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Uma profissional da saúde relembra uma reunião geral no início da pandemia, onde todos estavam assustados, mas ela minimizou a situação, chamando-a de "mais uma gripe". No entanto, rapidamente todos perceberam a gravidade da situação e tiveram que lidar também com a falta de EPIs, improvisando proteções.
“Tentando encontrar uma forma de redução de danos”
“E hoje, volta e meia, eu me pego pensando, gente, eu falava que era uma gripe, mas não foi uma gripe. O desfecho disso foi algo muito maior do que uma gripe. Ninguém imaginava, eu acho. E conforme foram passando os dias, a gente pensando em estratégias de contenção, plano de ação na Unidade, como vai ser feito o atendimento para diminuir as chances de contaminação, o fato de não ter EPI adequado para os profissionais, tantos para os do atendimento direto, enfermeiro, médico, técnico, quanto dos próprios agentes comunitários, seguranças, faxineiros e tudo mais. E a gente sempre ali tentando encontrar uma forma de redução de danos. A gente não tinha o EPI, mas juntamos os profissionais, vamos comprar aqui essas capas para tentar nos proteger.” (MFC CLARA ANTUNES)
Os profissionais narraram a falta de EPI adequado ou dificuldades em lidar com o EPI, seja em se paramentar e desparamentar, seja nos vários momentos do cotidiano como se alimentar, beber água ou mesmo ir ao banheiro. Algumas equipes no início compraram com o próprio dinheiro os seus EPIs. A distribuição dos EPIs não foi igual para todos os profissionais. Alguns agentes comunitários de saúde (ACS) se sentiram desfavorecidos.
“Não tinha como… ...não se contaminar. Você usando máscara por quinze dias. E era muito constrangedor. Parecia que você pedindo a máscara, você estava pedindo um favor, sendo que é um direito. Não é questão da gestão da Unidade, é gestão superior. No começo da pandemia, a gente não usava máscara porque falava que… só transmitia, que não era fácil pegar dessa maneira, que só precisava quem estava com sintoma. No começo, a gente não usava. Eu me sentia desprotegida, literalmente, e com medo. Como sou profissional da saúde, e ainda mais por ser ACS, eu me sentia muito desmerecida. “Você é ACS, não está em contato direto com paciente. Então, você não precisa se proteger”. Não é assim: eu sou um ser humano antes de ser ACS. E a gente fica em contato com paciente: ele vem falar com a gente no atendimento; ele fica, praticamente, na nossa cara. Então a gente tem contato. No começo, ninguém usava máscara. Não podia usar máscara, nem a máscara de pano, que trouxesse de casa, podia usar. Depois que a curva começou a subir, foi obrigatório o uso das máscaras. Davam N95 para a gente, e a gente tinha que usar quinze dias.” (ACS MAYARA)
Profissionais falam dos poucos recursos para atender os pacientes e do adoecimento por COVID dos próprios colegas neste início da pandemia. As narrativas destacam a pressão emocional enfrentada pelos profissionais de saúde, muitas vezes pelo sentimento de impotência diante da falta de recursos, da rápida disseminação do vírus e do pouco conhecimento da doença.
“Chegavam muitas pessoas adoecidas para a gente atender e muita das vezes a gente não tinha EPI, não tinha é… um… um cateter O2 para ofertar oxigênio. Então a gente ofertava com o que tinha, que às vezes era por nebulização. Então, isso gerou uma tensão e acabou gerando adoecimento de muitas pessoas que estavam ali atendendo, porque a gente acabava não estando corretamente protegido e protegendo até o próprio paciente.” (ENF CAROLINE)
Médicos e enfermeiros se revezavam na porta de entrada para avaliar o fluxo de pacientes que chegava. Havendo sintomas o paciente era encaminhado para a sala preparada para os atendimentos de síndrome gripal, possivelmente COVID. Os outros pacientes tinham sua entrada na Unidade cerceada pelo risco de contaminação, e era feito para eles o que era possível naquelas circunstâncias.
"Mais do que atender as infinitas pessoas com Covid, [...] era muito pesado a gente ficar na porta recebendo as pessoas e dizendo não." (MFC Clara Antunes)
“A gente ficou ali na parte da recepção dos pacientes. Para justamente tentar ver o que poderia entrar para o atendimento e o que, "desculpa, no seu caso não vale te deixar em risco esperando para o atendimento", que foi o caso. Então era uma receita de hipertensão. "Olha, toma aqui a receita." A gente renovava ali na frente, dava um jeito para não deixar o usuário horas, o tempo que fosse, dentro de uma Unidade com potencial de contaminação. [...] Eu me lembro de quase ter sido agredida algumas vezes nessa.” (MFC CLARA ANTUNES)
Houve profissionais que ficaram trabalhando mais internamente na Unidade, mas houve também profissionais que foram para o território, seja na realização de busca ativa de informações, seja na distribuição de cestas de alimentos doadas.
"Não deixei de ir para o território, me mantinha dentro da Unidade também e ia para rua também. Botava a minha máscara e ia para o território [para fazer] busca ativa. No caso, quando tinha um óbito, o agente já recebia e aí se a família não comparecia, nós íamos. Os casos de internação de pacientes graves que, às vezes, por exemplo, tinha usuário que não tinha família, não tinha ninguém, e ficou internado, e deixou o celular com uma vizinha, e a gente não tinha notícia não tinha quem fosse na unidade hospitalar e, às vezes, a gente tentava contato e não conseguia. Então, a gente ia na casa da vizinha e ia no território saber se alguém tinha informação para passar, porque tinha saído da Unidade de vaga zero e a gente não tinha informação nenhuma. O pessoal do telemonitoramento ligava e não conseguia falar. Nesse caso, a gente ia para o território também para fazer a busca ativa.” (ENF MARIA APARECIDA)
“Muita coisa fechou e a maioria das famílias que eu lido, o homem da casa que trabalha, a esposa fica em casa tomando conta dos filhos. Então, é um monte de filho, monte de criança, aí parou tudo, fechou tudo. As pessoas ficaram em casa sem receber, tem muita gente que também trabalha na praia. Ficou sem ter de onde tirar. Muita gente mesmo passando necessidade. E esse auxílio do governo, não foi para todos, nem todos conseguiram pegar. Mas foi difícil, na medida do possível a gente ajudou muita gente. A gente fez cesta básica, a clínica toda se moveu para a gente fazer as doações pela unidade de saúde com ajuda da associação de moradores e alguns comércios que também doavam”. (ACS REBEKA)
As relações de cuidado integral e longitudinal levam os profissionais da atenção primária a uma maior proximidade não só com seus pacientes, famílias, mas também com as pessoas conhecidas do território. Quando a Covid atinge pessoas conhecidas e, principalmente, quando evolui com gravidade rapidamente, e por vezes leva à morte, o impacto é maior.
“Deu aquele impacto: ‘O que que a gente tá vivendo’?!”
“E uma dessas histórias me chamou a atenção, porque era uma senhora conhecida no território. Lá no território tem muito comércio. Ela tinha uma barraquinha, ela era conhecida ali no território, falou muito das netas, que era aniversário da neta e que ela queria poder vivenciar aquilo, então, queria melhorar para poder vivenciar tudo. E o que me chama muita atenção, é que tinham alguns pacientes que visivelmente chegavam já com esforço respiratório, mas outras pessoas não, chegavam aparentemente sem esforço respiratório, mas quando a gente ia verificar a saturação, estavam com a saturação, muito impressionante, muito baixa para o que a gente estava vendo. E ela era um desses casos assim: quando você olhava, você não identificava, olhando e avaliando sinais de esforço respiratório, mas a saturação estava muito baixa. E aí, ela ficou no suporte 24h até que a ambulância chegou, chegaram várias ambulâncias, a gente tinha que deixar o paciente levando o oxigênio junto, porque a pessoa não conseguia se deslocar até a ambulância. Isso era impactante, eu lembro da cena do corredor da gente indo, e essa se destacou porque foi a primeira, no início do atendimento, que eu soube que chegou na Emergência e não, não resistiu. E quando eu soube, porque ela era muito querida no território, e eu ter ficado ali com ela. Aquilo me marcou. Porque foi muito no início assim. Deu aquele impacto: “O que que a gente tá vivendo?!” (MFC AMANDA BARBOSA)
A falta de recursos levou os profissionais a tomar decisões e viver situações de grande dificuldade.
“...desespero total, para nós, para os pacientes, para os acompanhantes… horrível”
“Teve um caso em particular, que foi um paciente que mexeu muito comigo. Porque eles chegaram no final de um turno, era um senhor com a filha. A clínica estava fechando, ele estava nitidamente dispneico, só que ele não tinha critério de internação. E a gente estava naquele momento que você escutava notícias dos colegas trabalhando em UPA, em hospital, dizendo que só vaga oxigênio quando alguém morre, porque não tem mais como colocar paciente no oxigênio. E aí, o cara chegando no final do turno, eu não tinha… Eu sabia que não ia conseguir internar aquele cara, colocar ele no hospital, e conversando com a filha, ela super angustiada, e eu só conseguia pensar no meu próprio pai, se eu chego numa situação dessas com meu pai, em nítido sofrimento, está realmente doente, e não tem nada que a gente possa fazer, e não é porque não teria nada, não tem insumo, não tem condição do serviço, sabe, de acolher ele? Não sei nem o que fazer assim. Eu tive uma contratransferência super forte com essa moça. E fiquei… Nossa, até hoje lembro do rosto dela, e ela chorando e falando “mas o que que eu faço?”, o que a gente vai fazer, o cara lá dispneico. E aí, enfim, acabou que ele foi para casa, a gente fez hidratação e não sei o quê. No dia seguinte, ele volta para a clínica, e nesse dia ele tinha critério para internação no hospital, foi intubado, traqueo, mas saiu. Naquela época [2020], daquele cenário pavoroso. Não gosto nem de lembrar, de desespero total, para nós, para os pacientes, para os acompanhantes… horrível." (MFC JULIA HORITA MFC).