Religiosidade e espiritualidade

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Em pacientes graves, como os que farão o transplante cardíaco, a religiosidade frequentemente se torna uma fonte importante de apoio emocional e espiritual. Muitos pacientes recorrem à fé para encontrar forças nos momentos de desamparo, para aceitar as incertezas do processo e para manter a esperança diante do desconhecido. Assim, a confiança em Deus se mostra como um importante sustento no caminho até o transplante. A fé se soma ao tratamento médico, muitas vezes fortalecendo o paciente para enfrentar os desafios antes e depois da cirurgia.

Para alguns, o transplante aparece como um presente de Deus, uma dádiva. É um presente, gerando a sensação de gratidão a Deus, tanto pela realização do transplante quanto por não morrer ao fazer.

"Eu sou muito grata, primeiramente a Deus, né, e segundo a essa família, porque se eu tivesse contato com a família... Eu sei que a gente não pode, né?"

 

"É um transplante e a gente agradece muito a Deus. Um transplante é uma dádiva. É uma graça que poucos tem. Porque a gente sabe que muitos morrem antes de fazer. Então se eu tive essa oportunidade, eu tenho muito que agradecer a Deus, porque realmente, na íntegra, é uma segunda chance de vida."

 

Com simplicidade, Cícero resume seu reconhecimento da melhora clínica como expressão direta da ação divina:

"Da vista que tava, tá boa agora. É só agradecer a Deus o que ele fez, né?"

 

Para Andressa, a decisão de seguir com o transplante foi acompanhada por orações intensas. Mesmo já decidida, ela busca na fé a confirmação e o consolo. Deus aparece como aquele que sustenta a fragilidade emocional, não só dela como de sua mãe, diante do sofrimento:

"Foi, cheguei aos 38 quilos. Aí ele fez: 'Dá para você fazer o transplante, vamos correr.' Aí foi quando ele fez assim: 'Eu vou perguntar mais uma vez: você quer fazer o transplante?' 'Se eu decidi?', eu disse. Ele disse: 'faça o seguinte, me dê a resposta amanhã'. Aí eu: 'Tá certo'. Aí eu pedi muito que Deus mandasse uma resposta, mas eu já tinha tomado minha decisão, né? Eu só pedi a Deus que alguém chegasse para segurar minha mãe, que ela não ia aguentar não.' [...] 'Eu disse à minha mãe que o que Deus te der ela aceite, que eu já cansei. Eu não tenho mais força para continuar não, Dr. Rodrigo, Dr. André. Eu já peço muito a Deus que bote um fim nisso."

 

Há quem encare a situação com aceitação da possibilidade de morte, trazendo uma fé serena e que não clama por intervenções divinas. Sua espiritualidade é madura e ativa, e a confiança em Deus é o que estrutura sua postura diante da possibilidade de morrer.

"Doutor, eu sou muito apegado a Deus e eu sei que a gente não veio aqui pra virar pedra. Eu já tinha preparado meus filhos, conversado com eles, com minha esposa, 'olhe não se preocupe, não quero muito chororô, as coisas são assim, sigam a carreira de vocês', que tudo, eu tinha muita confiança em Deus, sempre tive e nunca me desesperei e nunca reclamei. Só pedi a Deus paciência, nunca reclamei. Sabia, nesse dia mesmo, eu sabia que eu ia, embora, mas, mesmo assim sabendo, entregava a Deus."

 

De forma firme, Duarte reforça a continuidade de sua fé ao longo da vida, explicando que a experiência do transplante não gerou um rompimento ou uma conversão, mas sim uma intensificação do que já era vivido:

 

"[Entrevistador: E o senhor mencionou que é católico, e pelo visto muito ligado à religião?]

Duarte: Sou católico. Sim, sim.

[Entrevistador: O senhor acha que a doença modificou de alguma forma sua relação com Deus? Com a religião?]

Duarte: Não. Porque toda a vida eu tive essa fé. Toda vida eu tive essa fé em Deus, né? A religião em toda vida eu tenho fé em Deus. Não, não. Acredito que cresceu um pouco mais, né? Deu, cresceu mais, mas toda a vida fui um homem de fé. Sempre tive fé em Deus, acreditei que Deus pode fazer tudo na vida da gente."

 

A religião aparece como uma força vital para o enfrentamento da doença em um momento tão delicado. Erianderson destaca que a espiritualidade não apenas o fortalece, mas também funciona como estímulo emocional em meio à fragilidade de quem está diante da necessidade de um transplante:

"Rapaz, a religião, eu sou católico. Pra mim é importante. A gente seguir alguma coisa, uma religião. Evangélica ou uma católica, ninguém, né? Eu sigo as minhas. Eu gosto. [...]

[Entrevistador: E você acha que isso foi importante para você?]

Com certeza, com certeza. Porque ali tá levantando o astral da pessoa que tá ali triste, né? Doente, dependendo de uma coisa que é... Nada pra Deus é difícil, mas a gente ser humano sempre... A gente às vezes tem um negativo. Sempre diz, né? Mas eu sempre botei Deus em tudo na minha vida. Sempre coloquei na mão dele, sempre deixo Deus resolver."

 

Gilson, por sua vez, relata experiências místicas, como a presença de anjos vestidos de médico. Para ele, a doença foi parte de uma provação feita por Deus, que havia decidido testar sua fé. Assim, a internação torna-se campo de teste da sua crença:

"Eu disse amém que Deus me ajudou e muito, foi pouco não. É por isso que eu digo, até hoje eu creio nele, confio nele, estou na casa dele. [...] Aí Deus foi maravilhoso demais. Aí conversou comigo, disse que eu ia passar por muitas provações, que ele queria ver a minha fé que eu tinha nele. Aí pronto. Hoje em dia estou aqui por honra e glória dele. [...] Você acredita que um dia de domingo eu vi dois anjos vestidos de médico mesmo com aquela roupa que a turma trabalha na sala de transplante, aquela tudo com máscara, com as roupas verde, tudo direitinho e o acompanhante assim dormindo."

 

Em sua história, Jeová compartilha uma cena profundamente simbólica na qual, diante da Bíblia, entrega sua vida nas mãos de Deus. Ele compreende a equipe médica como instrumentos da vontade divina e se compromete a mudar de vida, assumindo um papel ativo na sua própria transformação espiritual:

"A mãe da Dra., eu não sei se a doutora é evangélica também, mas ela era evangélica, a mãe dela. E a mãe dela era médica também de transplante e estava fazendo, não sei, parece que era 105 anos. Então ela, era uma data histórica e estava encerrando ali a carreira dela comigo. Então ela pegou a Bíblia deste tamanho aqui e força. Força o quê para segurar? Caiu no chão, ela pegou. 'Olha, não foi porque eu quis não, doutora, que eu amo a palavra é porque eu não tenho força para segurar.' Ela botou nas minhas pernas, ajeitou a Bíblia, aí foi quando ela disse: 'Deus dá uma palavra'. Aí eu mandei ela abrir e eu abri lá no Salmo 37, o versículo quatro e cinco, que diz assim: 'Deleite-te pois no Senhor e ele satisfará o desejo do teu coração. Entrega o teu caminho ao Senhor e confia nele e mais ele fará. Então eu deixei esse versículo da palavra de Deus para o médico e a equipe de enfermagem. […] Aí eu fiz a oração pedindo que Deus me capacitasse, os médicos, né? E sabedoria e que eles não fizesse por amor ao dinheiro ou trabalho, mas fizesse pelo amor ao próximo. E eu disse, 'Deus, eu entrego em tuas mãos. A partir se eu já era, se eu já vivia nas tuas mão, hoje eu quero estar mais para fazer a tua vontade. Se for a tua vontade que eu saia daqui com vida, eu vou ser outra pessoa. Vou esquecer o velho homem. Vou ser a nova pessoa."

 

Já Jorge, ao rezar com sua filha pequena para Nossa Senhora da Conceição, mostra a religiosidade no cotidiano familiar e constrói uma promessa partilhada, que envolve fé, esperança e vínculo:

"Eu tenho muita, eu tenho muita fé em Nossa Senhora da Conceição, né? Primeiramente Deus. Eu respeito cada religião, sabe, crente, evangélico, católico. Aí eu botei ela no colo, assim, comecei a orar, aí disse: 'Vá repetindo as palavras de papai. O que eu falar você fala.'. Minha filha tinha seis anos. 'Se, se a senhora me salvar, através de Deus, aparecer um coração, papai ficar bom, vai subir eu e papai pra pagar a promessa, de azul e branco...' Eu orando, olhando pro céu, pra Nossa Senhora da Conceição, e ela repetindo. No meu colo."

 

Para alguns, a fé aparece acima do saber médico, sem desvalorizar a medicina, mas reforçando a hierarquia espiritual. José Antônio explica que o conhecimento médico é uma ferramenta dada por Deus, mas não substitui sua soberania:

"'Ele é ateu', perguntou: 'quem que operou tu?' Eu disse: 'foi Deus que operou, através de Dr. Fernando Moraes', aí ele fez assim: 'e o médico faz nada não, é?' Sim, o médico estudou, estudou, entendeu, mas Deus que deu sabedoria a ele, mas o médico não pode ser mais que Deus, não sabia. Médico, olhe, tá abaixo de Deus, médico é bom, eu tenho excelentes médicos, só que abaixo de Deus, acima de Deus não."

 

Assim como há quem encare com serenidade, há quem apresente um verdadeiro embate entre o medo e a fé. Embora assustada com a possibilidade de uma nova internação, Maria do Carmo busca na fé a coragem para seguir.

"Eu tenho fé em Jesus que eu vou sair. Entendeu? Eu vejo muitas pessoas lá na hemodiálise que fez, pára, e volta, e vai fazer de novo. Mas como eu já fiz o transplante do coração, e sei o que eu passei, eu fico com receio em fazer. Medo. Mas eu falei ao senhor que essa palavra medo não existe mais no meu dicionário. Eu tenho que ter muita fé pra eu fazer, entendeu? Mas eu creio em Deus que eu vou sair.

[Entrevistador: E não vai precisar de transplante de rim?]

Eu creio, eu creio em Deus que não. Tem pessoas que volta ao normal."

 

Maria Josilene traz uma narrativa espiritualizada sobre o doador. Ao sentir sua presença após a alta, ela recorre à oração como forma de reconhecimento e gratidão. Sua religiosidade também se expressa no cuidado com a memória do outro:

"Ói, quando eu saí do internamento, quando eu ia para casa, que eu já tava melhorzinha, quando eu tava na cozinha assim de costa, aí eu sentia uma pessoa passar por trás de mim. Aí eu fazia assim. Aí eu fazia um arzinho de riso. Aí mais alguém passou aqui. E sempre passava. Quando foi uma vez, eu na frente de casa, conversando com a vizinha, eu disse: 'passou alguém aqui?' Aí ela fez: 'Não'. 'Passou, passou. Eu vi. Passou por trás da gente.' Aí depois eu disse: 'Eita, eu sei quem é. Foi o rapaz que doou o coração dele para mim.' Aí eu peguei, entrei. Aí eu fui rezar para ele, rezei Pai Nosso, rezei Ave Maria, acendi uma velinha. Aí eu disse: eu tenho fé em Deus de todo sábado ou sexta feira eu não esquecer de rezar o Pai Nosso para ele. Você acredita que nunca mais ele veio aparecer? [...] 'Eu senti, Doutor. Eu sentia mesmo. Eu sentia. Eu ficava assim. Eu não sei se era um rapaz moreninho, passava por trás de mim.' Eu fazia: meu Deus, o que será? Mas desse dia para cá, que eu me lembrei, nunca mais de reza a oração para ele, pronto. E agradecer a família, né? Porque não é toda família, né, que doa da família para outro, sem nem saber ninguém, sem conhecer."

 

Por fim, há quem veja na aceitação do transplante uma resposta à vontade divina. Para Mario Luiz, o livre arbítrio conversa com o plano de Deus, e o desejo de viver é também um movimento espiritual:

"É outra vida que Deus lhe dá. E, às vezes, Deus bate na porta da gente e a gente não quer aceitar porque a gente tem livre arbítrio pra escolher, quando a gente aceita, ele vai e faz a parte dele. A gente só faz se ele quiser. E se a gente quiser, também, porque se a gente não quiser ele não pode fazer nada. Chegou a hora de eu querer fazer o transplante e ele me ajudou. Primeiramente Deus e segundo minha neta.”