ter tido, na UBS, algum trabalhador afastado por suspeita ou confirmação de Covid-19. 

No MRJ ocorreu o afastamento do trabalho presencial de diversos profissionais de saúde que foram classificados como grupo de risco – a partir do critério idade ou comorbidades – até que houvesse imunização e o esquema vacinal estivesse completo. Em sua quase totalidade, esses postos de trabalho não receberam novas contratações mesmo que de caráter temporário, o que resultou em equipes reduzidas e consequente sobrecarga. Mesmo com o retorno dos profissionais afastados por questões de saúde, a equipe continuou lutando para atender à demanda crescente. 

“A gente teve que se dividir em mil. Sim. Teve uma vez que eu fiquei quase duas semanas sem ir na Clínica mesmo. Só ficava na vacina” (ENF Bruna Campos).

 

"Por volta de abril ou maio, eles já tinham recebido as duas doses, final de março por ali, aí eles voltaram. Quem estava afastado voltou, então aí a gente conseguiu dar um incremento um pouco maior. Então, nos primeiros meses, assim até março, a gente teve um quantitativo muito pequeno para organizar a vacina, depois a gente respirou um pouquinho com a chegada dos que estavam afastados" (MFC Márcio).

 

"Cheguei com profissionais que já estavam afastados, pessoas de idades mais avançadas, outros pelo fato de serem diabéticos e tudo mais, eles já estavam afastados. A Unidade já era um pouco reduzida e quando nós chegamos foi em um número grande para poder suprir toda essa necessidade" (ACS Daiane).

 

Um aspecto importante do contexto da APS carioca no cenário da pandemia Covid-19 pontuado pelos profissionais de saúde foi a sobrecarga de trabalho em decorrência de mudanças no modelo de gestão. Em algumas áreas programáticas da cidade, houve, ainda em 2020, a saída das Organizações Sociais de Saúde (OSS) para a entrada da Empresa Pública de Saúde do Rio de Janeiro (RioSaúde) com consequente redução dos recursos humanos com perda de médicos, profissionais da enfermagem e ACS por conta da redução salarial proposta. No ano seguinte, 2021, houve nova mudança nas áreas programáticas, com troca entre OSS e saída da RioSaúde para a entrada novamente de OSS. Esses movimentos repercutiram trazendo insegurança aos profissionais contratados, instabilidade das relações empregatícias e rotatividade nos postos de trabalho.Como consequência, houve desorganização dos serviços, como também criaram lacunas significativas na força de trabalho, impactando diretamente a continuidade e a qualidade do atendimento. Os profissionais que permaneceram sentiram a sobrecarga de trabalho.

Importante ressaltar a mudança da administração municipal entre 2020 e 2021 por conta das eleições. A partir de 2021, iniciou-se uma progressiva recomposição das equipes, mas em um movimento lento que vem até os dias atuais. 

“Assim, ‘meu Deus, não acaba nunca, muito trabalho, muita coisa’(ENF Débora).

 

"No início da pandemia, 15 dias antes, uma mudança no modelo de gestão na minha área programática, então a gente era contratado por uma empresa, que era a VivaRio. E aí depois a gente foi contratado pela RioSaúde, e aí esse ano a gente trocou de novo de um modelo de gestão, a gente saiu da RioSaúde e foi para SPDM. E essas trocas de modelo de gestão tiveram esvaziamentos de alguns profissionais. [...] Isso lá em 2020, a gente perdeu alguns profissionais, alguns médicos, enfermeiros neste período de troca de gestão e alguns agentes comunitários também" (MFC Marcio).

 

“O Crivella tirou as OSS e colocou a RioSaúde e o salário diminuiu, então os médicos foram embora. A minha Unidade ficou sem médico um bom tempo, quase um mês. E aí quando voltou, voltaram só duas" (ENF Débora).

 

Durante toda a pandemia, o trabalho foi exaustivo de inúmeras formas: na quantidade expressiva de atendimentos para avaliação de síndrome gripal, na testagem e na posterior vacinação. Importante destacar que, no município do Rio de Janeiro, embora a estratégia de saúde da família trabalhe com o conceito de territorialização, para os atendimentos de síndrome gripal e vacinação, não havia distinção pelo local de moradia do usuário, o que gerou atendimentos acima da capacidade prevista.

“Quando começou a fazer os testes nas Unidades, aqui a gente fazia 500, 400, 600 testes por dia, entendeu? A gente aqui tinha hora para abrir, mas não tinha hora para fechar” (ACS Everson).

 

A preparação das salas e postos de vacinação demandava uma organização detalhada, exigindo que a equipe chegasse mais cedo para preparar os espaços e garantir que todo o processo ocorresse de forma eficiente e segura.

“Dependendo da faixa etária, o dia que a gente vacinava menos, a gente vacinava 1.500 pessoas. E aí é um processo que demanda muita organização, a gente precisava chegar mais cedo do que o horário de trabalho para organizar os postos, organizar as caixas de vacinação" (ENF Katia Brito).

 

“A gente aqui atendia, atendia geral. É assim, muitas vezes tinha gente de Caxias, tinha gente de Campo Grande, Bangu. Olha só. É, teve gente de Jacarepaguá. Nossa!” (ACS Everson).

 

Alguns profissionais de saúde da APS carioca destacaram o mês de janeiro de 2022 como um ponto fora da curva. Foi exatamente o período marcado por aumento exponencial do número de casos por conta da variante Ômicron e caracterizada pela alta transmissibilidade. Alterações drásticas nos processos de trabalho das equipes e unidades foram necessários para adaptação ao cenário epidemiológico, incluindo restrição no acesso aos casos não síndrome gripal. Com a oferta de testagem irrestrita da população, algumas Unidades de Saúde chegaram a realizar centenas de testes de Covid-19 diariamente. Esse ritmo de trabalho gerou um ambiente de trabalho extenuante e exigente. Uma enfermeira da AP 2.2 narra o desgaste intenso enfrentado pela equipe da sua unidade devido ao aumento nos casos e à necessidade de reorganizar rapidamente os fluxos de trabalho, gerando um ambiente de trabalho ainda mais desafiador.

“A atenção primária é um repositório de tudo, então é complicado, porque tudo recai sobre nós de alguma forma e o modo como os profissionais da atenção primária tiveram que ser resistentes e resilientes em janeiro [de 2022], acho que só quem vivenciou que sentiu de fato a sobrecarga” (MFC Amanda Barbosa).

 

"Na época da Ômicron, em 2022, que a gente tinha pessoas até já com reforço da vacinação, nós tivemos um número muito grande de casos novos e de positivos. Então, assim, foi meio que assustador nesse sentido: cara tem que mudar todo o fluxo de novo e eu acho que tava todo mundo já cansado, dois anos na mesma coisa, aí a gente falando a mesma coisa, e parecia que não tinha uma conscientização da população, o que leva mais ainda ao desgaste dos profissionais que estão ali [...] era um passo para frente e dois para trás e quando a gente inverteu era isso, nós tínhamos oito consultórios que viraram oito pontos de coleta de Covid, e a gente mesmo tendo oito profissionais, dezesseis, porque a gente ficava em dupla na maioria das vezes, tinha dias que como o pico era muito grande, a gente tinha gente esperando três horas mais ou menos para poder fazer o teste. E a gente teve mais uma vez que bloquear essa continuidade do cuidado, que a gente tem muito presente na Estratégia, bloquear novamente os atendimentos, restringir, realmente saber o que que é prioridade e o que não é naquele momento. [...] a Ômicron acho que ela trouxe um desgaste muito maior aos profissionais, como o potencial de contaminação era maior, acabava que os poucos que ficavam, acabavam sobrecarregados com o trabalho que era para ser dividido para muitos" (ENF Bruna Saldanha).

 

Em que pese a altíssima demanda de atendimento para sintomáticos respiratórios, testagem para covid-19 e a vacinação, os demais grupos denominados prioritários continuaram tendo seu atendimento nas unidades básicas de saúde. O dia-a-dia do cuidado em saúde da população, embora atravessado pelas restrições da pandemia, seguiu, obrigando novos formatos de trabalho.

"O CMS continuava aberto e atendendo aqueles casos essenciais: pacientes em tratamento de tuberculose, gestante, puericultura, para as vacinas de rotina, tudo. O mundo nesse sentido não parou, mas a gente tinha que perguntar, então a gente ficava muito nessa função" (ENF Leônidas).

 

“Foi difícil. Entre várias outras coisas, além de ausência de profissionais, às pessoas sem muita energia. Dividir muito a função assim, o que que é do médico, acha que só mexe para fazer isso aqui, mas pode fazer que só piora a sobrecarga, que desune a equipe, os ACSs destinados para muitas funções, que eles não estavam acostumados a fazer: ser escriba de vacina, ficar na porta de Covid, “Posso ajudar”. Nossa! “Posso ajudar?” com a equipe técnica... médico e enfermeiro na porta da clínica falando com uma fila de gente que você não vai atender ninguém... Nossa, foi assim...enlouquecedor" (MFC Átila).

 

Os profissionais destacaram a necessidade de que haja maior número de contratações. O déficit em recursos humanos consiste em fator limitante para o cuidado mais qualificado no território. A pandemia destacou a necessidade crítica de expandir as equipes de saúde para lidar com a sobrecarga de trabalho. Uma enfermeira da AP 2.1 enfatizou que o aumento na demanda de atendimento revelou a insuficiência da equipe existente, mostrando que era essencial contar com mais profissionais para garantir a qualidade e a eficiência do atendimento: 

“Os profissionais foram muito sobrecarregados durante esse período. E a gente precisa de mais profissionais trabalhando com a gente. É isso que a gente precisa. Isso que nesse momento da pandemia mostrou que a gente não vai dar conta” (ENF Bruna Campos).

 

Ressaltam também o impacto da sobrecarga durante o processo formativo dos especialistas na APS carioca. A cidade possui o maior programa de residência médica e de enfermagem em Saúde da Família e Comunidade do Brasil. A residência, como padrão-ouro no treinamento e formação de especialistas na área da saúde, por si já possui carga horária elevada, sendo período de intenso aprendizado: 

“A sobrecarga do trabalho na unidade de saúde que foi, junto com a angústia do desconhecido, junto com a carga horária, é algo que pesa muito na nossa… na nossa vida mesmo, como pessoa, na nossa vida como profissional de saúde, foi bem puxado” (ENF Katia Brito).

 

A pandemia de COVID-19 revelou e exacerbou desafios preexistentes nas estruturas de gestão e na capacidade das unidades de saúde da APS carioca. As experiências compartilhadas pelos profissionais reforçam a necessidade de uma abordagem mais assertiva e individualizada para a gestão de crises, além de maior apoio ao bem-estar dos trabalhadores. Essas lições são fundamentais para preparar o sistema de saúde para enfrentar futuras emergências com maior eficácia e menos impacto na saúde dos profissionais e na qualidade dos serviços oferecidos à população.