Conhecendo o diagnóstico da doença cardíaca

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O diagnóstico da doença cardíaca que culminou no transplante raramente foi recebido de forma direta ou esperada. Para muitos, tratou-se de uma descoberta abrupta, que veio à tona em meio a investigações motivadas por sintomas aparentemente desconexos, por exames de rotina ou, ainda, por tentativas de acessar outros cuidados médicos.

Auricélia, por exemplo, só soube do problema ao buscar uma laqueadura, cirurgia para não ter mais filhos. Como moradora de cidade pequena, utilizava os conhecimentos e acessos que conseguia por redes informais. De repente, revelou-se um caminho inesperado: foi descoberto um ‘problema de coração’ que levou Auricélia a um lugar duplamente desconhecido: ao Recife, cidade que sequer conhecia, para melhor investigar o seu problema de coração, que ela também desconhecia: 

“Com o conhecimento que a gente conhecia por causa de política de cidade pequena, eu consegui uma laqueadura, né? Aí fui fazer o exame. Me pediram pra fazer, passar por um cardiologista, aí eu fui. [...] Quando eu cheguei lá que Dr. Patô me botou lá na sala, foi examinar, ele achou uma coisa estranha... Aí disse: 'Oh, dona Auricélia, a senhora tem problema de coração?' Eu disse: 'Eu nunca tive. Eu sei que minha família tem histórico assim, de problema de coração. Mas eu não sei se eu tenho ou não.'”

 

A comunicação do diagnóstico de uma doença cardíaca muitas vezes deixava os pacientes confusos ou sem poder aceitar esta nova condição. Claudia sabia que tinha febre reumática e tomava benzetacil, mas não compreendia suas implicações:

“Eu sabia que era febre reumática. Eu tomava benzetacil tudinho. Só que eu não sabia o que causou essa febre reumática.”

Só após anos de sintomas e um histórico familiar já marcado por doenças cardíacas, ela passou por uma plástica na válvula mitral:

“Fizeram uma plástica... na válvula mitral. E aí fiquei bem.”

O impacto emocional do diagnóstico não era necessariamente imediato, mas se sedimentava aos poucos com o avanço dos sintomas, das limitações e da necessidade de procedimentos invasivos.

 

Outros, como José Alves, tiveram o diagnóstico anunciado quase como uma sentença. O relato de José evidencia o choque e o desconhecimento

“Aí ele me escutou todinho. Quando ele me escutou, ele falou: ‘Ói, Zé Alves, você trabalha em que?’ Eu disse ‘tô trabalhando em firma, em construção’ [...] Ele disse: ‘Se você quiser viver, não faça mais nada, peso nenhum você pegue.’ ”

A competência e a atenção dos profissionais de saúde foram determinantes na rapidez e precisão do diagnóstico. O cardiologista sequer precisou solicitar exames de imagem para suspeitar do problema: ao examinar, já identificava o coração aumentado e associava à doença de Chagas — uma condição endêmica que, mesmo com sintomas graves, ainda é pouco compreendida entre os pacientes.

“Nem exame ele fez. Olhou pra mim e disse: ‘Você tá com o coração inchado, você tá com Chagas’. Aí eu: ‘O que é Chagas, doutor?’ ”

A explicação veio de forma didática, mas também brutalmente realista: um tubo com o transmissor da doença foi mostrado ao paciente, que reconheceu o “barbeiro” como um inseto muito conhecido, visto com frequência em sua infância.

 

O momento do diagnóstico também era marcado por experiências corporais intensas e traumáticas. Andressa relata a internação de urgência, o uso de oxigênio, a entrada repentina na UTI e a descoberta da falência de múltiplos órgãos:

“Fiz todos os exames e eu fiquei, continuei no oxigênio, levando oxigênio, que eu não conseguia respirar se tirassem do balão [...] De manhã eu vi uma máquina que eu não sabia que aquilo era hemodiálise... Foi quando depois fiquei isolada no quarto, isolada. Aí a  médica veio conversar comigo e disse: ‘Olha, Andressa, o seu rim está comprometido’.”

A sobreposição de falências dos órgãos criava uma atmosfera de urgência e desorientação: ela mal compreendia os procedimentos pelos quais passava, como a hemodiálise, mas sentia no corpo o peso do que estava por vir.

 

Para alguns, o diagnóstico vinha após eventos agudos, como infartos. Carlos Alberto infartou duas vezes antes de ser encaminhado para cirurgia:

“Até o doutor: ‘Olha, lembre-se…’ falando pra mim ‘tu já infartou duas vezes. Será que vai aguentar o terceiro? Ninguém sabe.’."

 

A decisão pela ponte de safena foi menos uma escolha e mais um ultimato. Da mesma forma, Jonean só descobriu que tinha febre reumática ao ser avisado que precisava substituir a valva mitral com urgência.

“Aí: ‘Oh, Jonean você vai ter que fazer uma cirurgia de urgência no coração e você vai ter que trocar essa válvula.’”

 

Em alguns casos, o caminho até o diagnóstico correto foi longo e árduo com um atraso considerável no diagnóstico devido a sintomas inicialmente atribuídos a outras condições, como no caso de Josivan, ou tratamentos ineficazes que atrasaram o tratamento adequado, assim como foi com Lenielson.

“Lá em Monteiro, tem um médico chamado Dr. Roberto. Um médico velho. Aí ele disse: ‘Meu amigo, olhe, vou lhe falar.’ Começou perguntando o que eu sentia, se quando eu tava dormindo dava aquilo como se tivesse caindo e tudo isso aí. Esse doutor lá descobriu toda minha doença. Ele disse: ‘Olhe, você não tem nada de gastrite, não tem nada de vesícula. O problema todo seu é cardíaco’” .

 

"Operei a primeira vez, botou válvula, mas não resolveu não. [...] Cansava muito."

 

A idade no momento do diagnóstico varia significativamente, desde o nascimento, como José Roberto, até a meia-idade, como Gilson, refletindo a diversidade de condições cardíacas e suas manifestações ao longo da vida.

“Aí chegou lá. Aí o médico se assustou quando viu. Disse: ‘Que idade você tem?’ Eu disse: 42. ‘E o seu coração tá desse jeito? Vou mandar fazer um ecocardiograma pra confirmar, se é do jeito que eu to pensando, o senhor vai ficar internado aqui que pra casa você não vai mais não.’ Aí fez o eco. Oxe, não deu outra.”

 

“Bom, quando eu nasci, eu nasci já com problema, o problema do coração. Que o médico até falou como, como eu crescesse eu faria até uma cirurgia. [...] Aí eu, aí como eu peguei com 14 anos de idade, eu comecei a beber aí, aí começou o caso.”

 

O processo de conhecer a doença cardíaca, portanto, não foi apenas um momento técnico de comunicação de informações e de laudos de exames — foi também uma travessia emocional, muitas vezes permeada por medo, incompreensão e surpresa. O diagnóstico rompia com a sensação de invulnerabilidade, que, para muitos, significava o abandono da vida anterior, e instaurava um tempo novo — mais lento, mais vigilante, mais médico. A vida passava a ser organizada em torno de consultas, exames, laudos e sintomas, alterando a relação com o corpo, que agora exigia atenção contínua e cuidados médicos frequentes para funcionar. Essa descoberta foi, quase sempre, fragmentada e mediada por histórias familiares, limitações de acesso ao sistema de saúde e um profundo estranhamento diante do próprio corpo. A notícia da doença, mais do que um dado clínico, foi um divisor de águas na vida de todos.

O acesso ao tratamento, com relatos de atendimento em diferentes níveis de complexidade do sistema de saúde, desde unidades básicas até hospitais universitários e privados, demonstra a evolução da condição ao longo do tempo e a busca por tratamento em diferentes instituições. A experiência de Duarte exemplifica bem:

“Foi fazendo exame e descobriram que tava com problema de coração. E aí uns debateram lá. Uns diziam ‘não, tem que operar’, outros ‘não. Vamos deixar pra operar mais a frente dá pra ir controlando com remédio’, tal coisa. E aí certo que não fiz a cirurgia. Aí voltei para casa. Aí quando foi 86, aí deu outra piora. Aí comecei falta de ar, mesma coisa. Aí voltei para Salvador, mas já não podia mais ir lá para o Hospital Martagão Gesteira. Aí em 85 já voltei para o Hospital Português, né? Beneficência Portuguesa lá em Salvador.”

 

O apoio familiar desempenhou um papel crucial na busca por diagnóstico e tratamento em alguns casos, como Gilson.

“Aí chegou uma semana que minha mãe foi lá em casa fazer uma visita a mim, levar alguma coisa que ela comprava pra eu comer, aí ela disse: ‘olha, não leve meu filho para esse hospital mais não, porque estão matando ele, porque o problema dele não é mais nem menos, é coração.’”

 

Para além da surpresa inicial, o diagnóstico também impunha novas condições para o futuro. Os planos, antes tomados como certos — trabalhar, criar filhos, envelhecer com saúde —, passavam a ser constantemente colocados em suspensão. A noção de urgência se tornava permanente. Mesmo quando o transplante ainda não era mencionado, a gravidade da condição já colocava os pacientes numa espera difusa por algo que pudesse estabilizá-los, curá-los ou, ao menos, dar sentido à nova vida que se inaugurava com a notícia da doença cardíaca. Esse momento, portanto, era menos um ponto fixo no tempo e mais um processo — cheio de voltas, dúvidas, exames e silêncios — de se tornar, de maneira inesperada, um paciente crônico e, posteriormente, um potencial paciente para o transplante cardíaco.