Médico(a)s de Família e Comunidade – SP

Augusto, médico no Centro de Saúde Escola de Botucatu, teve uma grande jornada durante a pandemia do Covid-19. Em 2019, ele tinha sofrido uma queda e teve uma fratura no cotovelo. Diante desta situação, teve que se afastar do serviço para um longo tempo de reabilitação por conta desta queda. Distante do posto de saúde, quando a OMS declarou a doença coronavírus (SARS-CoV-2) como pandemia, em março de 2020, ou seja, uma doença que abarcou a população mundial, ele teve tanto um sentimento de incapacidade quanto uma vontade muito grande de participar da história que o mundo estava contando, como destacou na entrevista: “poxa, estou afastado do serviço no momento em que o serviço está num enfrentamento de uma doença que assume uma preocupação pandêmica. Isso para mim foi aquele chamado, eu falei não, vou voltar agora”.

O retorno ao posto foi apenas o início de uma jornada desafiadora, Augusto logo percebeu que, mesmo com mais pessoas, talvez o atendimento ainda não fosse suficiente para a enorme dimensão que a pandemia assumia pois, a Covid-19 não afetava apenas a saúde física das pessoas, mas também suas emoções, aflorando medos e angústias. O vírus se tornou um argumento para a sensação de viver uma catástrofe coletiva, por isso, ele e a sua equipe tiveram que adotar novas estratégias dentro do posto de saúde como, por exemplo, montar uma estrutura especial para o atendimento de pacientes com suspeita de Covid-19. Isso mudou a dinâmica do local, e para os pacientes simbolizava a entrada numa nova realidade, com o peso poder ser diagnosticado com o vírus. Além disso, a questão da vacina, foi um ponto conflituoso para ele, embora muitos tenham visto a vacina como a grande esperança para combater o coronavírus, ele pessoalmente enfrentou um dilema interno, pois se questionava sobre o tempo necessário para estudar os efeitos adversos da vacina e, em sua visão crítica, achou precipitada a rapidez com que as medidas foram tomadas, como ele ressaltou na entrevista: “algo que para mim foi bem conflitante foi a questão da vacina. A vacina para mim não foi um lugar... dentro meu próprio senso crítico sobre as coisas, achei que foi um gesto precoce.” Posteriormente, observou que a vacinação teve um impacto positivo em Botucatu e este ato trouxe benefícios claros, como a promoção da saúde, o que acalmou parte de suas preocupações.

Sua experiência na linha de frente durante a pandemia na unidade de saúde da Vila Ferroviária, onde foi montado uma tenda para atender os pacientes sintomáticos, foi marcada por uma rotina dividida entre dias de atendimento normal na unidade e dias dedicados exclusivamente a tenda, onde eram atendidos os pacientes com suspeita do vírus, e o fluxo foi organizado para encaminhar qualquer paciente com sintomas para a tenda, evitando o contato com os demais. A pandemia alterou radicalmente a rotina da unidade, priorizando o atendimento de urgências e deixando em segundo plano o acompanhamento de doenças crônicas e outras necessidades típicas da atenção primária. Esse equilíbrio resultou em um prejuízo significativo para os pacientes, com relatos de pessoas que internaram por problemas de saúde exacerbados pela COVID. Essa situação foi difícil para ele, pois via seus pacientes perdendo o controle de suas condições de saúde, enquanto o sistema se adaptava à nova realidade imposta pela pandemia. Isso foi, também, um desafio enfrentado pelos gestores da saúde, que precisavam tomar decisões em meio a muitas incertezas. Com todo o empenho das equipes para oferecer o melhor atendimento possível, a sobrecarga e o cansaço foram intensos.

A pandemia não apenas trouxe uma mobilização coletiva dentro da equipe, onde todos queriam ajudar e ser efetivos no combate à doença, mas também, houve uma fragmentação na equipe, algo que ele não havia percebido antes, pois, no dia a dia do posto, os profissionais de saúde normalmente trocam informações e trabalham juntos em espírito de colaboração. Porém, com o foco intenso na doença e a urgência de atender às demandas, as diferenças interpessoais, que antes eram menos evidentes ou naturalmente administradas, vieram à tona, amplificando conflitos e tensões. Segundo Augusto, estas tensões se tornaram quase permanentes, influenciando as relações no trabalho, os profissionais começaram a se isolar emocionalmente, o que prejudicou o diálogo necessário para o bom funcionamento do cuidado com os pacientes.

Em 2021, Augusto contraiu a doença, quando ele já tinha tomado três doses da vacina. Os primeiros dias foram muitos difíceis, e o que proporcionou mais conforto e segurança para ele durante o isolamento social, foi o privilégio de morar em um lugar amplo, cercado pela natureza. Por vezes pensava naqueles vivendo em espaços menores, com menos recursos (favelas), e espaços fechados (prédio, condomínio) que tiveram uma gestão da crise sanitária mais complexa. A Covid-19 mexeu profundamente com seu senso de identidade, sua autoestima e seus planos de vida, pois tinha vivido um grande conflito interno, que afetou sua estrutura pessoal e o fez perceber as incoerências humanas relacionadas à doença. Essa vivência trouxe não apenas para ele aprendizados importantes, mas também causou grandes perturbações, pois acredita que a pandemia igualou a todos em um campo de vulnerabilidades, rompendo com as diferenças sociais que costumam colocar uns em posições mais favorecidas que outros. Além disso, houve também mudanças significativas no seu cotidiano, especialmente no âmbito familiar, onde teve que adaptar uma rotina para evitar a contaminação em casa, e essa mudança afetou profundamente seu filho mais novo. O medo que a criança já tinha se intensificou, gerando distanciamento, ansiedade e impactando as relações interpessoais e afetivas dentro do próprio lar.

A pandemia mexeu profundamente com o estado emocional da população. Antes da pandemia, a demanda por cuidados psicológicos era alta e mal atendida, e com a chegada da pandemia, o impacto na saúde emocional das pessoas foi intensificado, o que exigiu uma atenção maior e uma força-tarefa mais robusta para lidar com essa questão, algo que não foi possível ser feito de maneira satisfatória. Especificamente para os profissionais de saúde, Augusto percebeu uma falta de apoio psicológico direcionado para eles e, claro, o isolamento social pode ter dificultado a criação de iniciativas como, por exemplo, a disponibilização de um espaço, onde os profissionais pudessem trocar experiências e falar sobre suas dificuldades, o que teria sido muito útil.

Em janeiro de 2020, Eliana estava em Boston, Estados Unidos. Quando foi visitar sua filha, já se assustou por conta de todas as precauções já no aeroporto. Durante o mesmo momento ela só tinha informações sobre alguns países e a partir daquele momento ela começou a se preocupar.

Com o fechamento de alguns países, Eliana ao voltar para o Brasil já teve que realizar discussões sobre o que seria feito a respeito com a clínica e a forma de que iriam atuar. Ela sentia um medo muito grande, em que ela sentia que o mundo iria acabar a qualquer momento, tanto pelo alastramento berrante que estava acontecendo do Covid.

Ela procurava se informar muito sobre o assunto, um dos exemplos que seguiu foi o fato dos Estados Unidos ter realizado a colocação de tendas para pessoas com suspeita de Covid, para diminuir a proliferação da doença. Não foi uma ideia muito aceita no começo, por conta da segregação entre o atendimento, mas ao passar do tempo foi sendo visualizado que iria ser primordial. A dinâmica foi rotatória, a equipe de saúde se alternava entre os dias de atendimento de demanda comum para o atendimento das tendas Covid.

Uma alternativa que Eliana achou para tentar capacitar e promover ao máximo a proteção para os profissionais, foi pedir para um profissional odontológico para capacitar as pessoas, pois ela percebeu que os dentistas tinham mais prática com a paramentação. Porém, após isso ela informa que mesmo capacitados eles passaram pela situação de escassez de máscaras, e para tentar contornar esse grande problema ela fez campanhas, e como tinha um conhecido que fabricava máscaras conseguiu driblar um pouco do transtorno.

Após esse período de total desconhecimento do Covid, começaram a receber as devidas proteções da prefeitura. Com a chegada dos testes ela passou por questões de discussões políticas por conta das tentativas, mas no fim conseguiu deixar as testagens nas tendas. Com o brilhante atendimento dos dentistas foi designado as coletas por eles, além do mais foi parado o atendimento odontológico.

Eliana se emociona até hoje ao lembrar sobre o quanto as pessoas foram unidas durante esse período, a unidade recebeu muitas doações, muita ajuda em todos os aspectos que estava sendo necessário. Ela lembra que algumas escolas de São Paulo os contataram pois estavam manufaturando face shield, que foi um item muito necessário nesse período.

Chegou um momento em que o Covid chegou ao ápice, contataram Eliana solicitando para ela fechar a unidade de saúde pois as unidades Hospitalares precisavam de mais Médicos para o suporte pois estavam em uma situação crítica, pedido com o qual ela não concordou, por entender o papel da atenção primária como imprescindível para o controle da pandemia Um dos casos que comoveu muito Eliana, foi de uma senhora que estava mal, seu marido a levou na unidade de saúde e ela perguntou o porquê dele ter levado lá e não em uma unidade hospitalar e ele respondeu que ela sempre passou com eles e gostava muito do atendimento, porém ela acabou falecendo.

Quando alguns profissionais da saúde da unidade contraíram Covid, foi um momento de muito medo e comoção com as pessoas que trabalhavam lá. Pois com a contração do Covid era assustador e acabava sendo uma fatalidade.

A chegada da vacina foi o ocorrido mais reconfortante que houve, pois a vacinação na unidade sempre foi bem vista e muito esperada. Claro que tinha muitas pessoas que tinham medo de tomar a vacina e pessoas que estavam agoniadas para a chegada do momento de serem vacinadas.

Tiveram a ajuda de um voluntariado de alunos por um bom tempo durante a pandemia, no qual ligavam para os pacientes para saber qual era a situação dos pacientes. Além disso, também teve um teleatendimento para dar suporte a pessoas que precisavam de informações, porém havia receio de sair de casa com medo de se contaminar.

Nathália, médica no Centro de Saúde Escola de Botucatu nunca esquecerá aqueles primeiros dias de pandemia. Aos 40 anos e há uma década e meia no Centro de Saúde Escola dedicada à experiência de atendimento a adultos, ela sempre pensou que estava preparada para qualquer situação. Mas não estava preparada para os desafios que estavam por vir. Em março de 2020, Nathália havia acabado de retornar de sua segunda licença-maternidade. Depois de apenas duas semanas de volta ao trabalho, veio o decreto: quarentena. Em 23 de março, a cidade silenciou, mas o centro de saúde onde ela trabalhava tornou-se um dos pontos de atendimento na linha de frente contra o vírus desconhecido. Nathália foi chamada a enfrentar o desafio, o que fez com uma mistura de medo e incerteza. Com um bebê de seis meses em casa e a perspectiva de enfrentar uma doença sobre a qual pouco se sabia, ela oscilava entre a coragem profissional e o medo pessoal, quando se perguntava: Será que vou levar isso para casa?”, “Será que estou fazendo a coisa certa?” Nathalia sentiu-se obrigada a continuar sua rotina de trabalho presencial. Apesar do medo do desconhecido e do risco de contrair Covid-19, ela optou por seguir em frente, contando com o apoio das funcionárias que, apesar do receio, decidiram continuar trabalhando. Nathalia sabia que precisava estar ali, não apenas pelo dever profissional, mas também por sentir-se forte e saudável o suficiente para encarar o desafio. “Vida que segue”, pensava, enquanto se preparava física e mentalmente para enfrentar o novo cenário que surgia.

Apesar de o centro de saúde fornecer equipamentos de proteção individual, a demanda era imensa. Em alguns momentos, houve falta de materiais, o que forçou a equipe a buscar alternativas por conta própria. Cada ausência de equipamentos de proteção individual era um lembrete cruel da realidade que enfrentavam: uma doença altamente contagiosa, um sistema de saúde despreparado e a incerteza quanto às melhores práticas de atendimento.

Enquanto o governo ainda definia diretrizes e emitia orientações contraditórias, Nathália e seus colegas se apoiavam nos poucos estudos internacionais disponíveis, quase todos escritos em inglês. Ela passava as noites estudando artigos médicos recém-publicados, tentando encontrar uma base segura para seus atendimentos. Cada nova descoberta trazia um pouco de esperança e clareza, mas também mais dúvidas. Em um país onde as decisões mudavam a cada semana, a ausência de uma resposta centralizada e clara tornava a experiência exaustiva e frustrante. Durante quase dois anos, Nathália dedicou-se exclusivamente ao atendimento de casos de Covid-19. No início, os pacientes com sintomas respiratórios eram recebidos dentro da unidade, mas logo o atendimento foi reorganizado para ocorrer em tendas montadas do lado de fora. A nova rotina tornou-se sua vida. No começo, o medo prevalecia. Cada paciente que atendia trazia consigo a sombra da contaminação, e a ansiedade tomava conta. Com o tempo, o conhecimento técnico se solidificava, mas o sentimento de impotência crescia. Ela fazia o que podia, mas sabia que não era o ideal: “era como lutar contra uma maré constante e implacável, onde cada vitória parecia pequena diante das perdas.”

A mudança, porém, não se restringiu ao ambiente de trabalho. Sair de casa tornou-se uma experiência surreal: ruas desertas e um ar carregado de tensão. Ir ao supermercado, por exemplo, era encontrar rostos ansiosos e perceber o desconforto e a cautela ao redor. Além disso, a desconfiança e o medo se infiltraram nas relações pessoais. Como trabalhava na linha de frente, ela passou a ser vista por conhecidos e pelas mães do círculo social como uma possível “portadora” do vírus, o que trouxe um novo tipo de isolamento.

Até mesmo o hábito de frequentar a academia foi afetado. Com o fechamento do espaço, Nathalia viu-se sem alternativas para manter suas atividades físicas regulares, e, mesmo quando a academia reabriu, ela não se sentia segura ou disposta a retornar. Toda a dinâmica da vida havia mudado, exigindo que Nathalia enfrentasse não só o medo do vírus, mas também o peso da responsabilidade que sentia em proteger a si mesma e aos outros. Nathalia estava em uma fase de grandes avanços em sua saúde e qualidade de vida, havia incorporado exercícios e um controle alimentar em sua rotina para perder peso e se sentia bem consigo mesma. Porém, com a chegada da pandemia, tudo isso foi interrompido, aos poucos, voltou a ganhar peso e ao sedentarismo, enfrentando o estresse e a tentação de comer de forma desregrada, ao mesmo tempo em que tentava se manter saudável diante do risco constante de contrair Covid-19. Ela sabia que precisava cuidar de seu corpo para enfrentar o vírus, mas as pressões do momento e o peso emocional tornavam isso mais difícil.

A pandemia trouxe uma mudança abrupta para o cotidiano, instaurando um clima de desconfiança. Cada pessoa ao redor parecia ser um possível portador da doença, o que levava todos a manter distância. A família, antes unida na rotina e convivência, agora mantinha um distanciamento cauteloso. O diagnóstico começou a avançar com rapidez em Botucatu; muitas vezes, era possível fazer testes rápidos ali mesmo. Mas, mesmo com os avanços no diagnóstico, a angústia era inevitável. Ela não vinha só pelo medo de contrair a doença, mas pela realidade implacável: o número crescente de mortes, as UTIs lotadas, a escassez de oxigênio que levou a acontecimentos tragicos em Manaus que vimos pela mídia. Isso era especialmente doloroso. Era desolador sair de casa, ver as ruas desertas, sabendo que o risco era real e iminente. E tudo estava suspenso: escola, academia, atividades cotidianas. Quando se tratava de ir ao supermercado, a responsabilidade recaía sobre aqueles que já estavam expostos, como ela. Tinha que haver planos de contingência, planos B. Nathalia estabeleceu  um protocolo com seu marido: se ela apresentasse algum sintoma, nem voltaria para casa, iria para outro lugar. Para enfrentar essa situação, a firmeza precisava vir de dentro. Não bastava a capacitação médica; qualquer profissional da linha de frente, fosse médico ou enfermeiro, precisava estar psicologicamente fortalecido para lidar com a pressão e a realidade daquele momento.

Nathália sempre foi uma pessoa positiva. Para ela, o otimismo não é uma fuga da realidade, mas uma confiança genuína de que, em algum momento, as coisas vão dar certo. Sua espiritualidade foi uma força essencial nesse processo, ancorando-a na fé e na convicção de que, aconteça o que acontecer, ela saberia lidar, como ela destacou na entrevista: “Quem vai atender? Sou eu, Nathalia. Então tem que ser eu.” Esse pensamento guiava suas atitudes. Ela se fortalecia em suas orações, entregando-se ao que a vida trazia, com uma aceitação serena, mas firme. Mesmo no receio de transmitir a doença ao bebê de seis meses, ela se confortava em saber que ele estava forte e vacinado, pronto para enfrentar o que fosse necessário. E se tudo dependesse da vontade divina, ela estava pronta para aceitar. Apesar do medo constante, ele nunca tomou conta de seu coração. Ela o reconhecia, mas não permitia que ele a dominasse. Assim, Nathália seguia em frente, indo trabalhar todos os dias, com a serenidade de quem escolheu enfrentar o desafio com coragem e fé.

Em meio a esse cenário, ela viveu uma situação particularmente marcante: um paciente idoso e debilitado veio a óbito em sua presença, na área de Covid da unidade onde trabalhava. Ela sabia que o quadro clínico do paciente era grave e que ele já deveria ter recebido assistência em outro local. No entanto, por uma série de circunstâncias, ele acabou sendo atendido por ela e não resistiu. Esse evento a abalou profundamente, mesmo sendo uma profissional experiente e racional, o impacto emocional da situação foi inevitável, especialmente em um momento em que ela já lidava com tantas mudanças e sacrifícios pessoais. Foi a única vez em que ela precisou de um afastamento de três dias, para tentar recompor seu equilíbrio. A médica tinha contraído o Covid-19 duas vezes, em junho de 2020 e junho de 2021. Na primeira infecção, ainda sem vacina disponível, seus sintomas foram leves, limitando-se a uma breve perda de olfato e paladar, além de uma coriza passageira. Um ano depois, ao testar positivo novamente, estava assintomática e apenas descobriu que estava contaminada após a confirmação de colegas próximos de trabalho. Diante dessa realidade, ela decidiu testar toda a família, incluindo seu bebê de apenas nove meses, porque sentia a necessidade de saber com precisão quem havia sido afetado. Apesar do rigor em cuidar de todos, Nathalia explica que dentro de casa foi impossível implementar restrições severas, como o uso de máscaras ou isolamento dos membros da família. Cuidando de duas crianças, a situação era emocionalmente desgastante e exigia um nível de adaptação extenuante. Ao compartilhar suas reflexões, ela é tomada pela emoção, reconhecendo que os desafios da pandemia foram muito mais intensos e duradouros do que a maioria esperava.

Nathalia fala sobre o peso de assistir ao impacto do Covid em uma população já vulnerável, onde a realidade social e econômica agravava os efeitos da pandemia. Em sua unidade básica de saúde, ela lidava não apenas com pacientes gripados ou ansiosos sobre a Covid-19, mas também com pessoas cujas condições crônicas, como diabetes e hipertensão, pioraram devido ao estresse e à falta de acesso regular ao tratamento. Além disso, a instabilidade econômica e a suspensão de benefícios sociais deixavam muitas pessoas desamparadas, gerando uma pressão emocional e social que a afetava profundamente. Ela sentia a frustração de ter pouco a oferecer além do essencial, pois muitas vezes não havia estrutura para encaminhamentos ou medicamentos para os pacientes. Nesse cenário, ela encontrou força no seu pragmatismo e na clareza de suas limitações, como médica de uma unidade básica de saúde em Botucatu, seu compromisso era fazer tudo o que estivesse ao seu alcance, mesmo que isso não resolvesse totalmente as necessidades de seus pacientes. Ela lidava com a realidade de forma direta, sabendo que muitas das soluções ideais estavam fora do seu alcance, mas ainda assim mantinha o foco em oferecer o que era possível. Essa abordagem, apesar de prática, não diminuía a tristeza e o peso de ver tantas vidas afetadas, especialmente quando via de perto as dificuldades de pessoas sem muitos recursos para enfrentar a crise.

Durante os anos críticos da pandemia, as questões de saúde mental se tornaram um desafio crescente no atendimento básico. A médica observa que durante 2020 e 2021, houve uma onda de descompensações clínicas, principalmente entre pessoas com diabetes e hipertensão. No entanto, a partir de 2022, um novo problema começou a emergir de forma intensa: os transtornos psíquicos e a demanda por apoio em saúde mental aumentou drasticamente, com casos de depressão e ansiedade cada vez mais prevalentes. Ela reconhece que, embora as condições clínicas estejam hoje mais controladas, as dificuldades mentais e emocionais se mantêm em alta, apresentando desafios para a equipe de saúde e interferindo diretamente na rotina de atendimento. Em sua prática, Nathalia percebe que os problemas mentais acabam relegando os cuidados clínicos a um segundo plano. Ela exemplifica que não adianta estabilizar a pressão arterial de um paciente se ele enfrenta estresse financeiro, como a perda de emprego, ou se vive em um ambiente familiar instável, marcado por violência doméstica ou problemas com os filhos. Ela observa que essas dificuldades afetam o engajamento das pessoas no tratamento, pois suas preocupações são mais urgentes e, muitas vezes, insuperáveis. Nathalia vê como os fatores emocionais e sociais pesam na adesão ao cuidado, complicando o controle de condições crônicas.

Além disso, a situação econômica e social do país agrava esse quadro. Em muitas famílias, a alimentação saudável e balanceada, essencial para controlar doenças crônicas, tornou-se inacessível. Nathalia menciona, com uma pitada de humor ácido, que itens básicos e frescos, como um pé de alface, custam quase o mesmo que produtos industrializados, o que reflete a desigualdade no acesso a uma alimentação saudável. Assim, a prática clínica enfrenta uma barreira dupla: a falta de recursos econômicos e a complexidade emocional dos pacientes e de seus familiares. Dessa forma, a médica entende que sua atuação profissional vai além do controle de doenças físicas, pois envolve escutar e compreender o contexto de vida dos pacientes. Ela sabe que sem um suporte adequado para as necessidades mentais e sociais, muitos dos esforços médicos acabam sendo insuficientes para garantir a adesão ao tratamento.

O período da pandemia foi um aprendizado e uma experiência, que mostraram tanto uma visão prática quando humanista. Para a médica o que vivemos foi uma provação, um verdadeiro teste de resistência, que nos trouxe lições sobre o valor dos hábitos saudáveis, alimentação equilibrada, prática de exercícios, vacinação e cuidado com a saúde mental. Ela compartilha que, enquanto muitos interpretaram a pandemia sob diversas lentes, para ela, tudo era ciência, e a resposta deveria ser prática e baseada em medidas concretas de saúde. Para Nathalia, a fé e a ciência foram seus pilares pois, ela é católica de formação e atualmente segue o espiritismo kardecista, o que reforça sua compreensão da necessidade de resiliência espiritual, ao mesmo tempo, ela não abre mão de práticas baseadas na medicina e nas orientações científicas, como isolamento, vacinação e protocolos médicos. “Deus salva, mas você precisa fazer a sua parte”, diz ela, mostrando sua visão de que a fé deve andar lado a lado com as ações práticas.

Um dos pontos mais dolorosos, foi a sensação de isolamento e a falta de interação humana. Ela é alguém que valoriza sorrisos, abraços e momentos compartilhados com colegas e amigos, e sente que a falta desses elementos tornou o ambiente de trabalho um lugar pesado, sem alegria. A pandemia restringiu esses gestos simples, como o café em grupo ou um cumprimento caloroso, o que fez com que o ambiente se tornasse denso e triste. Ela reconhece que isso afetou o bem-estar coletivo, trazendo uma energia negativa que afetava até aqueles que tentavam manter o otimismo.

Além disso, o contexto social e emocional agravou o peso da pandemia para muitos: perdas, internações, o medo constante e as incertezas tornaram o dia a dia uma sequência de preocupações. Ela decidiu que, para sobreviver emocionalmente, precisava se recusar a se deixar abater por esse clima. Embora o autocuidado físico tenha ficado em segundo plano, ela lembra que sua prioridade era se manter bem para seus filhos e sua família.

Ao lembrar desses dias, Nathália percebe o quanto amadureceu, pois para ela “foi uma experiência razoável”, diz ela quase de forma modesta. Mas a palavra “razoável” parece insuficiente para descrever o peso emocional e físico que ela carregou. Ela viu o sistema de saúde pública ser colocado à prova, enfrentou dilemas éticos e técnicos e, acima de tudo, aprendeu a conviver com o desconhecido. Hoje, olhando para trás, Nathália entende que aqueles anos de luta e superação deixaram uma marca indelével em sua vida. Ela se sente mais forte e capaz, ciente de que, apesar das limitações e dificuldades, cumpriu seu papel em uma das maiores crises de saúde do século.

Com uma visão prática e empática, Nathalia expressa a importância de enfrentar os sentimentos, seja a tristeza ou a preocupação, em vez de negá-los. Quando ela passou por um episódio especialmente difícil, que a tirou de seu “eixo”, ela imediatamente buscou apoio e se permitiu afastar por alguns dias, reconhecendo a necessidade de se fortalecer psicologicamente. Ela encontrou conforto em momentos simples, como brincar ao ar livre com os filhos, mesmo dentro das limitações impostas pela pandemia. Esses momentos de descontração e contato com a natureza foram cruciais para sua saúde mental, pois, como ela diz, “senão você não sobrevive”.

Ao final, a médica destaca a importância de cultivar a positividade em tempos difíceis. Ela acredita que aqueles que encontraram uma forma de se alegrar, mesmo que fosse em pequenas coisas, mantiveram a saúde mental e física mais preservada. Esse equilíbrio, para ela, foi fundamental para atravessar o desafio da pandemia.

Scheilla, médica sanitarista, 67 anos, moradora de Botucatu-SP. No início da pandemia de COVID-19, a doutora Scheilla trabalhou à distância, devido à sua idade e às comorbidades de seu marido. Com isso, não entrou em contato direto com pacientes positivados ou com suspeita de COVID nesse período inicial, pois realizava consultas por ligações telefônicas ou vídeo-chamadas.

Quando houve redução dos casos de COVID, ela foi direcionada para o atendimento de doenças crônicas. Mesmo não entrando em contato com pacientes sintomáticos respiratórios, relatou dificuldade de adaptação ao atendimento presencial, por se sentir insegura.

Em sua entrevista, afirmou ter visto muitos profissionais de saúde negligenciando medidas sanitárias necessárias para evitar a infecção pelo coronavírus, o que ocasionou muita contaminação em sua unidade de saúde.

Embora tenha contraído COVID-19 durante suas férias no final do ano, não foi o local de trabalho sua fonte de contágio.

Por conta de experiências voltadas à saúde mental durante a pandemia, afirmou ter se aprofundado na área. “Agravou muito as questões mentais, está com sobrecarga de pacientes utilizando medicações psiquiátricas”, disse.

Por fim, um dos seus maiores aprendizados na relação médico-paciente nesse período foi a valorização do diálogo. “Tento fazer uma escuta sempre que posso. Acho que é algo mais digno do meu trabalho do que receitas e exames isolados”, ratificou.

 

Valéria, médica, relata que o primeiro impacto que teve foi quando o primeiro paciente suspeito deu entrada na unidade onde trabalha e foi preciso modificar toda a vestimenta que comumente era usada para uma vestimenta específica, como uso de máscara e aventais descartáveis. Ademais, o outro impacto foi sobre a recepção e cuidado dos pacientes dado que eram muitos pacientes por dia. Segundo a médica, foi montada uma tenda para o atendimento dos pacientes que estavam com suspeita da doença. agora, em relação ao impacto da pandemia na vida da Valéria, ela relata que sentiu temor, receio, tanto de adoecer quanto de transmitir o vírus dado que a médica mora com o marido. além disso, ela tinha medo de que os seus familiares entrassem em contato com o vírus, como a sua mãe que é do grupo de risco, devido a isso ela se afastou e ficou meses sem encontrar com a sua mãe, como forma de evitar o contágio e protegê-la.

Apesar de todas as partes negativas de toda a pandemia, Valéria narra que a pandemia lhe trouxe um desafio e um sentimento de próprio reconhecimento profissional dado que a sua profissão foi essencial para a luta contra a doença. Ela também diz que foi um momento de muito fortalecimento e ressignificação como profissional da saúde,  segundo ela “a minha escolha pela medicina foi muito legitimada” e também “passei a ter uma postura mais saudável”

Durante a pandemia, a médica narra que teve algumas crises de ansiedade, não só da pandemia em si mas do trabalho e da sua personalidade como um todo, “sou muito perfeccionista, não me permito errar”. Assim, para tentar melhorar, Valéria começou a fazer yoga e levar as coisas de maneira mais leve, inclusive no trabalho,  tudo isso graças a pandemia e todo o ressignificado que ela trouxe para a médica.

Em relação ao serviço, ela relata que além dos pacientes com Covid, sempre houve uma preocupação com os pacientes programáticos, seja pelo atendimento por telefone ou mesmo presencial.

Para Valéria, ela diz que pelo fato de ser médica, ela sabe a real importância do isolamento social, principalmente com relação a sua mãe, que pedia pela presença da filha, e ainda assim, Valéria não cedeu e continuou resistindo, mantendo o contato apenas via chamadas e redes sociais, visto que era de extrema importância manter o distanciamento durante a pandemia.

Em relação às experiências com os pacientes, ela diz que todas foram positivas. Valeria diz que teve uma experiência pontual na própria família, que para ela foi uma surpresa. A médica tem uma tia, a qual tem uma divergência de opinião quanto a pandemia, e essa parente, teve Covid, e durante toda a doença Valeria sempre se manteve presente e se preocupando, por meio de ligações e mensagens de texto. De acordo com Valéria, a sua tia fez uso de medicações e kit Covid e tentou convencer a médica de que a utilização da medicação e do Kit foi de suma importância para que a doença não evoluísse, e como Valeria discorda, ela tentou conversar com a tia e mostrar-lhe o porque não concordava com ela. Porém, segundo a médica, a sua tia não aceitou o seu posicionamento, sendo, às vezes, até mesmo agressiva com a médica. para tentar contornar toda a situação que estava passando, Valeria preferiu se distanciar com relação aos posicionamentos opiniões até mesmo para manter a relação familiar que tinha com a tia. Em suma, toda essa experiência foi, para a médica, uma surpresa negativa que “me deixou embasbacada” .

Valeria diz que o momento da chegada das vacinas foi, para ela, de muita expectativa e muita felicidade, além de muito orgulho em fazer parte do SUS. Além disso, a médica sempre fala sobre a importância da vacina aos seus pacientes e ela também afirma que tiveram poucos pacientes que não se vacinaram.

 

Victória é uma médica da família e da comunidade que trabalhava inicialmente em Areópolis, uma cidade pequena no interior de São Paulo. Ela conta que a expectativa era que a pandemia não tivesse tanto impacto nessa cidade. Posteriormente, ela foi chamada por um concurso a trabalhar em Botucatu. Foi ali, então, que ela percebeu que estaria na linha de frente de combate à pandemia.

 Na segunda semana de trabalho em Botucatu, ela recebeu um treinamento para coleta de swab nasal, quando então começou a trabalhar em equipe domiciliar. Victória assume que, mesmo que tenha havido um treinamento, ela sentia um certo "desamparo", uma falta de uma orientação melhor sobre como se proteger. Ela refere também ter tido medo de ficar doente e de principalmente transmitir o vírus da COVID-19 para outras pessoas.

 Para ela, o que deixou o contexto mais tranquilo foi o fato de trabalhar com pacientes com sintomas leves, que tiveram bons desfechos. Ao realizar visitas, ela conta que era como "se estivesse entrando em uma “nuvem de vírus" e que, mesmo com o uso de toda a paramentação, havia uma insegurança com relação à contaminação. Ela destaca que havia sim pacientes que faleceram, mas que a maioria melhorava, o que minimizava, em parte, o medo da doença.

 A médica conta que, no começo da pandemia, as pessoas tinham uma grande preocupação e muitas perguntas sobre a doença, mas que, com o tempo, se tornou mais difícil sensibilizá-las a se isolarem, já que a tolerância com o isolamento foi diminuindo. Ela reflete que, por isso, o início e o final da pandemia foram tão distintos.

 Victória destaca que os conflitos familiares, o contexto político e o isolamento social impactaram decisivamente na sua realidade. Nesse contexto, o negacionismo afetou pessoas que ela considerava muito esclarecidas e com as quais ela se importava, o que gerava nela um sentimento de impotência. De um lado ela percebia uma preocupação excessiva com a doença por algumas pessoas, enquanto havia o negacionismo do outro lado. Ela aponta que a terapia por teleconsultas teve um papel fundamental para ela conseguir lidar melhor com todo esse contexto pandêmico.

 A médica não se contaminou durante o auge da pandemia e não precisou lidar de forma mais próxima com o adoecimento ou agravamento de familiares ou de pessoas íntimas. Já pessoas mais distantes do seu ciclo social foram acometidas pela forma grave da doença e perderam familiares. Portanto, a experiência íntima de Victória com a doença foi menos impactante. No seu trabalho, ela percebeu que, quando se usava o equipamento de proteção individual da forma correta, a disseminação do vírus era baixa, já que a maioria dos casos de contaminação que ela presenciou no trabalho ocorriam fora desse ambiente.

 Embora não tenha perdido pessoas próximas, ela e sua equipe realizaram o acompanhamento de muitos lutos familiares. Ela conta que era difícil lidar com toda a situação, já que as mortes eram inesperadas e ocorriam em pessoas que não se esperava que fossem ser acometidas. Ela diz que, por isso, a sensação era de que o que a equipe tinha para oferecer era pouco. Nesse sentido, o fortalecimento da família era a estratégia adotada por ela.

 Segundo ela, o adoecimento mental dos profissionais da saúde veio em um momento posterior, já que, inicialmente, eles precisaram atuar contra a pandemia. Não havia suporte psicológico para eles nesse momento e só tinha esse cuidado quem o buscava individualmente. Dessa forma, quando ela percebeu que estava ficando ansiosa com as notícias que recebia durante a pandemia, ela selecionou fontes confiáveis para se informar, como sociedades brasileiras de medicina, buscando se poupar do excesso de informações alarmistas.

 Victória destaca a vacinação como fator importante no manejo de pacientes com fator de risco para a COVID-19. Ela conta que, em Botucatu, além das campanhas, havia a vacinação domiciliar. Houve a necessidade de, naquele momento, desmistificar e convencer sobre a vacinação, já que havia muita insegurança e desinformação a respeito.

 Após a pandemia, Victória passou a valorizar mais atividades físicas e atividades ao ar livre. Ela diz que sempre valorizou outras atividades além do trabalho, mas que isso foi reforçado pela pandemia. A médica destaca também a importância da psicoterapia para manutenção da saúde mental e não só para tratar doenças.

 Atualmente, apesar de ter sido difícil, Victória vê que a instituição em que ela estava permitiu que ela trabalhasse de uma forma segura e positiva para as pessoas