“Uma família”

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A convivência diária entre pacientes na enfermaria cria laços fortes. E, nesse ambiente de apoio e solidariedade, cresce a valorização do ato de doar, como vemos na narrativa de Jonean.

"Aí foi embora. Foi quando me disseram. Aí cada um que tem uma coisa aí... Vai batendo aquela tristeza na pessoa. Mas tem que ter força, tem que ter coragem, né? Porque a vida... Deus mostra aí a oportunidade que tem. E a gente tem que se agarrar com ela, né? E hoje, graças a Deus, minha família. Se Deus quiser, tudo vai ser doador. Minha mulher, minha esposa, meu filho. Minha família, meus irmão. Tem que incentivar, porque é muito importante o transplante, né?"

 

Claudia nos relata como a morte repentina de alguém com uma condição semelhante, com quem compartilhamos nosso tempo, nossas expectativas, provoca uma dor intensa e um sentimento de inconformidade, como se perdêssemos um familiar muito próximo.

Foi, chamaram até a psicóloga na hora, que eu queria sair do hospital. Queria. Não queria ficar mais no hospital.

[Entrevistador: Por quê?]

Porque a gente fez uma amizade bem grande. A gente era... E tomava café junto. Saía, eu saía do meu leito, ali ia perto do dela. Às vezes ela vinha, a gente ficava conversando. Foi. Foi uma coisa que a gente fez amizade mesmo. E aí, com dois dias ela faleceu. Ela tava bem. Acho que foi isso que eu senti muito, porque ela tava bem. Bem. E se foi.”

 

A experiência do transplante não termina na alta hospitalar — ela se estende em redes de apoio que funcionam como verdadeiras famílias escolhidas.

“Mas aí, eu tenho hoje, a gente tem uma rede no WhatsApp de pacientes e a gente se conversa. Então precisa ter alguém, está faltando o remédio, o outro tem, a gente troca, o cara devolve, não sei o quê. Então aí eu fico confortável por isso. Então a gente tem uma rede muito grande de pacientes que a gente conversa.

[Entrevistador: Todos transplantados?]

Transplantados, todos esses aí que está na minha rede, no WhatsApp, são transplantados e aí não entra só o transplante de coração. Aí entra outros, de rins. Tudo que aparecer lá no nosso grupo, lá a gente agasalha todo mundo, e a gente se ajuda. A gente é legal, bate um papo legal, muito bom."

 

O caso de Arthur, um jovem transplantado, expõe a fragilidade a qual um jovem está exposto quanto à responsabilidade necessária para um tratamento como o de um transplantado cardíaco e a importância do apoio constante no pós-transplante. O impacto dessa perda se estende a todos que o acompanharam e é descrito, no relato abaixo de Josiane, mãe de Carlos Henrique (jovem também transplantado), como uma ferida aberta na memória coletiva de quem compartilhava a rotina com ele no hospital.

"Arthur. Arthur, praticamente ele se matou. Então, foi um caso que eu acompanhei, porque ele chegou aqui e fez... Passou muito tempo na fila de transplante, na fila de espera e ficou internado na pediatria. Os pais da zona rural também, sem condição. Foi no dia que ele recebeu o transplante e quando ele completou 15 anos, a mãe achou que... Não achou, pela idade e como ele tava 100% condição mental, achou que ele já poderia ter uma certa responsabilidade de tomar medicação sozinho. Infelizmente ele não tomou. Ele pegava a medicação e jogava a medicação. Então, dentro de três dias, eu acho, o coração começou, o órgão começou a rejeitar. Então, quando ele veio pra enfermaria e os médicos foram correr atrás, já foi tarde demais."

 

O processo de transporte cardíaco ultrapassa a dimensão médica, envolvendo aspectos emocionais, relacionais e sociais profundos. O medo do procedimento cirúrgico, presente em muitos pacientes, pode levar à recusa do tratamento, mesmo quando há indicação clara e risco iminente de vida. Essa resistência inicial demonstra como a aceitação da própria condição é um desafio pessoal que influencia diretamente os desfechos clínicos. A convivência prolongada no ambiente hospitalar favorece a criação de laços afetivos entre os pacientes, que compartilham angústias, medos e vitórias. Esses vínculos promovem um suporte emocional que muitas vezes substitui a família no cotidiano da internação, criando o sentimento de comunidade e pertencimento. A dor da perda de colegas durante o processo, por outro lado, expõe a fragilidade da própria existência e reforça a seriedade da condição de cada um.

“[Entrevistador: Cíntia estava com você na enfermaria?]

Tava. Assim que ela tinha na época, ela tinha 20 anos.

[Entrevistador: 20 anos.]

20. Aí ela tinha vindo trocar o marcapasso. Como ela engordou, né? E ela passou do tempo de trocar o marcapasso. Ela foi. Ela estava nesse dia. Ela estava muito pensativa assim. Aí ela: amanhã eu vou ter que trocar novamente, Andressa. Aí eu fiz porque tu não faz teu transplante? Porque eu tenho medo. Eu também tinha. A minha trajetória foi muito difícil aceitar. Não foi com vocês. Vocês foram pra casa o médico chama vocês vêm. Eu não, eu morei aqui dentro e você tem a oportunidade de ir para casa e de ainda ter chance de ser 100%. E o meu era 0% de sair viva e eu saí. Aí ela ficou pensativa nesse dia, foi quando ela teve um, trocou aparelho dela, mas ela teve uma complicação, mas faleceu. Mas quando ela faleceu, eu já tinha recebido alta”.

[Entrevistador: Mas Cíntia já tinha feito o transplante?]

Não, não. Ela morreu antes de fazer o transplante, porque ela não queria. E essa outra menina também, né? Ela não queria. Aí foi quando a mãe dela conversou comigo, a mãe: “eu tenho fé, Andressa, que o que aconteceu com você vai dar certo”. Eu quis assim, ela também, quando eu saí, ela também, ela também, ela não aguentou, faleceu ela. Quando eu voltei para a consulta, eu sempre ia lá em cima ver as meninas, né? Dr. Rodrigo reclamava pra não tá subindo, mas a gente sempre vai, porque a gente se torna uma família, ou uma ajuda a outra, um apoia o outro. Aí ela chamou a mãe, eu encontrei a mãe dela, ela falando que ela não resistiu. Difícil, muito difícil você perder um amigo. Eu perdi também pessoas de hemodiálise. Quando eu fiz o transplante muita gente que não tinha, que tinha medo de fazer disse “não, o teu deu certo, o meu vai dar, vai, vai dar”. Teve uma pessoa, teve uns que faleceram. Não conseguiu. Teve uma que depois do transplante teve complicação. Teve umas pessoas que conseguiram transplantar, não se cuidou e perdeu. Pronto, eu tive um amigo, que ele fez, ele não queria fazer. Era um amigo mesmo… Aí ele: “oxe Andressa, já ligaram pra mim, eu me escondi, mas minha mulher...” Ligou pra minha mulher, “você vai”. “Eu venho te visitar”. Ele, mas sendo que ele pegou COVID, depois de, ia fazer um ano de transplante. Ele pegou COVID. Faleceu de COVID. Foi. Depois de 20 anos de transplante, de hemodiálise. Quando ele conseguiu o transplante, quando ia fazer um ano de transplante, ele pegou a COVID.”

 

 

O transplante cardíaco exige do paciente mais do que aguardar por um órgão compatível, é necessário comprometimento com tratamento, disciplina e mudança de hábito. A continuidade do tratamento e o cuidado com a saúde são responsabilidades individuais. A recusa em seguir orientações como o uso correto de medicamentos, o evitar práticas prejudiciais, pode levar a perda da vida, mesmo após uma chance de cura. A fé, a escuta da equipe médica e o envolvimento ativo no próprio processo terapêutico são elementos fundamentais para garantir melhores desfechos. O transplante não é apenas um procedimento técnico, ele também exige ação consciente e perseverança de quem o recebe.

“[Entrevistador: e na enfermaria o senhor já se lembra mais?]

É, com o passar do tempo eu me lembro mais, né. Lembro mais, você vai fazendo amizade com as pessoas, brincando. Aí pronto (Dr. Rodrigo falava: “Reginaldo, dê conselho a essa mulher que está chorando”, ela sabia. Aí eu disse: “Dr. Rodrigo, o seguinte, eu quero dinheiro, aqui não, eu quero é dinheiro”. Ele fez: olhe, o senhor já vê lá de cima. Eu estou brincando entendesse. Aí pronto. Nesse período eu vi muitas pessoas ir embora morrer. Tive pessoas que eu vi, faleceu, morreu. Teve um amigo chamado Lucas, ele é de Garanhuns, estava aguardando um coração como Dorgival. Chegou, graças a Deus, Dorgival tá aí contando a história. E ele, novo demais, não soube aproveitar a oportunidade que Deus deu. Porque Dr. Rodrigo é o seguinte, Dr. Rodrigo é um cara faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Ele faz tudo pra não perder o paciente, então se você não seguir o conselho dele, ele faz: “então fique à vontade”. Então, quando a gente segue o conselho, primeiramente de Deus e dele, eu estou aqui, muitas pessoas contando história. Então esse menino novo não seguiu o conselho. Morava em Garanhuns, bebia e não tomava o remédio, vinha pra aqui, internou-se foi embora.”

 

O relato de Elindinaldo mostra como a convivência com outros pacientes na mesma condição pode gerar ansiedade e preocupação, especialmente diante de situações em que o transplante não tem um desfecho positivo. Ao mesmo tempo, evidencia a urgência do procedimento e a importância de agir rapidamente diante do agravamento do quadro de saúde.

"[Entrevistador: E quando o senhor estava internado, estava com outras pessoas que estavam esperando transplante também, junto?]

Sim.

[Entrevistador: E como é que foi essa convivência com essas pessoas?]

Tinha. Tinha eu e mais três lá na sala que estava aguardando também. Tava aguardando. Aí quando eu tava lá, aí teve um senhor que veio fazer o transplante que veio a falecer... Foi um pouco triste, né? Porque a pessoa fica imaginando, fica, fica tenso no momento. E a gente soube que ele fez e não deu certo. Não deu certo. Ele não conseguiu. Mas a... A minha situação que eu estava era uma situação que eu tinha que passar. Eu tinha que fazer também que... O médico falou: "É questão de momento, viu?" Por isso que botou pra fazer o transplante mais rápido que pudesse. E graças a Deus, consegui um compatível bem rápido."

 

O relato de Valdeir revela como o ambiente hospitalar, marcado por emergências e perdas, gera medo constante e sensação de vulnerabilidade. Cada dia se torna uma conquista, enquanto a incerteza sobre o futuro alimenta a angústia e o receio de não resistir.

"[Entrevistador: Como é que foi pra você ver essas pessoas assim?]

Quando chegava a visita, eu chorava, porque dizia: “Mais um dia tô aqui.” E pior era quando diziam: “Intercorreu fulaninho.” Os médicos tudo correndo, aquela gritaria na madrugada, eu pensava que não ia chegar o outro dia, né. Vinha na minha cabeça: "Será se o próximo vai ser eu?”