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O trabalho ocupa um lugar de grande importância simbólica. Não se trata apenas de uma fonte de renda, mas de uma estrutura que organiza o cotidiano, constrói identidades, permite a sensação de utilidade e participação no mundo.
Antes do transplante, o cansaço extremo e falta de ar, internações frequentes e impossibilidade de realizar atividades básicas devido à gravidade da insuficiência cardíaca impediam que os entrevistados seguissem trabalhando. Experiências diversas e desafios significativos foram enfrentados, desde esta incapacidade laboral pré-transplante até as dificuldades de reinserção no mercado de trabalho e o acesso a benefícios sociais após a cirurgia.
O transplante cardíaco representa, para muitos pacientes, uma oportunidade de continuidade da vida. Entretanto, a sobrevida garantida pelo novo órgão não se traduz necessariamente em plenitude de saúde ou em reintegração social plena.
Muitos transplantados carregam um desejo intenso de retornar à sua atividade anterior — não apenas pela necessidade econômica, mas pelo significado que o trabalho ocupa em suas vidas. A ausência do trabalho é vivida como perda de autonomia, como um vazio em uma rotina antes preenchida de sentido. A vontade de voltar, mesmo com as limitações, aparece como expressão de dignidade. O desejo de dirigir, de consertar carros, de produzir algo, é também um modo de resistir à passividade que a doença tende a impor, como expressam Edmar e Oswaldo:
Edmar: Doutor, vou ser sincero pro senhor, até hoje eu não fico em casa não, eu trabalho, até hoje quando bate a hora de eu trabalhar, quando eu ia, me acordo toda vez. Tento dormir, mas não consigo. Quando chega aquele horário, eu acordo, to acostumado com aquele horário. [...] Doutor, se dependesse de mim, eu voltava, porque eu gosto de trabalhar, mas hoje eu não tenho força, não é mais devido ao coração, é o AVC, desse lado eu não tenho força bem. Acho que, só no futuro que posso voltar, porque o meu serviço não é pesado, só dirigir e não tem... Assim, se der medo, não faço nada. Mas se dependesse de mim, se eu fosse voltar hoje, eu voltava. Prefiro trabalhar do que [estar em] benefício.
[Entrevistador: Entendi. Você sente falta de trabalhar?]
Oswaldo: Sinto, sinto. Eu me aposentei com um salário só. [...] A oficina era minha, há três anos atrás, né? É um salariozinho mais ou menos. Não é muito de milionário, não. Mas pra um pobrezinho dava pra viver tranquilo. É melhor um pouco.
[Entrevistador: É, e a questão do trabalho, pelo que eu entendi, você gostava do trabalho.]
Oswaldo: Gostava, gostava. Desde, desde 16 anos que eu trabalhava com isso e você parar de repente é ruim. Então, no início eu senti muito, senti muito, muito mesmo. Financeiro e até você ficar dentro de casa sem fazer nada. Até se acostumar foi...
A travessia pelo sistema previdenciário aparece nas falas com marcas de desgaste, revolta e impotência. O sentimento de injustiça atravessa os relatos: pacientes que já não têm condições físicas de trabalhar são recusados pelo INSS, sob a justificativa de que estão “curados”. Há um abismo entre os critérios institucionais e a experiência vivida da doença, e muitos pacientes acabam sem renda, enfrentando processos longos e humilhantes de avaliação. Essa vivência institucionalizada é relatada por Rosimeri, Elindinaldo e Josivan.
Rosimeri: Olhe, o processo foi o primeiro... É, assim, olhe, deu entrada no INSS, aí eu fui quatro vez chamada, ainda, lá no INSS. Aí eu fiquei, é... Olhe, é... Aposentada logo não. É... Foi no benefício que eu fiquei. Aí depois cortaram. Aí eu passei dez meses sem receber nada. Aí eu peguei, dei entrada de novo e aceitaram. Aí foi quando eu fiquei aposentada.
Elindinaldo: Já tava transplantado. Aí foi que eu procurei o advogado, procurei um advogado para recorrer, para ver o que fazia. Mesmo assim, o INSS negou duas vezes. Aí eu tive que tentar trabalhar por conta própria.
Josivan: Só fico ruim assim porque não posso pegar peso pesado. Perdi meu... Minha atuação é às vezes pesada, né? Aí, eu não posso. Eu faço besteirinha. Mas ganha pouco demais. E o INSS dá toda vez não.
[Entrevistador: O senhor me disse que o INSS tá se recusando a lhe aposentar. Por que?]
Josivan: Alega que eu... Que o coração tá bem, sabe? “Pronto, sua doença acabou. Não precisa, sua doença você não tem mais.” Entendeu como é que é?
Mesmo aqueles que se sentem fisicamente bem relatam o medo de se forçar além do permitido. O corpo transplantado exige vigilância constante, e isso limita profundamente o exercício de trabalhos manuais ou extenuantes. O medo de comprometer sua saúde, seu coração transplantado, faz com que muitos evitem até mesmo tentar retornar, assim como Mirko.
[Entrevistador: Você gostaria de trabalhar com o que?]
Mirko: Às vezes é devido o costume, né? Eu gostaria de trabalhar no serviço do campo mesmo.
[Entrevistador: Era o que você trabalhava antes?]
Mirko: Era.
[Entrevistador: Você se sente em condições de voltar a trabalhar?]
Mirko: Eu tenho medo. De, de forçar, né, e acontecer alguma coisa. Porque a pessoa fala que não pode fazer esforço, essas coisas, aí eu prefiro não arriscar.
Não basta querer trabalhar: o mundo do trabalho nem sempre está preparado para acolher pessoas que carregam limitações. Os relatos revelam que o retorno ao emprego formal é barrado por empresas que não querem “assumir o risco”, mesmo quando o trabalhador deseja retornar. A exclusão se torna dupla: o benefício é cortado, e o trabalho é negado. A sensação de inutilidade social se intensifica, agravando também o sofrimento psíquico. Isso é o que relata, por exemplo, Elindinaldo.
Elindinaldo: Passei afastado, mais ou menos, quase 2 anos. No benefício ainda, aí foi quando a empresa não... Aí o INSS me desligou. Eu fui para empresa, passei 30 dias só na empresa. Porém de lá pra cá, já vai fazer 2 anos já.
Quando o benefício é negado e o mercado exclui, resta a informalidade. Os “bicos”, realizados, mesmo com sintomas, representam um esforço de sobrevivência. Os relatos, como de Elindinaldo, são marcados por exaustão e sofrimento físico.
[Entrevistador: E aí, esses trabalhos que o senhor faz por fora, esses bicos. Posso chamar de bicos?]
Elindinaldo: Pode.
[Entrevistador: Se sente bem pra fazer? O fôlego tá legal?]
Elindinaldo: Assim, tem momentos que não me sinto bem. Quando é muito pesado. Quando é muito esforço, quando pego a parte de reboco, essas coisas assim, não me sinto bem. E principalmente quando é área fechada. Puxa muito pela respiração, porque como eu transpiro muito, suo muito, aí fico como se tivesse passando mal, com falta de ar.
Na ausência do trabalho, o tempo se torna ocioso. Muitos pacientes procuram ocupar-se de outras formas: ajudando em atividades comunitárias, mantendo horários antigos, saindo para distrações pontuais. Essas ações funcionam como estratégias de cuidado de si.
Apesar das dificuldades enfrentadas, os pacientes conseguem elaborar a experiência do transplante de forma resiliente. As falas revelam que, para além da luta pelo trabalho ou pelo benefício, há uma profunda valorização da vida. Estar vivo, poder cuidar dos filhos, garantir o básico — esses elementos passam a ser ressignificados como conquistas. É o que diz Lenielson. E Jeová nos ensina como encontrou uma solução com seu “carrinho de lanche”.
Lenielson: Olhe, demorou. Demorou uma coisinha, mas graças a Deus eu consegui. Recebo um dinheirinho por mês, dá pra ir escapando. O leite dos menino, dá para escapar. Não é uma riqueza não, mas dá para ganhar a feira, o arroz, o feijão, o leite do menino está bom e com saúde tá rico. O que vale é a saúde da gente. O que vale não é dinheiro, se a gente tiver dinheiro, e não tiver saúde, tá perdido.
[Entrevistador: E os trabalhos que o senhor faz? O que é que o senhor…?]
Jeová: Eu mexo com uma coisa, mexo com outra, não sei da palavra. Quando eu conheci ela [esposa atual], cheguei lá, comecei a mexer com bala, batom garoto, pipoca, batata, vendendo. Aí depois montei uma barbearia, montei uma barbearia. Só que não me adaptei. Uma barbearia, vendedores que eu já vendi aqui em Paulista, então passei por isso de novo. E hoje eu montei uma lanchonete para mim. Uma pastelaria, no caso. Uma pastelaria de rua, é de rua. Não, não tem ponto. […] um carrinho de lanche.
A busca pela independência financeira e a dificuldade em conciliar saúde, trabalho e seguridade social são temas recorrentes e revelam a necessidade de políticas públicas mais eficazes e de um mercado de trabalho mais inclusivo para pessoas que passaram por transplante cardíaco.