Processos de trabalho da APS na pandemia

Temas: APS

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O processo de trabalho em saúde é entendido como um conjunto de ações coordenadas, desenvolvidas pelos trabalhadores, em que indivíduos, famílias e grupos sociais compõem o objeto de trabalho, e os saberes e métodos representam os instrumentos que originam a atenção em saúde.

Um dos grandes desafios que a pandemia Covid-19 impôs aos profissionais de saúde da APS do Rio de Janeiro foi quanto à organização dos seus processos de trabalho. Desde a organização física das unidades, com separação de salas e espaços para atendimento e posterior testagem, até quais e como os profissionais realizariam esses atendimentos. Como equilibrar a oferta dos demais serviços como aplicação de medicamentos, curativos, vacinação de rotina e atendimentos médicos e de enfermagem dos grupos prioritários a um novo cenário de distanciamento e potencial contaminação.

Os profissionais descrevem suas experiências em áreas programáticas diferentes da cidade e de pontos de vista distintos. Uma ACS da AP 2.1 narra como foi em sua unidade, em que um corredor foi destinado exclusivamente para pacientes assintomáticos, e a triagem inicial era realizada fora das instalações principais da clínica para minimizar o risco de contaminação cruzada. Profissionais ficavam paramentados desde o lado de fora, usando aventais e máscaras, enquanto registravam dados dos pacientes. A área interna tinha um espaço isolado dedicado exclusivamente para a realização de testes de Covid-19. Essa abordagem ajudou a separar os pacientes com sintomas respiratórios daqueles que procuravam atendimento para outras condições de saúde, contribuindo para um manejo mais seguro e eficiente.

"Teve um corredor que era só para o pessoal que estava assintomático, e a gente, como a clínica é bem grande, do lado de fora a gente já fazia aquela triagem, já ficava lá com a prancheta, anotando os dados, e já com avental, já com máscara, desde o lado de fora, na parte de dentro, a gente sempre teve material disponível. Tinha uma área isolada só para fazer esses testes. A gente fazia muita sala de espera para os pacientes que estavam aguardando atendimento normal [...] Isso eu acho que também foi muito importante, entendeu?" (ACS Leticia).

 

Um enfermeiro que atua como responsável técnico em uma unidade na AP 2.2 relata a intensificação das atividades de testagem com o aumento de casos sintomáticos. A rotina de trabalho se concentrou quase exclusivamente em realizar testes de Covid-19, com equipes revezando constantemente para manter o fluxo. A logística de manter as equipes equipadas e treinadas, elaborar escalas, bem como garantir a disponibilidade constante de materiais, exigiu um esforço considerável e foi descrita como extenuante. 

"Quando a gente começou a receber mais pacientes sintomáticos, com sintomas e fazendo mais testes, a quantidade de teste começou a aumentar, então a gente só ficava fazendo aquilo ali: teste, teste, teste. Todo paramentado, revezava entre os enfermeiros na escala, porque eu sou enfermeiro, RT também, eu sou responsável técnico, então também sou responsável por fazer as escalas do pessoal, ver questão de treinamento, material, tudo, montar sala. Então, essa época para mim foi a mais extenuante" (ENF Leônidas).

 

Uma das características marcantes da APS é a presença no território, sendo a visita domiciliar uma ferramenta importantíssima no cuidado da população. As restrições colocadas pelos protocolos sanitários vigentes à época determinaram a interrupção das visitas domiciliares. Foi necessário repensar a atuação principalmente dos agentes comunitários de saúde e como realizar abordagem comunitária. Outro ponto foi a suspensão das atividades coletivas, dos grupos de saúde, por conta do risco de contaminação. Uma MFC que atua como preceptora do PRFMC na AP 2.2 observa que a pandemia limitou significativamente as atividades de abordagem comunitária, uma prática fundamental na promoção da saúde e prevenção de doenças. Essa limitação representou uma fragilidade na formação dos residentes, que perderam a oportunidade de desenvolver habilidades práticas em um contexto comunitário. 

"A gente já chegou com a negação de ir para a rua, a gente não podia ir para a rua naquele primeiro momento. Então, ficamos dentro da Unidade, dando todo o suporte para as pessoas que chegavam contaminadas. A gente dava o suporte na vacina, a gente dava o suporte na imunização, porque tinha um setor isolado onde eles chegavam para poder fazer essa triagem, então a gente dava todo esse suporte. As pessoas não queriam um profissional da saúde dentro da sua casa. Então, as pessoas já não abriam a porta pra gente. Então, foi onde todas as Unidades, elas recolheram os profissionais" (ACS Daiane).

 

"Uma coisa que é superimportante que ficou de lado na pandemia, que é a comunidade, a gente teve muito mais dificuldades de fazer abordagem comunitária. Eu percebo que isso acabou sendo uma fragilidade dos nossos residentes, da formação agora" (MFC Julia Horita).

 

As mudanças nos processos de trabalho das unidades acompanharam as fases da pandemia Covid-19, sendo necessárias adaptações conforme o momento epidemiológico. O impacto dessa nova conformação e dos tipos de atendimentos junto aos profissionais foi de tal grandeza que gerou sentimentos intensos e até mesmo tomadas de decisão como o desligamento do serviço. A rotatividade de pessoal destacou a necessidade de estratégias de suporte e retenção de profissionais em momentos de crise, essenciais para garantir a resiliência e a eficácia dos serviços de saúde.

"Quando começou... a gente teve muitas demissões nesse período, várias pessoas saíram para trabalhar em outros lugares. Muitas enfermeiras saíram também. Teve um mês específico lá no Salles [CMS Salles Neto] que, se não me engano, a gente teve, tipo assim, quatro enfermeiras pediram demissão ao mesmo tempo" (MFC Átila).

 

A necessidade de bloquear novamente a continuidade do cuidado para focar na resposta imediata à Covid-19 comprometeu o atendimento a outras condições de saúde, causando frustração entre os profissionais e uma sensação de retrocesso. 

"Em 2020, a gente não tinha a questão da vacina. A gente tinha um número que dava para suportar dois profissionais atendendo [...] mas na época da Ômicron, em 2022, que a gente tinha pessoas até já com reforço da vacinação, nós tivemos um número muito grande de casos novos e de positivos. Então, assim, foi meio que assustador nesse sentido: cara tem que mudar todo o fluxo de novo e eu acho que tava todo mundo já cansado, dois anos na mesma coisa, aí a gente falando a mesma coisa, e parecia que não tinha uma conscientização da população, o que leva mais ainda ao desgaste dos profissionais que estão ali. [...] E a gente teve mais uma vez que bloquear essa continuidade do cuidado, que a gente tem muito presente na Estratégia, bloquear novamente os atendimentos, restringir, realmente saber o que que é prioridade e o que não é naquele momento" (ENF Bruna Saldanha).

 

A despeito do contexto de pandemia e toda a reorganização do serviço necessária ao momento histórico, cobranças de níveis superiores da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro a respeito da produção dos profissionais foram relatadas.

"Hoje, a gente recebeu uma visita dos apoiadores da CAP sobre a produção da enfermagem. Porque a produção médica, a gente se divide entre o atendimento covid e atendimento não-covid. Tudo isso é atendimento, tudo isso gera número, gera produção. A vacinação como não é lançada em prontuário, ela não vira produção, não vira número. Então, hoje a gente recebeu a visita, a enfermagem caiu muito nesse período, porque é isso, elas estão fora do consultório, porque estão vacinando. Então, consulta de enfermagem aconteceu muito pouco. Elas ficam sobrecarregadas, sobrecarregam a gente. É pesado assim. Três coisas acontecendo ao mesmo tempo: a vida normal, a Covid e a vacina" (MFC Átila).