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A vida de uma pessoa após o transplante cardíaco não se limita à sobrevivência; ela envolve a reconstrução de um projeto de vida interrompido. Nessa reconstrução, o trabalho costuma ser muito importante, pois organiza a rotina, contribui economicamente para família e colabora para que a pessoa se sinta útil, e com um lugar social. Contudo, o que se observa nas falas de muitos pacientes é um caminho marcado por exclusão, insegurança e desamparo. A relação entre saúde, trabalho e seguridade social revela não apenas desigualdades estruturais, mas também como a falha no suporte institucional leva as pessoas a dilemas terríveis como escolher entre preservar a saúde ou garantir o sustento.
Muitos transplantados enfrentam um paradoxo cruel: são considerados saudáveis demais para permanecer sob a proteção do INSS, mas ao mesmo tempo são recusados pelas empresas, que não os veem como plenamente produtivos. O sentimento é de estar suspenso em um vazio institucional — fora do sistema previdenciário e do mercado formal.
As barreiras físicas, associadas ao estigma da doença e à ausência de políticas efetivas de inclusão, deixam esses indivíduos à margem. Assim como relatam Andressa e Elindinaldo.
Andressa: O mercado de trabalho também não oferece emprego para gente. Eu tenho muita amiga que fez o transplante de rins e não consegue mais emprego, mas também não tem o direito ao benefício. O senhor tá entendendo? Então, assim, quando eu saí de lá, quando fui para empresa, eu nem andava direito, quando o INSS me cortou na empresa. “A gente não tem como ficar com você. Isso tem que ser resolvido ou você resolve ou alguém tem que resolver.” Foi quando eu falei com a assistente social, Fernanda, “vai na Justiça que tu resolve isso”. Quando eu fiz o exame lá do trabalho lá, admissional, aí o médico fez: “Por que você não ficou?” “Eu não sei, me cortaram.” Ele: “como é que você vai trabalhar? Você nem anda direito”. Eu nem andava quando ele me cortou, nem estava andando direito. Então eu não sei como é que vai ser.
[Entrevistador: Você desse jeito o INSS cortou?]
Andressa: Cortou. Aí entrei na Justiça, foi quando eu consegui.
Elindinaldo: A questão de durante essa pandemia, com essa minha situação foi um pouco meio ruim para mim. Porque eu não tenho um emprego fixo. Fui afastado do INSS, fui afastado do INSS, não tenho nenhuma renda. Nesse momento estou sem nenhuma renda e não... Fica difícil de eu arrumar emprego agora, fica difícil arrumar emprego agora porque minha profissão é pedreiro e fiz o INSS e fiz o... Conversou com a empresa que eu trabalhava para me mudar de função, me mudar de função. Aí foi que teve o... Aquela parte de... De reabilitação, na empresa. Aí mesmo assim, a empresa não me aprovou, não me aprovou, botou de volta para o INSS. Por seis meses, o INSS me botou de volta para a empresa. Porém, não sei o que aconteceu que com 30 dias a empresa me deu minha demissão.
Quando falha o suporte institucional, resta ao paciente encontrar formas de sobreviver, ainda que isso comprometa sua saúde. O trabalho, que deveria ser um exercício de dignidade, torna-se um esforço inadequado, feito na informalidade e muitas vezes à custa da própria saúde. As recusas do INSS forçam uma reinvenção compulsória da vida, que não leva em conta os riscos médicos nem os limites subjetivos. É o que aconteceu Elindinaldo.
Elindinaldo: Já tava transplantado. Aí foi que eu procurei o advogado, procurei um advogado para recorrer, para ver o que fazia. Mesmo assim, o INSS negou duas vezes. Aí eu tive que tentar trabalhar por conta própria.
O transplante interrompe trajetórias econômicas, e o retorno ao trabalho é frequentemente inviável. Muitos pacientes acabam em situações financeiras precárias, dependendo da compreensão de familiares ou da suspensão de obrigações como pensão. Mesmo aqueles que ainda desempenham atividades informais relatam que precisam limitar-se fisicamente. A renda deixa de ser uma construção estável e torna-se uma angústia diária, como na vida de Elindinaldo e Erianderson.
Elindinaldo: É, fica muito difícil porque na época tava muito difícil, na época para mim, porque eu pagava pensão. Tenho uma filha que foi de outro casamento e eu tinha o direito de pagar, né? A pensão. Aí foi que ela... Aí melhorei um pouco, agora que ela completou os 18 anos, completou os 18 anos, falou comigo: “não precisa dar mais, não tá trabalhando, nem nada. Até aqui tá bom”. A gente concordou. Aí, nesse caso foi que veio aliviando.
[Entrevistador: Nessa época você já tava aposentado?]
Erianderson: Já, já. Eu me aposentei no final de 2014. Por conta do problema do… Do problema do coração. Foi. Eu trabalhava aí, teve a segunda firma que eu trabalhei, que me botaram pra fora. Só deu tempo eu receber minhas conta. Quando eu recebi, apresentei esse problema e lá vai e tal. De lá pra cá eu não trabalhei mais em canto nenhum. Até porque eu não posso assinar carteira, né? Trabalho assim de motorista, um negócio de colégio, esses negócio levando os alunos pro colégio. Mas mesmo sem fazer muita extravagância, nem esforço.
O trabalho é também símbolo de valor e pertencimento. Quando os médicos atestam a incapacidade para continuar trabalhando, pacientes, tal qual o caso de José Alves, reagem com tristeza profunda, como se tivessem perdido parte de sua própria identidade. A notícia da aposentadoria, mesmo quando necessária, é vivida com dor, como uma forma de exclusão da vida ativa.
José Alves: É porque vê só, a gente, a gente, eu mesmo quando, quando antes, logo, quando o médico falou, falou assim: “ói”, o médico falou: “você por mim, você já tá aposentado que você não tem condições de trabalhar”. Antes do transplante né, eu tava doente. Aí eu peguei e fiquei chorando. Eu fiquei chorando pro médico. Eu fiz: “mas como doutor que eu não posso mais trabalhar?” Aí ele disse: “você num pode fazer nenhum esforço, por mim, por mim você já tá aposentado”.
A ausência do trabalho também cria um vazio simbólico, que muitos tentam preencher com novas rotinas, serviços comunitários ou simples movimentações no cotidiano. São estratégias de enfrentamento do tempo ocioso e da sensação de improdutividade. A ocupação com tarefas informais ou voluntárias se torna um cuidado de si — uma forma de continuar se sentindo útil, mesmo que fora do mercado formal. É comum a busca por distrações, à exemplo de Jorge.
Jorge: “É, de futebol. Aí eu levo as meninas pra fazer ação no final de semana, durante a semana, na rua, sabe? Fazer site, cadastro, ganhar brinde os clientes. Levo de carro, vou buscar de carro. Isso também já é uma terapia também, né?”
