1a Onda (fevereiro/2020 a julho/2020)

Temas: APS

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A primeira onda da pandemia Covid-19 foi descrita temporalmente como o período compreendido entre os meses de fevereiro de 2020 a julho de 2020, quando foram notificados 7.677 óbitos semanais. Seu pico de mortalidade ocorreu na 30ª semana epidemiológica de 2020 e a principal variante identificada foi a Alfa. Os profissionais de saúde destacaram a preocupação pelo desconhecimento e ineditismo do momento envolvido, assim como percepções de insegurança foram recorrentes nas falas. Nesse momento histórico, a principal preocupação nas unidades de saúde foi estruturar e organizar os fluxos para lidar com o vírus desconhecido. A adaptação às normas do Ministério da Saúde e às notas técnicas da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro foi essencial para criar um ambiente mais funcional.

"No primeiro momento foi a preocupação de algo novo, desconhecido, que a gente precisava entender e estudar, enfim montar fluxo na Unidade. Então a gente montou um grupo de trabalho para tentar isolar os sintomáticos respiratórios em um determinado local, preocupação com os EPIs. Acho que ficou uma preocupação assim muito operacional de como nós íamos nos estruturar para essa situação nova na atenção primária. Isso é desafiador, mas a gente conseguiu. Acho que... assim, muito alinhado com as normas colocadas pelo Ministério da Saúde e as notas técnicas da cidade do Rio também, a gente inclusive lá na Unidade já pensou um fluxo até antes mesmo da nota (técnica) a gente já tava atento a essas questões. Eu acho que deu um pouco de segurança para os profissionais, porque a gente fazer uma equipe de resposta rápida, um profissional na frente da Unidade separava já as pessoas, perguntava se tinha algum sintoma respiratório, e ali mesmo a gente já separava e entrava numa entrada separada. Eu acho que isso permitiu a gente ter um pouco mais de tranquilidade também porque a gente isolava os sintomáticos respiratórios. Aí acho que depois dessa primeira fase, a gente sempre monitora desde o começo assim da pandemia o número de atendimentos e os casos notificados, e os profissionais, também no começo, eu tava monitorando também os profissionais que ficavam afastados por sintomas respiratórios. No começo, a gente não conseguia testar as pessoas. E aí, nesse tempo, eu acho que isso também dava segurança porque a gente tinha informação, a nossa informação, informação primária do nosso setor, da nossa Unidade, eu acho que essa informação também nos tranquilizava" (MFC Márcio).

 

"Acho que aquele início em que a gente tinha poucos casos, mas tinha muita insegurança e muitas interrogações. A gente não sabia manejar, a gente não sabia a história natural da doença, a gente não sabia a mortalidade, nem a via de transmissão. A gente não tinha máscara. A gente recebia umas máscaras de Perfex, sabe? Sem N95. Até hoje na prefeitura do Rio, a gente recebe KN95 e não N95. Então, no momento de muita insegurança do que acontecia, do que estava por vir" (MFC Caroline Oka).


A pandemia expôs os profissionais da APS a situações que não fazem parte da rotina habitual de trabalho. Houve necessidade de treinamentos específicos descritos por alguns profissionais assim como a criação de novos protocolos. A escassez de equipamentos de proteção individual adequados, como as máscaras N95, e a improvisação com máscaras de materiais menos eficazes aumentaram a ansiedade entre os profissionais. Em resposta, foram organizados treinamentos emergenciais, como intubação orotraqueal, uma habilidade que tradicionalmente não é necessária na APS, mas que se tornou essencial diante do risco de pacientes gravemente doentes.

"Esse primeiro momento, em que a gente estava tão inseguro que a gente teve treinamento na APS de intubação orotraqueal na atenção primária. Teve treinamento de como preparar o corpo, se houvesse óbito no território. Eu tive que fazer uma visita domiciliar de um óbito que teve, para declarar um óbito de uma paciente que a família não sabia se tinha tido Covid ou não, mas como tinha um relato de que ela tinha tido falta de ar antes de morrer, eu tive que colocar aqueles macacões de astronauta para visita domiciliar no calor de 40 graus, Rio de Janeiro subindo morro para fazer PCR no corpo. Eram situações inimagináveis!" (MFC Caroline Oka).


Por ser o primeiro contato com o sistema de saúde e atuar de porta aberta, as unidades da APS acabaram recebendo pacientes em diversos estágios da doença, incluindo indivíduos graves que necessitavam de suporte avançado. Nestes casos, na cidade do Rio de Janeiro, é acionado o sistema de Vaga Zero, para que o paciente seja removido de ambulância para uma unidade da rede de emergência. Uma MFC de uma comunidade na zona oeste narra a dura realidade de trabalhar com recursos limitados durante os picos da pandemia. Em muitos momentos, a demanda por suporte de oxigênio excedia a capacidade disponível nas unidades de saúde, resultando em situações de emergência constantes. A falta de espaço adequado forçava os profissionais a encontrar soluções temporárias para acomodar os pacientes. A capacidade de adaptação e a resiliência mostradas pelos profissionais são frutos da dedicação e compromisso dos profissionais de saúde em oferecer o melhor cuidado possível, apesar das limitações severas.

"Eu lembro que foram muitos, muitos pedidos de vaga zero, muitos, mesmo, de assustar, de falar “meu Deus do céu o que tá acontecendo?!” Então, a gente tinha uma salinha onde tinha ali o suporte de oxigênio para quem precisava, e naquele dia se esgotou. Tudo o que tinha estava sendo utilizado por alguém, mais maca para pessoa poder ficar deitado um pouco mais confortável, tentar ofertar um conforto para ela até a ambulância chegar. E, assim, você vai conhecendo a história dessa pessoa" (MFC Amanda Barbosa).

 

"Eu acho que o pior mesmo, a meu ver, foi a primeira [onda]. Quando a gente teve esses óbitos, a gente ficava sabendo muito dos óbitos das pessoas que vieram a falecer e ainda não tinha a questão da vacinação. Então, acho que a primeira que foi pior porque já na questão da segunda, a vacinação já estava em curso. Acho que como já estava em curso, a gente não teve tantos casos assim em gravidade" (ENF Leônidas).

 

Uma enfermeira descreve casos graves que chegaram à CF, os quais exigiram um nível de prontidão e resposta rápida constante, com a solicitação de vaga zero. Tais situações criaram um cenário de estresse contínuo. O relato sobre pacientes que não retornaram após serem transferidos reflete o peso emocional de lidar com perdas frequentes. A impotência sentida ao saber de pacientes que não sobreviveram deixou marcas profundas nos profissionais que estavam na linha de frente enfrentando a Covid-19 diariamente.

A atuação na comunidade é ressaltada como movimento importante, principalmente no início da pandemia. Ações educativas eram vitais para conter a disseminação do vírus e proteger a população, especialmente em áreas onde o acesso à informação era limitado. A proximidade com o território permitiu que os profissionais de saúde reforçassem a importância das medidas preventivas e criassem um ambiente de cooperação e conscientização. A iniciativa de ir além dos muros da unidade de saúde e interagir diretamente com a comunidade demonstra o compromisso dos profissionais em promover saúde e minimizar o impacto da pandemia. Esse trabalho de educação em saúde também serviu para fortalecer o vínculo entre os profissionais e a comunidade, criando uma rede de apoio mútua em tempos de crise.

"Muitos! Muitos saturando a 69, 70%... Tem que chamar a ambulância correndo, vaga zero, ficar ali do lado, o tempo todo... muitos, muitos, muitos. E não voltaram. Muitos não voltaram. [...] teve uma época que a gente foi para o território, mesmo em época de pandemia, foi maio, junho [2020] alguns residentes da minha equipe. Nós fizemos um protocolozinho, um folderzinho, e a gente foi para a comunidade conversar, passamos na igreja, passamos em alguns lugares que são referência na comunidade para orientar o uso da máscara, lavagem das mãos, uso do álcool gel, o uso do EPI na comunidade. Nós chegamos a fazer essa rotina, esse processo de trabalho na comunidade" (ENF Maria Aparecida).

 

A pandemia causou uma desorganização significativa na continuidade do cuidado em saúde a partir da desestruturação e necessidade de remodelamento, durante a primeira onda, dos processos de trabalho da unidade. Devido à necessidade de priorizar apenas os denominados grupos prioritários – como gestantes, menores de 6 meses e indivíduos em tratamento para tuberculose –, muitos pacientes com condições crônicas perderam o seguimento regular. O atendimento dito desterritorializado, ou seja, que não respeitava os territórios das equipes de ESF, também foi uma constante.

"Começamos a atender só os grupos prioritários, isso também foi muito ruim. Nós perdemos o segmento de algumas gestantes, de algumas doenças que a gente faz o seguimento normal. E acabou que a gente perdeu mesmo todo o processo de gerência dessas linhas de cuidado. Ela ficou meio, meio desorganizada. Sem contar que a demanda além de aumentar, nós trabalhamos de uma forma que, para quem está acostumado com a estratégia de saúde da família e você trabalha por equipe na unidade, a gente começou a trabalhar amplo, não tinha equipe. Chegou para ser atendido vai passar, bota na demanda e aí cada um vai puxando independente de ser sua equipe ou não. Isso desestruturou muito também. Porque a questão do vínculo para sua equipe, você conhecer o território, conhecer seu usuário... E isso impactou muito na linha de cuidado de uma forma geral. Porque… por conta das condutas mesmo, das prescrições, das condutas médicas, então também foi muito complicado" (ENF Maria Aparecida).