Experiência do Cuidado ao Longo das Últimas Décadas

A experiência de cuidado em hanseníase ao longo das últimas décadas tem como cenário uma história de mudanças, tanto no desenvolvimento de novas formas de tratamento, quanto na perspectiva de cura oferecida aos pacientes. Apesar dessas mudanças positivas na forma de cuidar da hanseníase, nota-se que as dificuldades enfrentadas pelos pacientes ainda existem, como a necessidade de enfrentar o preconceito. A demanda dos profissionais de saúde por um modelo de suporte ampliado, a fim de curar "por completo" os doentes, evidencia-se quando os participantes falam de sua experiência ao longo das décadas.

Para a maioria dos profissionais, a experiência de cuidado começou de forma inocente, ainda sem compreender as complexidades desse trabalho e sem a preparação necessária para iniciá-lo. Até para as mais experientes hoje em dia, o começo foi difícil, como nos conta a médica Maria Leide, que trabalha com a hanseníase desde 1977, quando se formou, além de anteriormente ter feito pesquisas sobre o tema quando ainda era estudante:

“(...) quando eu passei no concurso do INAMPS, em 1977, eu escolhi Caxias, e chegando em Caxias, eu tomei um susto muito grande, porque era um Centro de Saúde, o único que cuidava da hanseníase em Caxias, um dos municípios mais endêmicos da Baixada Fluminense, e tinham, estavam registrados 2000 pacientes de hanseníase, e eu tomei um susto muito grande. Eu lembro que eu falei "eu não estou preparada, eu não fui preparada pra isso”, porque no Instituto de Leprologia, apesar de estar lá com pessoas renomadas, era muito pesquisa, o paciente era visto muito como um elemento da pesquisa, eu não via muito a pessoa (...)"

 

A médica Maria do Carmo, que trabalha com a hanseníase desde que se formou, há 25 anos, complementa, destacando como lidar com essa doença é uma experiência marcante na vida do profissional: 

“Eu aceitei sem saber exatamente o que era trabalhar com hanseníase. E ao longo desses anos eu vejo que a gente sempre pode fazer um pouco diferente. Eu sempre tenho passado por momentos, por épocas, de revisão desse trabalho, porque eu acho que a gente tem sempre... Tem uma brincadeira que a gente diz que quem uma vez foi sensibilizado pelo bacilo, nunca mais consegue não fazer isso.

 

Um aspecto que contribuiu para a dificuldade em entender como era esse cuidado foi a falta de referências, pois eram poucos os profissionais trabalhando com a hanseníase. A técnica de enfermagem Antônia começou sua experiência como voluntária no Hospital Ernani Agrícola, na época ainda um hospital-colônia. Ela nos conta que aprendeu o cuidado em hanseníase com um paciente do local: 

Eu tive como meu tutor um hanseniano, o nome dele era, chamava ele de Chico Anjo, ele era um velhinho, mas que entendia demais de hanseníase, e ele era um dos fundadores de lá, desse hospital. E ele me ensinava tudo, como tratar, como fazer um curativo, tudo ele me ensinou. Então ele era uma pessoa assim maravilhosa. Porque nesse tempo lá, os doentes melhores cuidavam dos piores, porque ninguém queria ir.

 

A escassez é um reflexo do estigma histórico que os pacientes sofrem, fundamentado na religião e perpetuado socialmente por meio daquele imaginário. A doença era conhecida como a "lepra da Bíblia", e seus portadores eram excluídos do convívio com outras pessoas. Um fator que contribuiu para tentar mudar esse cenário foi o processo da troca do nome da doença de lepra para hanseníase, como nos conta Maria Leide: 

“Havia uma discussão muito grande na primeira campanha de hanseníase. Na verdade, a primeira campanha aconteceu em 1987, 10 anos depois da mudança de nome. Mais de 10 anos, 17 anos depois da mudança de nome. E aí se fala ou não que hanseníase é lepra? E foi uma briga danada, que o movimento de pacientes, o Morhan já não queria, mas o dono da empresa que estava conduzindo a campanha, ele perguntou pra mim: "qual produto que você está vendendo?" "Hanseníase". "Qual produto que você quer desbancar com esse novo produto?" "A lepra". E aí ele falou "tá bom". E ele apresentou uma proposta assim: esse vídeo, que até hoje é o vídeo de maior impacto da hanseníase, que as pessoas lembram desse vídeo, apesar de 30 segundos na televisão, ele dizia assim: "hanseníase, antigamente chamada lepra..." Só que as pessoas não guardaram esse antigamente, que é muito rápido, e depois todo o resto é hanseníase, todas as imagens são de hanseníase, não de lepra. Então as pessoas ficaram com a imagem de hanseníase, da mancha, que tem cura, porque era esse o objetivo daquele vídeo. Apresentar a mancha e apresentar a cura.”

 

Durante o atendimento, os profissionais percebem que o acolhimento dos pacientes é essencial, tanto pelo estigma, quanto pelo medo que eles têm da doença. Maria Kátia, que é médica dermatologista que trabalha com hanseníase desde 1992 nos revela que essa necessidade, às vezes, chega a ser exaustiva:

“É uma experiência intensa, exaustiva até. Eu faço ambulatório às segundas-feiras à tarde e eu volto muito cansada desse ambulatório porque ele é muito mobilizador. Os pacientes, todos, a maioria, são muito carentes, com raras exceções, e eles exigem da gente não apenas um olhar técnico, mas um acolhimento constante. Qualquer desvio, qualquer falta de atenção gera muita insatisfação aos pacientes.”

 

A fisioterapeuta Mabel completa, comparando o atendimento que é necessário ser feito para o paciente de hanseníase com o de outros doentes: “(...) acho que o diferencial é que eu tento trazer ele pra um tratamento um pouco mais acolhedor.”

Ainda sobre o acolhimento e o vínculo, é fundamental que o profissional estabeleça uma relação próxima para que os pacientes possam entender que possuem um papel crucial no seu próprio tratamento e melhora. A neurologista Márcia Jardim, explica sobre essa "parceria" que os profissionais devem estabelecer com seus pacientes, ressaltando a importância da adesão ao tratamento, do autocuidado e da vigilância de complicações.

“Essa é uma doença que é tratar, as complicações da doença também são tratadas, mas isso requer um cuidado intensivo. O paciente tem que entender os cuidados que ele tem que ter e a gente tem que informar aos pacientes essa necessidade, para que a gente possa tratá-lo adequadamente. Isso é fundamental, a parceria é fundamental. E tudo… tem uma palavra só: a informação. Informação e reconhecimento do paciente, do corpo dele, do que pode acontecer e do que ele possa evitar.”

 

A fisioterapeuta Rosângela, que tem um contato diário e mais prolongado com os pacientes do que os médicos geralmente têm, entende que, para conseguir alcançar essa parceria, “o paciente com hanseníase, ele precisa sentir que você é igual a ele, que você entende o que ele está passando, que ele trabalha, que ele tem uma família, as dificuldades que ele tem”.

Pelo tempo prolongado de tratamento, a necessidade de adaptação dos hábitos cotidianos às sequelas da doença e a identificação das demandas emocionais, o trabalho em grupos tornou-se peça importante no acompanhamento dos pacientes, como nos conta a assistente social Elen, que começou a trabalhar com a hanseníase em 1991 e hoje coordena um grupo de autocuidado no hospital universitário da UFRJ:

“Ao longo dos anos, nós fomos observando que essas pessoas cada vez mais tinham facilidade de acesso ao serviço de saúde, aos postos de saúde. A equipe de saúde foi aumentando, a equipe foi aumentando, a equipe multiprofissional, mas ainda assim, apesar dos pacientes terem acesso à medicação, acesso ao cuidado médico, ao cuidado de enfermagem, ainda tinham outras necessidades. Necessidades de ter um tempo pra falar, pra tirar as dúvidas, que nem sempre nas consultas médicas dá tempo do paciente tirar todas suas dúvidas, falar das suas aflições. E alguns cuidados, eles precisavam ser orientados pra fazer a manutenção do tratamento deles nas atividades cotidianas, que extrapolavam o cuidado que eles recebiam no hospital. (...) Isso veio a se sedimentar em 2010, quando o Ministério da Saúde recomendou que as equipes de saúde formassem grupos de autocuidado, entendendo que o paciente, apesar dele ter acesso ao atendimento, ter acesso a medicação, tudo isso, eles ainda continuavam desenvolvendo incapacidades físicas, e aí foi recomendado que os pacientes, que fosse feito, coordenado um grupo de autocuidado.”

 

Além disso, outras mudanças no processo de cuidado foram observadas ao longo dos anos, como uma melhor definição do tratamento e a descoberta de novos medicamentos. Antônia relata como era o cenário nos início dos anos 80 no Hospital Ernani Agrícola:

“Era pela misericórdia de Deus mesmo, porque a gente tinha pouquíssimos recursos. Esse Hospital Ernani Agrícola era comandado por freiras, então elas faziam muitos remédios caseiros, emplastes, tudo, não tinha a tecnologia que a gente tem, então eu lembro que a gente pegava panos, a gente recortava, fervia pra fazer esterilização, porque não tinha estufa, não tinha nada disso, então a gente fazia. E banho, essa coisa era tudo a gente que dava nos pacientes. Então a gente era... e eles ficavam lá mesmo. E a medicação nós não tínhamos o que a gente tem hoje, a poliquimioterapia, era o Laprem, era uma medicação pro resto da sua vida, que também não trazia cura, era paliativo. Então, hoje não, hoje a gente está no céu, tem tecnologia, tudo à nossa disposição.”

A mudança na forma de tratar desencadeou uma maior chance de cura precoce, com menor desenvolvimento de sequelas e deformidades, o que deixa tanto pacientes quanto profissionais mais satisfeitos. Nesse sentido, Antônia completa que depois da poliquimioterapia “temos paciente que tratou e nunca mais voltou, não teve reação, não teve nada, e isso é muito satisfatório, isso é muito bom pro profissional."

Por fim, o ortopedista Cabral, do Hospital Santa Marcelina em Porto Velho, ressalta a marca que todos os profissionais compartilham: o amor pelo que fazem. "(...) minha experiência é assim: a gente sabe que são sempre as mesmas pessoas que trabalham no programa de hanseníase, é como se a gente tivesse um carimbo na testa, comprometido, você como se fosse um bacilífero 6 cruzes, você gosta do que faz. Isso é muito pelo retorno do paciente."