Cuidando das Reações

A reação pode acontecer a qualquer momento, antes, durante e após o tratamento.” Como diz a médica Márcia Jardim, a reação é sempre uma incerteza, seja para os profissionais ou para o paciente. Como as reações hansênicas podem ocorrer mesmo após a poliquimioterapia, elas acrescentam complexidade à compreensão do que seria "cura" em hanseníase. E compreender a reação nesse momento de fragilidade muitas vezes é difícil para o paciente. Retomar a frequentar os serviços de saúde e reiniciar o tratamento com medicações pode ser mais custoso ainda.

As reações trazem limitações ao cotidiano dos pacientes. Os afazeres básicos do dia-a-dia podem se tornar difíceis, levando consigo não só um impacto físico, mas também emocional. A técnica em enfermagem Elen nos conta: "Eles não conseguem pentear o cabelo, não conseguem fazer uma comida, não conseguem varrer uma casa, principalmente as mulheres. Os homens se sentem muito presos porque não conseguem trabalhar fora, não conseguem pegar no pesado, então é triste você ver uma pessoa ficar dependendo de outra, é complicado.” 

E além da dor física, a fisioterapeuta Mabel elucida o impacto emocional: “Então, às vezes, as dores se tornam muito maiores pelo sofrimento que aquele individuo tem. E a hanseníase, pelo que eu percebo, que emocionalmente é uma dor sofrida, é o sofrimento que aquele diagnóstico traz para o paciente, não é uma dor simplesmente que você pode graduar de 0 a 10 perguntando quanto ele tem de dor. Porque a dor, realmente, ultrapassa esse limite, é uma dor na alma, não é uma dor apenas física.”

 

A dermatologista Maria Kátia se recorda do impacto que a reação hansênica teve sobre a vida pessoal e profissional de dois de seus pacientes. Mesmo que tenha ocorrido anos atrás, ela mesmo diz "nunca ter se esquecido". Participar do cuidado de pacientes que vivenciam reações evidencia experiências de vida que marcam para sempre os profissionais.

"Nós uma vez atendemos um goleiro, um goleiro titular de um grande time do Rio de Janeiro, um time de repercussão nacional, e ele foi diagnosticado pelo médico da equipe. Enquanto ele estava tratando com a poliquimioterapia, o time pagava o salário integral dele, e ele tinha uma garra na mão, ele era goleiro, e uma lesão no dorso do pé. Quando acabou o tratamento, ele foi demitido e ele passou a receber... Um cara que recebia um salário enorme de um time titular, que tinha carro do ano, que morava bem – ele passou a receber um salário mínimo. E ele foi morar em São José do Vale do Rio Preto, que é uma área distrital de Petrópolis, no quintal da casa da sogra. Essa mudança foi tão mobilizadora pra ele, que um dia ele apareceu totalmente deformado no meu ambulatório. Ele fazia placas enormes edemaciadas, o lábio edemaciado; eu não o reconheci quando eu o vi. Então, nenhum de nós passa por uma experiência dessas sem ser afetado por ela, é muito triste ver isso. Bem como eu lembro de um outro paciente que era jardineiro da Vale, ele cuidava dos espaços de jardim da Vale, e ele foi demitido e aí aquele cara jovem, que tinha em torno de... O nome dele era Reginaldo, eu nunca esqueci, ele perdeu a esposa, a vida dele se desorganizou completamente, ele perdeu qualquer vínculo trabalhista, essa pessoa mudou a vida dela para sempre com esta doença. E são muitas as experiências desse tipo. Então essa é uma experiência de cuidado que nos vincula, que a gente não consegue largar, que a gente se sente útil para os pacientes, mas ela é extremamente mobilizadora."

 

Diante de uma "cura" informada pelos profissionais de saúde, as reações hansênicas ocorridas após o tratamento despertam a desconfiança dos pacientes, o que as torna um desafio aos profissionais. A dermatologista Maria do Carmo nos diz que o impacto de receber o diagnóstico da reação hansênica pode ser maior do que receber o diagnóstico da própria hanseníase. 

“Eu acho que existe um impacto até maior, quando o paciente recebe o diagnóstico tem um impacto, mas quando ele vem fazendo o tratamento e tem uma reação, o impacto é maior. Porque parece que tira a esperança. Como diz: “o que que tá acontecendo? Eu estava indo bem e de repente as manchas voltaram”. Eles usam muito isso, "doutora, a doença voltou".

 

A tentativa da equipe em diferenciar o que seria a doença causada pelo bacilo da hanseníase, e o que seria a reação hansênica, tem por objetivo confortar o paciente nesse momento em que se vê sem esperanças. Mais uma vez, o paradigma da cura em hanseníase entra em jogo, como nos diz a dermatologista Sônia: “Ele tá curado microbiologicamente, mas ele ainda tá tendo as reações imunológicas. Isso você tem que deixar bem claro pra ele entender que hanseníase tem cura, porque muitos deles "ah, mas como? Eu não tô curado?". 

A médica Maria Leide diz que as reações trazem um sofrimento não só para o paciente, mas para todos à sua volta. Nesse sentido, o trabalho da equipe multidisciplinar é fundamental para o cuidado integrado do paciente. “E eu acho que a reação tem que ser abordada, assim, o paciente tem que ser abordado clinicamente, psicologicamente, a reação não pode ser banalizada, porque você não só trata a reação com medicamentos, a reação é sindrômica, e a abordagem também tem que ser multidisciplinar e muito cuidadosa”. 

Maria Leide também nos alerta sobre o próprio tratamento medicamentoso das reações hansênicas, cujos efeitos adversos podem ser tão incapacitantes quanto a própria reação. É o caso do uso dos corticoides:é um tratamento longo, efeitos adversos, então a hanseníase não mata, mas os medicamentos para reação matam. A gente tem pessoas que morreram por conta do corticoide. Então os pacientes ficam diabéticos, hipertensos, com glaucoma, têm osteoporose... São tantos problemas criados pelo excesso de corticoide”

 

Por fim, a criação de grupo de pacientes pode ser uma estratégia essencial para divulgar o conhecimento e aproximar os pacientes para haver ajuda mútua. A assistente social Elen comenta que os pacientes que frequentam o grupo de autocuidado do Hospital Universitário da UFRJ têm mais facilidade em lidar com a notícia de uma reação, pois já estão informados sobre sua possibilidade e suas alternativas de tratamento.

“Só que os pacientes no grupo de autocuidado já estão muito mais informados, eles sabem o que é uma reação, eles são avisados que eles podem passar por alguns momentos de reações, eles sabem quais são as medicações que podem tirar eles da reação, então é muito mais fácil de lidar. Paciente que não tá no grupo não tem acesso a tantas informações, então ele tem muito mais medo, muito mais dificuldades de enfrentar esse momento"