Dificuldades

O trabalho dos diferentes profissionais no cuidado à hanseníase é relatado por eles como extremamente gratificante e capaz de os conferir grande aprendizado acerca da doença e da própria vida em si. Nesse sentido, percebe-se que as satisfações atingidas pelos cuidadores estão diretamente relacionadas à superação que as dificuldades vividas nessa prática trazem, que são representadas por aspectos que vão além da doença em si, deixando evidente sua complexidade. 

Sendo assim, tratar a hanseníase se torna desafiador à medida que, para atingir a recuperação do paciente, é necessário não só utilizar medicamentos que promovam a cura do bacilo, mas também tratar reações e sequelas, além de promover a reabilitação física e psicossocial dos doentes. Isso demanda uma abordagem mais completa, envolvendo idealmente um trabalho em equipe, além da necessidade de acessar o paciente de uma forma mais próxima, para entender como ele se relaciona com a doença.

Dessa forma, um dos componentes do tratamento à hanseníase é fazer com que o paciente entenda a responsabilidade que ele mesmo deve assumir sobre seu próprio tratamento, o chamado autocuidado, que é uma prática de fundamental importância para manter tanto a adesão farmacológica, quanto a fisioterápica, o que nem sempre é alcançado, representando um risco à recuperação dos pacientes e à prevenção de sequelas. A fisioterapeuta Rosângela que trabalha tanto com a prevenção, quanto com a reabilitação dos pacientes através da fisioterapia e da coordenação de rodas de conversa entre eles, nos conta mais sobre o autocuidado e sobre suas dificuldades com esse tema:

"A primeira dificuldade é o paciente entender a participação dele no processo, essa é a primeira dificuldade. Alguns aderem rápido ao que a gente solicita e outros não conseguem compreender o benefício que você está trazendo pra ele. Até quando você prescreve uma palmilha pra um calçado, muitos entendem que esse calçado é pra ele passear, não é pra ele usar no dia a dia, então ele perde a função. Muitos acham que fisioterapia, você fica lá, só levantando e abaixando e levantando a perna, fazendo movimentozinho com o dedo, põe a mão na água, então isso é desnecessário, eu posso fazer em casa, mas vai fazer em casa, vai fazer correto? Às vezes, na frente da gente, eles conseguem fazer errado, imagina em casa ele sozinho como que ele vai executar, entendeu, E, às vezes, ele não consegue entender a importância e a necessidade dele vir, dele fazer, da constância, entendeu, que é um ganho gradativo, que a gente não consegue ganhar tudo de uma vez só. Quando ele vem hoje, ele falta amanhã, ele perdeu aquilo, que eu ganhei no dia anterior, e eu não consigo prosseguir, eu preciso começar de novo e, às vezes, o paciente não consegue entender isso. Então, a principal dificuldade é essa. Porque, assim, quanto a apoio, quanto a equipe multiprofissional, que nós não tínhamos, e hoje nós temos, quanto a material, então assim, nós não temos essa dificuldade. A nossa maior dificuldade, às vezes, é o próprio paciente."

 

Apesar da falta de entendimento que pode ocorrer, vemos que nem sempre o paciente deixa de assumir seu papel no seu tratamento por escolha própria, mas sim pela dificuldade financeira, que pode o impedir de se deslocar com a devida frequência ao serviço de saúde e de adquirir os produtos ideais para seu tratamento, além disso, as condições de moradia e de higiene são fatores que podem facilitar o desenvolvimento da doença e aumentar a suscetibilidade às reações. A dermatologista Maria Leide nos fala sobre a dificuldade que ela encontra ao tratar pacientes com condições sociais menos favorecidas, além de como isso influencia o curso da doença nessas pessoas:

"A hanseníase escolhe as pessoas mais pobres, são pessoas muito pobres. Então, muitas vezes, a doença nem é o mais grave que o paciente te traz, ele te traz... Ele é analfabeto, ele é miserável, ele tem uma história de desestruturação familiar, de violência... Então, assim, isso pra mim é o que mais incomoda na medicina e, nem na hanseníase, na medicina em geral é isso: saúde pública, você lidar com essa situação social das pessoas que adoecem dessas doenças endêmicas que a gente trata. Então isso pra mim incomoda muito, até mesmo que a doença, vou te falar uma coisa. E eu acho que quando as pessoas também estigmatizam os pacientes, acho que além da hanseníase tem a pobreza também, a pobreza é muito estigmatizada, e essas pessoas geralmente são muito pobres. Então eu acho que tratar da reação, paciente com reação é muito complexo, porque têm vários fatores que interferem na reação. Então a saúde bucal, o paciente com aqueles dentes, com uma saúde oral horrível, então, se não cuidar, saúde oral pode manter uma reação. Problemas psicológicos podem manter reação, isso na minha experiência isso está claro. Eu tenho um paciente que foi a Psicologia Médica que resolveu o problema dela da reação, melhorou a auto estima, ela não precisou mais usar a doença para segurar o marido, ela entendeu que o casamento tinha acabado, que ela não precisava usar a doença pra segurar o marido, nunca mais ela teve reação, paciente ficou boa. Então você não lida só com a doença, você lida com a doença e vários fatores que são fatores desencadeantes das intercorrências da doença."

 

O enfermeiro Wanderlei reforça a questão financeira como um fator dificultador, sobretudo em pacientes com incapacidades físicas, que demandam cuidados mais intensivos e idas mais frequentes aos consultórios. Destaca também que possuir um apoio por parte daqueles mais próximos, como a família, é fundamental para que o paciente consiga realizar o tratamento da melhor forma, dividindo as inúmeras responsabilidades do cuidado:

"A gente acaba fazendo, mais de 50% dos nossos pacientes no Brasil, eles entram em forma multibacilar. E uma boa parte já entra com o chamado Grau de Incapacidade I ou II, que é quando tem perda de sensibilidade ou existência de deformidade física visível. Então, devido a essas deformidades físicas visíveis, a essas incapacidades, o paciente precisa ter o autocuidado. Esse autocuidado, em muitas das vezes, precisa ter um suporte financeiro. Suporte financeiro para, por exemplo, adquirir um hidratante de uma melhor qualidade para hidratar um pé ressecado. Um suporte financeiro para conseguir uma melhor alimentação. Um suporte financeiro para locomoção até os serviços de saúde. Então, o principal que dificulta o paciente é a questão financeira, que eu vejo hoje. E também a gente recebe pacientes não só de Porto Velho, mas do interior do estado, então as distâncias, a dificuldade em relação ao território, por ser muito extenso, acaba também dificultando o cuidado do paciente ao longo do tratamento. E o não envolvimento da família também. Muitas das vezes o paciente acaba não informando à família que está doente, e a gente precisa do suporte familiar no tratamento, porque é um tratamento prolongado, de 6 meses a 1 ano. Algumas vezes a gente precisa tratar esse paciente 2 anos, são exceções, mas ocorrem. Então a gente precisa do envolvimento familiar. Quando não tem envolvimento da família acaba ficando difícil a condução desse paciente no autocuidado. Então as dificuldades são a não adesão familiar, o não suporte familiar, a dificuldade em relação à regionalidade, a questão da distância e, principalmente, a questão socioeconômica dos pacientes. Porque a hanseníase, embora possa dar em qualquer faixa etária, qualquer raça, qualquer condição social, classe social, ela está ligada ainda às questões de subdesenvolvimento, de condições econômicas desfavoráveis. "

 

Além das dificuldades financeiras que os pacientes acometidos pela hanseníase apresentam, há também a falta de financiamento que as instituições públicas de saúde sofrem, afetando os recursos disponíveis para tratar os doentes e para recebê-los, no que diz respeito à estrutura dos locais, que não promove o acolhimento necessário aos que chegam para serem tratados, gerando menor conforto ao paciente, o que pode atrapalhar a adesão a esse cuidado. A dermatologista Maria do Carmo, que trabalha em um hospital da rede pública da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, expressa essa dificuldade:

"Eu acho que a principal dificuldade é a falta de estrutura mesmo. A falta de estrutura de você ter uma estrutura que, nos modelos hospitalares, porque eu trabalho dentro de um hospital. Então assim, a gente ter essa estrutura que seja sensibilizada não só pra hanseníase, eu acho que tem isso, mas pra outras doenças crônicas. Que esse paciente, ele possa se sentir pertencendo àquela estrutura, ele não vai lá receber só uma, uma orientação, um cuidado. Ele, eu acho que a gente ainda precisa avançar muito nessa, nessa, nesse paciente global, nessa possibilidade de, de novos horizontes pro paciente, nessa reabilitação real do paciente. Não só reabilitação física, mas como a gente viu hoje nas aulas, a reabilitação social, a reabilitação econômica, eu acho que falta programas de governo que vejam essas necessidades, que eu acho que isso é uma coisa maior. Mas por ser maior, não implica de a gente não sair procurando formas de fazer dentro do contexto que a gente tem."

 

A falta de incentivos ao cuidado da hanseníase limita o trabalho dos profissionais, que se vêem impedidos de realizar uma abordagem mais completa aos pacientes, visando mantê-los em tratamento. Nesse sentido, a dificuldade de acessá-los de outras formas que não o hospital, aliado à pouca receptividade que esse ambiente oferece, resulta em uma perda da continuidade do cuidado caso o paciente não vá às consultas, por dificuldades de acesso e financeiras ou por um desconforto experimentado nesse ambiente. Antônia, técnica de enfermagem, nos conta o que considera importante nessa abordagem, que não está sendo feita por sua equipe:

"Eu acho que a nossa grande dificuldade é a pouca atenção que nós temos pro programa de hanseníase em si. Temos muitas coisas a fazer, a realizar, como a visita aos pacientes quando eles ficam um mês ou dois que não vem pegar a medicação, que a gente chama os pacientes faltosos. Hoje a gente não tem condução pra ir até esse paciente, não temos como entrar em contato com os contatos, ir nas casas fazer os contatos, que isso é de extrema necessidade, e esse é um dos principais motivos assim de tristeza do profissional porque a gente fica preocupado, a gente trata o paciente que vem, mas os contatos, a família, que a gente tem que fazer essa visita domiciliar, ver a família, como é que está a família, se tem algum caso, se ele foi o foco que tava ali transmitindo. Porque muitas vezes a família não vem, a gente diz pro paciente, olha tem que trazer contato, mas nem todo paciente tem essa consciência. Então, se a gente tivesse uma condução própria do programa pra gente ir até a casa do paciente fazer a visita domiciliar, fazer contato, o exame de contato da família, seria maravilhoso."

 

A dermatologista Sônia completa, relatando a falta de profissionais para compor as equipes, aliada a um grande número de pacientes, o que gera sobrecarga àqueles envolvidos no cuidado, além de prejudicar o cuidado dos pacientes, que podem precisar ser consultados mais rapidamente e serem agendados com maiores intervalos. Ela nos conta que “os serviços são sempre muito sobrecarregados, a quantidade de pacientes é muito grande.

Além disso, é possível perceber que a questão do preconceito e da estigmatização dos portadores de hanseníase é um fator que contribui para uma maior demanda por atenção por parte dos pacientes que aderem adequadamente ao tratamento. Nesse sentido, há uma maior necessidade de focar a consulta nas questões emocionais, deixando de lado por um momento a parte clínica, a fim de atender a essas requisições, além de haver uma maior frequência dos mesmos pacientes voltando às consultas sem queixas relacionadas puramente ao lado biomédico da doença. Maria Kátia relata sua experiência com esse tema, deixando claro que não é algo bem compreendido por todos os profissionais, especialmente os menos experientes no cuidado da hanseníase, como os residentes de Dermatologia presentes no serviço:

"A dificuldade, eu acho que, talvez eu perceba como a maior dificuldade é a carência dos pacientes de afeto mesmo. Então, muitas vezes, eu acho que também é a minha maior dificuldade na relação com meus residentes, médico-residentes. Porque os médicos residentes da Dermatologia querem aprender clínica e eles têm muita dificuldade de entender a integralidade, o paciente como um todo e uma troca que vai para além do orgânico e do biomédico. Então, os residentes ficam muito impacientes quando eles percebem que os pacientes retornam sem uma queixa clínica que justifique esse retorno antecipado. Eu acho que essa carência dos pacientes, num ambulatório que é uma referência pro Estado e que recebe muitas pessoas com condições graves clínicas, muitas vezes não nos permite dar o retorno de afeto e de vínculo que um outro paciente que não está com essa urgência clínica precisa para ser atendido. Eu acho que minha maior dificuldade é lidar, nesse processo de assistência e ensino, com pacientes e alunos, e como acolher todas as demandas dos pacientes, que passa da clínica à questão da carência de atenção, sem diminuir ou hipervalorizar uma ou outra queixa."

 

Por fim, o ortopedista Cabral reafirma muitas das dificuldades compartilhadas por seus colegas, destacando que a paixão pela profissão e, especificamente pela área da hanseníase, possibilitam a superação dessas dificuldades, com o intuito de seguir trabalhando e, assim, ajudar os pacientes:

"Dificuldades são as mesmas de qualquer trabalho na área governamental. Material, às vezes a gente opera uma ferida, uma úlcera no pé, e naquele momento não tem a palmilha que a gente quer colocar. E aí, “ah não tem a palmilha ainda”, “e você, por que não me avisou antes, eu tinha feito depois”. O número de pessoas trabalhando também nem sempre é satisfatório, nem sempre tão qualificados, muda muito profissional, às vezes você está treinando uma pessoa, a pessoa tá bem, daqui a pouco a pessoa vai para outro local ou o governo chama. Porque a gente trabalha num hospital de Irmãs, um hospital onde não tem muito recurso pra pagar funcionário, a maioria desses funcionários são emprestados pelo governo, e às vezes o governo chama de volta aquele funcionário, aí você tem que treinar outra pessoa. As dificuldades são essas. Eu não vejo isso como empecilho, não vejo, nunca vi essas dificuldades como empecilho porque a gente ama o que faz, são dificuldades que perfeitamente a gente pode transpor, transponíveis."