Familiares: adoecimento e/ou morte por COVID-19

Temas: APS

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Os relatos apresentados refletem a diversidade de experiências dos profissionais da saúde da APS com relação a seus familiares durante a pandemia de COVID-19. Esses relatos revelam o impacto profundo que a pandemia teve sobre a saúde mental, a dinâmica familiar e a forma como o sistema de saúde foi percebido e utilizado. Alguns temas são destacados e padrões emergem dos depoimentos.

Os sentimentos de medo e ansiedade foram constantes. Uma das grandes motivações era a preocupação com o potencial contágio e a exposição. Uma MFC menciona a preocupação do pai cardiopata com a mãe em contato com o avô suspeito de COVID-19, destacando a angústia sobre a exposição ao vírus. Além disso, relata a luta para encontrar leitos hospitalares ou cuidados adequados para parentes com sintomas graves, muitas vezes tendo que recorrer a contatos pessoais para tentar garantir o atendimento. Essa mesma MFC falou sobre o uso de equipamentos e tratamentos, como sobre a decisão de alugar oxigênio para o avô em vez de hospitalizá-lo, refletindo as dificuldades e decisões difíceis que as famílias enfrentaram. Reforça ainda a importância do apoio familiar enfatizando como a rede de apoio dentro da família e entre amigos foi crucial para enfrentar os momentos mais difíceis da pandemia.

Minha mãe até teve contato com ele e meu pai tava preocupadíssimo, ele até me ligou, “olha, sua mãe está lá com seu avô, e parece que ele está com coronavírus. Depois ela vai vir para casa." Meu pai é cardiopata, hipertenso, obeso. E aí ele tava preocupado que eu fizesse alguma coisa que eu não podia fazer. O que eu puder fazer eu vou fazer, mas depois que eu não puder ajudar, entendeu? Quando eu pude ajudar, eu ajudei. Mas é uma exposição, entendeu? Mas ela não ficou doente não (MFC Talita).

Quase todo mundo na casa da minha mãe teve: meu avô, minha avó, essa tia que cuida dele, meu primo também que querendo ou não é uma rede de apoio ao meu avô. Todo mundo ali teve, no quintal do meu avô (que são duas casas). Eu até fiquei indo lá na semana para ver, todo mundo estava “ah, aqui todo mundo já teve”, e eu tava naquele momento finalzinho dos 14 dias, também. Eu acho que acabou que eu ia lá e eles já estavam sintomáticos. Todos com expectativa do meu exame sair. Acabou que eu só consegui confirmar com sorologia mesmo (MFC Talita)

Ele foi para o hospital, fez a tomografia, falaram que não tava muito comprometido. Eu não cheguei a ver a tomografia dele, mas falaram que não tava totalmente com critério de internar ele, mas ele mesmo assim, por ser idoso, saturava a 91/90% chegava até 89%. Então, assim, a geriatra falou e como ele tava ficando a menos de 90%, ele estava um pouco dispneico, ela falou que seria bom ele ficar no oxigênio. Se eles não acharam que não era grave para internar, uma opção seria alugar um oxigênio. Já que ele não tem plano de saúde, no SUS às vezes internam mesmo só as pessoas mais graves, faltam leitos. Eu tentei até por meio de pessoas que eu conheço saber se alguém trabalhava em hospital que tinha leito de enfermaria. Não precisava de CTI, mas ele precisava ficar alguns dias na enfermaria, no oxigênio, para se recuperar. Porque ele ficou um pouco dispneico, apesar de não ter ficado necessitando de uma entubação. Aí depois que a gente alugou, ele ficou mais quietinho, dormiu melhor com o oxigênio, comeu melhor. Começou a interagir melhor. Dois, três dias já era uma outra pessoa. Precisava mesmo (MFC Talita).

Teve um óbito na minha família. Realmente foi muito triste, porque ele morreu e ninguém foi no enterro. Caixão fechado. Muito triste assim, mas depois que meu tio foi a óbito, eu tive com a minha prima, até passei o final de semana com ela. Gosto muito dessa minha prima. Mas, assim, foi muito triste a situação e, naquele momento, tanto ela quanto a irmã dela queriam passar essa angústia para os outros, sabe? “Ah, Talita, você não conhece alguém que trabalhe no tal hospital para ter notícias do meu pai”. Elas estavam totalmente desesperadas (MFC Talita).

Uma outra MFC frisou o impacto psicológico do isolamento, mencionou o isolamento da família e a preocupação com membros vulneráveis, como Iaiá, a babá idosa e diabética. Destacou a importância da vacinação como medida de grande impacto para proteger a família e prevenir casos graves.

Meu marido, Bruno, teve Covid também. Iaiá, minha babá, também teve Covid. Ficamos todos nós isolados aqui em casa, mas ninguém teve quadro grave. Tinha potencial, Iaiá é idosa, é ex-tabagista, tem diabetes. Bruno é obeso, só tem um pulmão. O estrago seria grande, mas, graças à vacina, todos foram vacinados com todas as doses possíveis. Acho que, graças à vacina, não teve nenhum problema maior (MFC Clara Antunes).

Uma enfermeira e uma MFC narram episódios de adoecimento dos familiares.

Olha, eu vou te contar que meu pai, meu pai não chegou a internar, não fez síndrome respiratória aguda grave, mas ele chegou a dessaturar bem, assim, saturar a nível de precisar internar, mas ele não me contou. Ele mentiu para mim: eu perguntava “tá tudo bem? a saturação está boa?” E ele não quis me contar com medo de eu levar para o hospital e internar. Ele só me contou isso meses depois, quando ele teve. Eu tive em abril, e ele em maio do ano passado [2020]. Então, ele não… ele não me contou que tinha ficado mal. Tava com falta de ar. E aí tá bem… sem kit covid, só com dipirona tá ótimo (MFC Caroline Oka).

Porque na Páscoa, foi na Páscoa anterior, foi na Páscoa do Covid mesmo, minha avó estava internada com diverticulite, só que ela também acabou pegando o Covid. Aí acabou não resistindo (ENF Bruna Campos).

Uma enfermeira da zona norte da cidade, descreveu a ansiedade de esperar notícias da mãe internada e o medo constante de perder sua mãe o que, infelizmente, se concretizou. Ela narra em detalhes o processo e a dor de perder sua mãe e a experiência de tornar-se adulta repentinamente com essa perda. Discutiu as dificuldades no atendimento médico durante a pandemia, desde a demora no atendimento até a falta de testes e tratamentos adequados. Mencionou a sua transformação pessoal ao lidar com a doença da mãe, sentindo-se obrigada a amadurecer rapidamente. E como a rede de apoio dentro da família, entre amigos e comunidade religiosa, foi crucial para enfrentar os momentos mais difíceis da pandemia covid-19.

Eu me lembro muito da minha mãe doente, e daquela situação desesperadora de todos os dias esperar um telefonema para alguém falar como ela estava. Ela ficou internada no Hospital Marcílio Dias, da Marinha, e todos os dias eles ligavam geralmente no horário entre 11 da manhã e 01 da tarde. Então, eu me lembro de quando ia chegando aquele horário perto de 11 da manhã, e chegava a hora do telefonema era um momento de muita ansiedade, então acho que a falta de ar piorava um pouco, o cansaço, o desespero piorava demais. E depois que a ligação acontecia, por mais que as notícias não fossem boas, e nunca eram boas. Dava um afago, dava uma relaxada, porque eu sabia que eu podia respirar um pouco até no outro dia acordar e tudo voltar, sabe. Eu acho que eu vivenciei muito mais a preocupação com o estado de saúde dela do que com meu próprio estado de saúde, porque de alguma forma eu sabia que eu ia ficar bem. Eu não sei, eu não tive esse medo de morrer, eu tinha muito mais medo de perder a minha mãe, e infelizmente acabei perdendo, do que medo de perder a minha própria vida. Temia pela vida da minha irmã também, que também ficou muito ruim, mas era um medo muito mais por eles do que por mim (ENF Débora).

O meu irmão ficou ruim mesmo três dias, depois ele não teve mais nada. Ele rapidamente se recuperou, minha irmã ficou bem doente. Eu internei minha mãe, lembro que num dia de sábado, e no domingo de manhã acordei com a minha irmã tossindo muito, aquela tosse, sabe, que parece que o pulmão vai sair pela boca. E eu já desesperada, botando roupa, vamos embora, vamos para a Emergência, vamos para a Emergência. E ela bem cansada. E foi atendida e tudo, mas aquela morosidade. Não sei se o médico não tava..., sabe, assim. Depois que me aprofundei no mestrado de estudar sobre questões raciais, a gente começa a entender determinadas atitudes. Então o cara falou pra ela, “ah, pode ser COVID, pode não ser.” Não disse muito sobre o Raio X, passou aquelas medicações que eram de praxe, não falou nada sobre a família, se tinha alguém doente, se não tinha, nada, foi uma coisa bem meia boca. E ela precisou no mesmo dia ser atendida em outro local, em uma outra unidade de saúde, aí sim ela foi atendida, examinada, testada, medicada, afastada do trabalho, enfim, e ainda assim foram dias bem difíceis pela frente porque ela... o mínimo de esforço, sabe, levantar da cama e ir para o sofá da sala, já passava mal. Minha irmã é obesa, hipertensa. Todo aquele potencial para agravar. Demorou bastante tempo, ela precisou realmente dos 14 dias para melhorar, e nesses 14 dias do adoecimento tanto meu quanto dela, porque ficamos afastadas ao mesmo tempo, foi também vivenciar o luto. Porque minha mãe faleceu na segunda semana, mais ou menos, eu lembro, eu hoje, na minha memória não consigo te precisar assim: quantos dias minha mãe ficou internada? Eu não sei, eu não consigo lembrar a data que ela internou. Eu só sei o dia que ela faleceu. Acredito que provavelmente entre 10 e 14 dias de internação. E com certeza vivenciar o luto foi a pior parte, porque os sintomas da COVID já não me incomodavam mais, o que eu estava vivendo dos meus sentimentos, meus irmãos também, era muito pior (ENF Débora).

A minha mãe internou no sábado, e no domingo de noite, ela ligou para a gente de um telefone lá que ela arrumou, para nos avisar que ela ia ser entubada. Foi a última vez que eu ouvi a voz dela. Ela estava com muito medo, sabe, você sentia na voz o medo, e eu, eu tentando: "não fica, fica tranquila, fica bem, porque é o procedimento padrão, a senhora sabe”. Minha mãe era profissional de saúde também. Ela era técnica de enfermagem. A senhora sabe como é que é, sabe que, que é assim mesmo. Vai ficar tudo certo. Vai ficar tudo bem. A gente está rezando, a gente vai cuidar de você, eles vão cuidar de você. E eu te amo. E foi a última vez que eu falei com ela (ENF Débora). 

E a COVID é tão cruel que ela te tira da presença da pessoa muito antes da morte. Então você. Você já está há muitos dias com saudade, há muitos dias longe. E não tem nada que se possa fazer. Por mais que eu tivesse pessoas que conheciam o hospital, que tinham alguma influência. Ninguém iria me colocar dentro daquele CTI, e ainda que tivesse me colocado lá não faria a menor diferença. Não ia mudar o curso natural das coisas. E, nesse dia, eu falo para todo mundo: o dia que eu me tornei adulta foi esse dia, porque eu acho que todo mundo que ainda tem mãe é um pouco criança, se permite ser um pouco criança, que mãe resolve tudo: que mãe quando você está doente ela te dá um remédio, se faz besteira ela te dá uma bronca, se você quer comer uma comida que você gosta, mãe vai lá e faz um pouco, você faz um dengo, mãe te dá um aconchego. Quando você perde, quando você recebe a notícia que você perdeu, é muito duro, é como se você fosse um bebê e do nada você se visse adulto. O chão parece que se abre e você fica sem rumo, você fica “o que que eu faço? O que eu faço?” Por mais que você saiba que você já tenha dado o rumo da sua vida, que você já tenha feito tudo, tudo se perde, você não consegue enxergar um palmo na frente do nariz. E aí meu pai estava lá, amparou a mim, a minha irmã e ao meu irmão (ENF Débora).

Uma ACS fala sobre a dificuldade de ter parentes hospitalizados e o isolamento, como no caso do pai e da irmã, que foram afetados pela COVID-19, e a irmã ainda com tuberculose. Além disso, compartilhou de perdas múltiplas de familiares e amigos durante a pandemia, exacerbando o sofrimento. Mencionou a restrição de pessoas nos funerais e os caixões lacrados, ressaltando o impacto da pandemia nos rituais de despedida. Também destacou a luta para encontrar leitos hospitalares ou cuidados adequados para parentes com sintomas graves, muitas vezes tendo que recorrer a contatos pessoais para tentar garantir o atendimento.

E foi bem complicado. Ele [pai] hipertenso, diabético, começou a passar mal. Fomos ao atendimento na UPA, ele tava com pneumonia. Então, aí descompensou o diabetes, descompensou a pressão. E aí ainda ficou 10 dias hospitalizado. Mas, infelizmente, veio a óbito. Ficou entubado, mas veio a óbito. A gente perdeu muita gente, muitos vizinhos, muitos parentes. [...] Ele já tinha tomado duas doses. Ele tava na semana de tomar a terceira dose, quando ele veio a falecer. [...] Nossa, foi muito ruim. Porque a gente sabe que acontece com todo mundo. Mas a gente tinha esperança de que ele conseguisse sair dessa. Mas a gente sabia que era complicado por conta das outras comorbidades, como a diabetes, a hipertensão. E, também, tava com pneumonia. Então, a gente já sabia que era uma coisa... Quando o médico ligou e disse que ele tava entubado, a gente já sabia que era uma coisa muito séria. Então, também, quando ele faleceu, não foi naquele boom que teve, onde as pessoas tinham que escolher quem sobreviveria ou não. Quando ele veio a falecer, o hospital já não tava tão abarrotado como estava antes. Então, acho que isso me acalentou um pouco. Talvez se ele tivesse partido naquela época, eu talvez não teria essa consciência que eu tenho hoje. Talvez eu tivesse não aceitado tão bem assim. Mas é complicado (ACS Raquel).

Depois que ele internou, a gente só tinha contato com assistente social. Até o enterro dele também, só puderam ir cinco pessoas, caixão lacrado, essas coisas todas, mesma coisa. Só que tava um pouco menos caótico de como tava no começo, em 2020. Minha irmã tava com tuberculose e também com Covid. Então eu tava com meu pai hospitalizado e minha irmã também. Então foi muito difícil pra mim. Foi complicado (ACS Raquel).

Na verdade, ela foi hospitalizada, a gente acha, por conta da tuberculose. E aí lá, quando eles fazem teste, ela tava positiva. Mas ela ficou quatro dias hospitalizada e veio embora. Não foi tão grave assim. Acho que mais por conta da tuberculose, nem tanto por conta da Covid. Mas ela se recuperou, mas foi bem difícil (ACS Raquel).

Outra ACS também compartilhou sobre perdas múltiplas de familiares, amigos e colegas de trabalho por conta da covid-19, exacerbando o sofrimento desse período histórico. 

Então, eu tive sim, eu tive duas perdas na minha família, que foi o meu primo e logo em seguida foi o meu tio, e eles foram muito no início da pandemia. Tanto é que os exames deles, depois de um tempo que foi feito, já em cadáver, para poder verificar se tinha resíduos do COVID-19 e tinha. Então, eu tive pessoas muito próximas de mim, amigos que eu também perdi na pandemia, amigos de trabalho, não desta Unidade, mas eu tive amigos de trabalho do qual eu também perdi, e pessoas do trabalho aqui que ficaram no tempo da pandemia afastadas (ACS Daiane).

Isso foi antes da vacina, tanto o meu tio quanto o meu primo, eles foram antes de ter a liberação da vacina, a gente só tinha só o início, as pessoas falando que teria uma vacina, que a vacina ia ser liberada, mas até então eles infelizmente não chegaram a ter um contato, a ter acesso à vacina. Já outras pessoas que estavam no trabalho, já foi já no período já em que a vacina estava sendo já aplicada, principalmente em profissionais de saúde, a gente teve que tomar logo no início para que a gente pudesse também trabalhar, por segurança. Mas foi muito difícil (ACS Daiane).

Uma outra ACS discutiu sobre os cuidados médicos e de saúde, principalmente no que tange ao acesso e qualidade: as dificuldades no atendimento médico durante a pandemia, desde a demora até a falta de testes diagnósticos e tratamentos específicos. 

Minha mãe teve bem no comecinho, bem no comecinho ela teve, aí quando ela teve, eu lembro que não tinha ainda nem teste. Ainda não tinha chegado o teste, mas as médicas, pelos sintomas, orientaram o que era e pediu para fazer o isolamento, passou a medicação, que era ibuprofeno, direitinho, e pediu para isolar tudo direitinho, ficando em casa, todo mundo em casa, direitinho, mas não tinha teste aí nessa época não, nem vacina ainda (ACS Karen Caroline).

Ela ficou bem malzinha em relação a eu quando eu tive. Ela ficou bem mal, ela ficou bem prostrada, muita dor no peito, aí eu falava para ela sentar e pegar sol, porque eu lembro que alguém falava que tinha que pegar um pouquinho de sol. Eu falava, “pega um pouquinho de sol na varanda, fica sentada e tal”, mas o que mais marcou é porque, assim, para a gente não foi nem ela estar com o Covid, porque um vizinho da frente, que a gente mora na vila, pegou e ele era bem jovem, assim, não tinha nada. E aí ele pegou e, de repente, quando ela estava com o Covid, a gente recebeu a notícia que ele tinha falecido, porque teve complicação, sei lá o quê. Na pandemia, acho que o que mais pegou a gente foram as perdas de pessoas próximas. A gente não perdeu nenhum familiar nosso, mas conhecidos. E aí isso mexeu com ela, ela ficou muito nervosa. Minha mãe ficou muito nervosa (ACS Karen Caroline).

As narrativas dos profissionais de saúde da APS carioca mostram como a pandemia de COVID-19 foi uma experiência devastadora para muitos, não apenas em termos de saúde física, mas também emocional. As histórias revelam o medo e a ansiedade constantes, o processo doloroso de luto, os desafios em obter cuidados médicos e a resiliência necessária para enfrentar uma crise de saúde sem precedentes. As experiências variam, mas a interconexão de sofrimento, adaptação e busca por suporte é um tema comum, ilustrando a profundidade do impacto da pandemia na vida e na família dos profissionais.