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A pandemia Covid-19 foi um momento em que por razões diversas, indivíduos de diferentes classes sociais recorreram ao SUS para suporte. Seja no momento da testagem, na avaliação de emergência – e uma possível internação – até o momento da campanha de imunização. Esta, inclusive, foi comandada pelo Ministério da Saúde e as secretarias municipais, com distribuição dos imunizantes exclusivamente pela rede pública de saúde. Os profissionais de saúde trazem observações coletadas ao longo de todo o período de trabalho.
Especialmente, durante a campanha de vacinação, os profissionais alocados nos postos, tanto nas unidades quanto externos a elas, experimentaram uma variedade de comportamentos. Relatos de situações em que pessoas tentavam usar suas posições sociais ou cargos para receber tratamento preferencial foram frequentes. Casos de "carteirada", em que indivíduos se identificavam como juízes, bombeiros ou figuras públicas, foram comuns. Essas atitudes muitas vezes geravam tensões com os profissionais de saúde responsáveis pela triagem, esta necessária por conta dos critérios estabelecidos pela SMS-RJ para receber o imunizante.
Houve uma grande diversidade de perfis de usuários, desde aqueles que chegavam sozinhos até famílias inteiras que transformavam a sua vacinação em um evento coletivo. Esse fenômeno reflete tanto a importância atribuída à vacinação quanto a necessidade de acompanhamento social e emocional durante o processo. Um MFC da AP 4.0 recorda o momento de atuação em ponto de vacinação na zona oeste do Rio de Janeiro.
"Ali é ponto nevrálgico, onde acontece a triagem dos carros que acontece de tudo... gente que chegou com carteirada, dá carteirada e fala “eu vou entrar, porque eu sou juiz”, “porque eu sou bombeiro”, “que eu sou mais o que”, “O senhor está me impedindo de tomar a vacina, é isso?” [...] Outra coisa que eu percebo, tem gente que vem sozinho, tem gente que vem de táxi, tem gente que vem com o cachorro, tem gente que vem com a família inteira e o carro cheio de gente para um vacinar, se tornou um evento para família. É uma coisa interessante, e não é um número pequeno, acontece isso com frequência. Tem os artistas que vão, tem as autoridades que vão, e vão ser vacinadas. Aí só tem uma reação do público de nós servidores que estão ali servindo tem uma reação e varia de acordo. O Crivella teve lá na terça-feira agora que eu fui, a reação eu não vi, porque estava em outro posto, mas a reação em relação à presença dele foi uma, com o Djavan que eu tava na outra semana, foi outra" (MFC Luiz Zanini).
Ilustrando o princípio da universalização do Sistema Único de Saúde do Brasil, um enfermeiro da AP 2.2 descreve características da população atendida pela sua unidade, na zona norte do Rio de Janeiro.
"Tem muita classe média sim. Mas até que eu tenho outro lado também: eu tenho, por um lado, muita classe média que perdeu o emprego e está buscando os serviços do sistema único, e também tenho população vulnerável também da equipe da Bandeira. Eu pego a área da Vila Mimosa, eu tenho um abrigo de mulheres em situação de rua, entendeu? Eu tenho duas residências terapêuticas, onze abrigos de idosos. Alguns desses abrigos são até de rede particular, mas cerca de metade deles não" (ENF Leônidas).
Importante o registro de que em muitos momentos conflitos foram gerados com os profissionais de saúde da linha de frente. Enquanto a população vulnerável geralmente aceitava as orientações e os recursos disponíveis no SUS, a classe média e alta frequentemente exigia acolhimentos específicos ou recusava certos protocolos, criando uma tensão adicional para os profissionais de saúde.
"Eu acho que as pessoas que têm um poder aquisitivo maior, elas acham que elas podem tudo. Chega lá, "sabe quem eu sou?" Já começa a querer se impor. "Ah, eu vou ligar pro Secretário, eu vou ligar", entendeu? Então, é mais, eu acho que é sobre o poder aquisitivo, de chegar lá, "ó, você sabe quem eu sou?" "Eu quero tomar tal vacina, entendeu?" Então, já teve algumas pessoas que chamaram a polícia, porque falavam que [os profissionais] não queriam dar a vacina e, às vezes, nem tinha vacina lá, entendeu? Então, eu acho que foi isso, porque, assim, na Rocinha, eu não vi nenhum caso da pessoa querer ou escolher ou querer arrumar algum tipo de briga por conta de não ter aquela vacina que ela quer tomar [...] acho que é por conta do poder aquisitivo. Ali no Jóquei, ali iam moradores de outros lugares, de Leblon, Ipanema, entendeu? Tanto que eles iam de posto em posto, “ah, eu tô vindo do Catete, lá me falaram que aqui tem a tal vacina”, entendeu? Eles já chegavam assim" (ACS Letícia).
Os entrevistados destacaram que a pandemia levou muitas pessoas de classe média, que haviam perdido o emprego, a recorrerem ao SUS pela primeira vez. Além disso, a eficiência do atendimento no SUS atraiu usuários de áreas mais abastadas, que encontraram nos serviços públicos uma resposta rápida, especialmente para testes diagnósticos de Covid-19.
Esses novos usuários frequentemente chegavam com expectativas e exigências diferentes, baseadas em suas experiências com o setor privado, como a preferência por determinados testes (PCR sobre testes rápidos) e uma demanda por atendimento rápido e especializado, o que gerou conflitos e desafios para os profissionais de saúde acostumados a um sistema de triagem e encaminhamento mais criterioso.
Uma enfermeira da AP 2.2 se recorda de situações importantes de conflito durante a assistência a partir de uma postura de exigência de indivíduos economicamente mais favorecidos.
"E da briga também, “porque eu quero a medicação”. “Por que não tem?” “Porque vocês não prestam!” “Vocês não sabem nada!” “Porque eu fui no particular, eu fui no outro lugar e consegui” “Aqui vocês não querem passar”. Isso foi demais. Nosso território é um território misto, onde a gente tem uma comunidade vulnerável e uma outra parte que não é, tem plano de saúde, tem condições, mas eles acessaram muito. Teve muita gente que tinha plano, condições e acessou nossa rede pela primeira vez. Foram muitos que chegaram lá “não, estou acessando pela primeira vez”. Quando a gente abria o prontuário, a gente via, nunca tinha ido tomar uma vacina na unidade. Nada. Prontuário zerado" (ENF Maria Aparecida).
"Por conta do exame que saía mais rápido do que na rede particular, muitos deles diziam isso. Porque também diziam que o nosso atendimento, que o nosso fluxo, que ele estava tão bem organizado, que mesmo tendo muitas pessoas, não demorava tanto como eles estavam demorando na unidade hospitalar onde eles estavam procurando no território. E aí eles estavam procurando lá. Isso foi a informação e acaba que a informação acaba sendo disseminada. E aí eles acabavam indo na Unidade. “Vai lá que o atendimento é rápido” (ENF Maria Aparecida).
A mesma enfermeira relatou que a procura por testes rápidos e vacinas colocou uma pressão significativa sobre as unidades de saúde, especialmente quando os usuários insistiam em testes específicos fora do período ideal para sua realização. Isso criou um desafio logístico e de comunicação para assegurar que os pacientes recebessem o atendimento adequado enquanto gerenciavam suas expectativas.
Apesar dos desafios, muitos usuários encontraram no SUS uma alternativa eficiente ao setor privado, principalmente devido ao rápido tempo de resposta para exames e a organização dos fluxos de atendimento, que muitas vezes eram melhores que os do setor privado durante a pandemia.
"Todos testavam. Todos queriam. Muitos queriam o teste, por exemplo, muitos queriam fazer o PCR, mas já tinham passado dos dias de sintomas, aí fariam o teste rápido, e isso às vezes gerava um conflito. Aquela situação “eu quero tal teste” também aconteceu muito isso. “Eu só quero...” “não quero teste rápido”. “Eu quero o PCR”. “Mas senhor não tá no período”, “o senhor já passou dois dias de sintomas, e o senhor hoje só é possível esse teste” também teve muito dessa situação. Mas foi muito procurada a Unidade, muito"
"Eram das pessoas mais afortunadas, com condições. As outras classes elas chegavam e, assim, já chegavam nas condições muitas das vezes, numa situação já bem avançada da doença, que já chegavam para o atendimento e acatavam o que a gente estava falando. Às vezes a gente tinha situações com esta classe que a gente queria pedir ambulância, mandar ele de ambulância, a pessoa tinha medo e não queria que a pessoa saísse de ambulância, porque tinha medo do seu parente não voltar. Às vezes tinha esse tipo de discussão. “Não, porque se for para o hospital não vai voltar.” “Eu não quero que saia”. “Eu não quero que vá para uma área hospitalar” Isso aconteceu muito também, mas isso a gente via mais nas classes desfavorecidas, você não via isso na classe economicamente mais estável. Nessa classe, a briga maior era pelas medicações, o protocolo, o exame. Eu quero isso, quero aquilo. Isso sempre foi bem nítido" (ENF Maria Aparecida).
Outros profissionais observaram que usuários acostumados ao sistema privado traziam consigo preconceitos sobre o atendimento no SUS. A relutância em ser atendido por enfermeiros em vez de médicos e a expectativa de um atendimento similar ao privado resultaram em frustrações e conflitos, especialmente quando suas demandas específicas não podiam ser atendidas devido aos protocolos ou recursos disponíveis no SUS.
“E essas pessoas que tiveram plano particular, não são todas, mas uma parcela tem muito preconceito de ser atendido geralmente por enfermeiro. Então já é uma barreira” (ENF Bruna Campos).
"Não somente a minha equipe, mas principalmente as outras equipes que têm mais só asfalto, não tem comunidade, a gente sentiu muito esse aumento das pessoas que eram do particular e foram para o SUS. E essas pessoas geralmente foram muito demandantes, eram muito especialistas, coisa que a gente não trabalha dessa forma, a gente encaminha quando precisa. Então, essa população foi um pouco difícil de lidar" (ENF Bruna Campos).
Os profissionais de saúde tiveram que lidar com situações complexas, como a chegada de pacientes de áreas mais privilegiadas buscando vacinas ou testes específicos, e a recusa de encaminhamento hospitalar por parte de famílias com medo de internação, especialmente em classes menos favorecidas, destacando a necessidade de habilidades de comunicação e gestão de conflitos.
A pandemia de Covid-19 ressaltou as complexidades e desafios de gerenciar um sistema de saúde público em tempos de crise. A integração de novas práticas e tecnologias, a adaptação das infraestruturas e protocolos, e a capacitação dos profissionais de saúde são essenciais para melhorar a resposta a futuras emergências e garantir um atendimento de qualidade para todos os usuários.