Experiências de discriminção: racismo e deficiência física

Temas: APS

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Situações de desigualdade racial e barreiras de acessibilidade durante a pandemia Covid-19 foram destacadas por duas participantes da pesquisa.

Esse relato extremamente potente de uma enfermeira descreveu a experiência da irmã, uma mulher negra e obesa, que enfrentou longas esperas e atendimento precário em uma clínica em um município da baixada fluminense, mesmo com sintomas clássicos de COVID-19. Esse descaso, em sua visão, estava fortemente ligado ao racismo estrutural, afetando também o irmão, que foi recusado para testes de COVID-19, enquanto outros indivíduos foram testados em seu ambiente de trabalho sem problemas.  

Não só no atendimento da minha irmã, acredito que até no atendimento do meu irmão também. O que fez aquele médico olhar para ele e dizer para ele que ele não precisava ser testado? A gente estava no meio de uma pandemia matando muita gente. Uma coisa importante que podia ter levado até o meu irmão à morte, sabe. A minha irmã é uma mulher preta, gorda, que procurou assistência de saúde numa trambiclínica, na cidade de Mesquita, que ficou horas esperando atendimento num lugar que estava vazio. Ela já estava bem melhor, mas ainda estava tossindo bastante, expectorando bastante. Eu não consigo, na minha cabeça e com o conhecimento que eu tenho hoje sobre a questão racial, imaginar que foram casos isolados. Quando você olha estatísticas, olha boletins epidemiológicos não tem coincidência ali. Você sabe quem foi que mais morreu, quem foi mais negligenciado. Você sabe quem teve a assistência de saúde negada. Então, quando eu vejo o que aconteceu com os meus irmãos na pandemia, para mim é muito claro. Sabe, ele olhou, o que fez ele pensar que outros três militares precisavam ser testados e o meu irmão não? Porque não se tinha nenhum artigo científico, nenhum boletim, nenhum nada, nenhuma nota técnica, que dissesse que quem pegou COVID uma vez, não pegava de novo. Nunca existiu, então assim: ‘ah, eu não vou gastar com esse cara aí não’. A gente já tem um acesso da população negra bem precário à saúde em relação aos demais. Na pandemia isso só piora, porque geralmente como você tem o racismo estruturando os pensamentos, naturalmente as pessoas vão entender que aquelas vidas valem menos. Então, não escuta o que esse usuário tem para falar, ou não qualifica essa queixa, ou não entende essa queixa como alguma coisa importante. São pequenas agressões que vão acontecendo, que vão fazendo com que essas pessoas vão ficando para trás. Então pode ser uma orientação de medicação que não é feita corretamente. Após isso, se o cara vai tomar o remédio ou se não vai, ou se entendeu como é que toma ou não entendeu? Ou então lá, por exemplo, lá no acolhimento, a pessoa chega com uma queixa, e o ACS não entende que possa ser uma coisa importante, manda a pessoa voltar depois, porque o profissional está almoçando, e aí quem garante que essa pessoa vai voltar ou não vai voltar? Pode ser que ela não volte (ENF Débora).

Outro aspecto relacionado pela profissional entrevistada foi sobre a distribuição de vacinas, em sua visão, feita de forma injusta em decorrência do racismo. Ela explicou que a alocação inicial de locais de vacinação, concentrada em áreas de alto padrão como a Zona Sul do Rio de Janeiro, excluiu efetivamente a população negra, que muitas vezes não se sentia bem-vinda nesses espaços. Isso perpetuou a desigualdade no acesso às vacinas, exacerbando a vulnerabilidade desta população. Destacou ainda a presença do racismo no desfavorecimento da população negra na alocação inicial das vacinas em termos de faixa etária, já que a população negra não tem a mesma expectativa de vida que a população branca. Além disso, argumenta que houve uma subestimação do risco enfrentado por trabalhadores essenciais, como faxineiros e porteiros, que foram negligenciados nas prioridades de vacinação, apesar de estarem expostos ao vírus em ambientes hospitalares.

Uma outra coisa com relação à vacinação que eu acho que é particularmente importante citar, é uma coisa que pretendo trazer também para a minha dissertação, é a maneira como foi planejada a dispensação pra população no sentido de: tem as Clínicas da Família e os Postos de Saúde que vão aplicar. Tem os diversos pontos. Tal lugar, tal lugar, tal lugar, tal lugar. A maneira como isso foi organizado no Brasil, primeiramente já é um problema, quando a gente fala de população. Vamos começar pelos mais idosos. Cara, a população idosa não envelhece desse jeito: 95 anos, 96 anos, não! A nossa expectativa de vida é bem mais abaixo, então naturalmente isso aí já selecionou a galera branca pra passar na frente. Profissional de saúde, a mesma coisa, principalmente os de nível superior, a maioria é branco. Então esse conceito, durante muito tempo se debateu isso: o que é o profissional de saúde, o que é o trabalhador da saúde. Porque para muita gente fazia sentido vacinar o médico e o enfermeiro, mas o pessoal da faxina não! Ora pois, quem é que tá limpando o setor COVID? Quem é que está carregando sacola com corpo? Quem é que está na recepção dos hospitais? Eu vi entrevista com porteiro de hospital, falando que perderam colegas, que pegaram COVID, caramba. E a distribuição dos locais, muito lugar na Zona Sul do Rio, hotel não sei que, Jockey Clube. Gente, no Jockey Clube há um tempo desse não podia babá entrar no banheiro do Jockey, uma mulher que tá trabalhando! Mulher preta vai pro Jockey tomar vacina?! Preta, não vai, não vai. Porque a gente sabe onde a gente não é bem-vindo. Então assim, eu acho que isso não foi pensado, porque se fosse... pelo menos lá no começo. Depois a gente viu uma ou outra iniciativa que poderia beneficiar a população preta, mas no começo não foi, tinha muito lugar na Zona Sul, na Barra. Lugar onde a população preta não circula. Então, você acha que teve racismo, teve, teve, teve sim (ENF Débora).

Outro ponto ressaltado pela entrevistada foi sobre a disparidade no atendimento. Descreve experiência vivida em que um paciente negro que parecia assintomático foi submetido ao teste de COVID-19 apenas porque ela considerou seu contexto social e ocupacional, diferentemente de outros profissionais que poderiam ter negligenciado estes aspectos e, portanto, a necessidade do teste.

Destacou a discrepância entre a maior notificação de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em brancos e a maior mortalidade em negros, sugerindo uma subnotificação e subtratamento de casos graves entre a população negra, impactando assim as informações dos boletins epidemiológicos publicados.

Então, por exemplo, como que acontece? Eu me lembro de um paciente que eu atendi era um rapaz negro, era um garçom. Ele... Você olhando, aparentemente ele não tinha nada, nem fungando ele estava. Ele falou assim: "olha, eu estou me sentindo um pouco cansado, uma sensação febril e tal, e como está esse andaço de COVID, meu patrão mandou eu vir aqui procurar atendimento." E a pessoa, você percebe assim na postura, assim. Quando você é uma pessoa preta que já está muito mal maltratado, você, às vezes, adota determinadas posturas para tentar com que você não seja agredido de novo. Não sei se você concorda? Então o rapaz falava comigo, ele não me encarava nos olhos, ele só falava de cabeça baixa, mesmo de máscara e tal. E aí eu pensei assim muito rápido: esse menino é garçom, ele tem uma chance muito grande de ele estar contaminado, mesmo que aparentemente ele não tenha sintoma, ele está exposto, porque restaurante, muitos lugares não vão oferecer máscaras. A gente teve essa questão dos EPIs também. Eu não sei qual é a condição que ele trabalha, às vezes ele pode usar máscara só no salão e na cozinha não usa. Enfim vou testar logo porque... Deu positivo. E aí eu fiquei assim, Meu Deus do céu, que bom que era eu que estava aqui, porque com certeza se fosse qualquer outro profissional, talvez se fosse eu no passado, também ia pensar que ele não tinha nada, porque clinicamente ele não tinha nada. Saturação estava normal, a febre era só relatada, ele não estava com febre. Então se fosse um profissional que não tem esse olhar treinado, que não pensa no contexto, provavelmente ele ia embora até sem testar, sem ser testado. Ele ia continuar trabalhando, contaminando família, contaminando todo mundo, sem teste. O mínimo que eu podia fazer por ele era o teste. Então, isso aconteceu com mais quantas pessoas? Não sei. O que que levou a, por exemplo, nos boletins epidemiológicos a informação de que as pessoas com Síndrome Respiratória Aguda Grave, com notificação, a maioria era pessoas brancas. Pessoas que morreram pela Síndrome Respiratória Aguda Grave maioria pretas. A conta não fecha. Poxa, se tem mais branco com SRAG do que preto, por que que está morrendo mais preto do que branco? Isso diz muito sobre a maneira como se investe nessas vidas! Eu não posso acreditar que isso só aconteceu no CTI. Isso está acontecendo em todos os outros lugares, no SUS, fora do SUS, isso aconteceu em todo o lugar, porque o racismo estrutura toda a sociedade. Então você vai ter o desprazer de encontrar o racismo em algum lugar, em algum momento. E dependendo do contexto que você esbarrar, o azar é muito grande, porque vai resultar em morte. Na saúde então é muita morte (ENF Débora).

Outro importante tema sobre experiências de discriminação esteve relacionado aos desafios de acessibilidade para deficientes auditivos, este trazido por uma ACS sobre a sua vivência pessoal.

A pandemia apresentou um desafio significativo para deficientes auditivos que dependem da leitura labial. As máscaras comuns impediram essa comunicação, criando uma barreira adicional no acesso a cuidados em saúde. Tentativas de introduzir máscaras transparentes para permitir a leitura labial falharam devido à falta de disponibilidade. Alternativas incluíram a utilização de escrita para comunicação, que, embora eficaz, não era a solução ideal.

Como eu te disse, minha filha é deficiente auditiva e eu faço libras também. Então isso eu não falei sobre, mas para os deficientes auditivos a Covid foi muito difícil, porque eles fazem leitura labial e de máscara eles não conseguiam fazer leitura labial. Foi muito complicado. Mas eles também se saíram bem. Aqui, eu ajudo o pessoal, porque sabem que eu sei fazer libras, e eu ajudo a galera que vem aqui. Não tinha alternativa, gente. Eles tinham que... No meu caso, a alternativa fui eu, na verdade. Quando tinha um deficiente, eu ia junto porque eu sei libras. Mas se eu não estivesse na Unidade, a alternativa foi eles escreverem nos papéis, que eles sabem ler e escrever, e passavam para o médico. Até porque não tinha como abaixar a máscara para poder falar, que era risco. A gente também teve uma possibilidade de fazer máscara com aqueles... que era aberto. Não sei se você viu. Mas a gente não conseguiu ninguém que confeccionasse a máscara daquele jeito, porque eles podiam fazer a leitura labial. Mas não conseguimos. Foi uma coisa que a gente tentou, mas não conseguiu (ACS Raquel).

O racismo estrutural influenciou negativamente o atendimento de saúde durante a pandemia, resultando em tratamento desigual. A alocação ineficaz e excludente dos pontos de vacinação refletiu e perpetuou a discriminação racial, favorecendo áreas de maior renda e predominantemente brancas. Desafios adicionais para grupos vulneráveis como deficientes auditivos que enfrentaram dificuldades de comunicação devido às máscaras, exacerbando o isolamento e dificultando o acesso a cuidados adequados. Embora alternativas como a comunicação escrita tenham sido implementadas, houve limitações na eficácia, ressaltando a necessidade de maior inclusão e adaptação nos cuidados de saúde.

Esses relatos destacam tantas esferas de impacto da pandemia covid-19 no cuidado em saúde na APS e a necessidade urgente de abordar desigualdades estruturais e promover um sistema de saúde mais equitativo e inclusivo para todos os grupos sociais e raciais.