Abordagem da Transmissão e do Contágio

A transmissão da hanseníase, assim como outros aspectos da doença, traz diversos mitos que entram no lugar da informação científica, e são tidos como realidade. Para poder começar a explicação correta de como o contágio ocorre, é necessário que o profissional de saúde vá negando o misticismo que envolve o imaginário do paciente. O enfermeiro Wanderlei relata que  "eles vêm ainda com o imaginário popular, ainda vem com aquelas histórias de que a hanseníase se pega por abraço, por relação sexual, pelo beijo da mãe para o filho. Então, é o momento que a gente despende um maior tempo para orientar bem o paciente e tentar desmistificar um pouco. Aqui na região norte, a gente já teve algumas situações aqui em Rondônia de paciente dizer que tinha pego hanseníase porque nadou no Rio Madeira, porque comeu peixe de couro, porque andou na mata. Então a gente traz toda orientação técnica, toda orientação científica com a linguagem coloquial, trazendo a linguagem mais simples para formar um novo, trazer uma nova... um novo conhecimento para esse paciente."

 

Antônia reafirma essa necessidade, dizendo que "quando você vai eliminando esses mitos, eles veem que não é um bicho de sete cabeças, que é uma doença, digamos, comum. Não existe melhores ou piores doenças, mas fazendo um parâmetro, melhor você ter hanseníase do que você ter um HIV, do que ter uma doença degenerativa, porque existe um tratamento. (...) o término desse tratamento conduz com a sua cura, então eu acho tranquilo."

A partir desse momento, o paciente está preparado para receber a informação sobre a transmissão e como ela pode repercutir nas pessoas próximas, com a tentativa pelos  profissionais de explicá-la de forma clara, para que a explicação não gere mais dúvidas do que as que ele já tem sobre o assunto, como tenta fazer a dermatologista Sônia:

"Então, assim, o que eu explico é que existe duas formas: uma forma que é contagiosa e uma forma que não é, basicamente é isso. A forma contagiosa, eu explico que após a poliquimioterapia, a primeira dose, após 15 dias, você não contamina mais as pessoas. E explico que, mesmo que a pessoa não possua a forma contagiosa, tem que ser observado os contatos. O que são os contatos? São as pessoas que vivem ao redor deles. Por que? Porque com esse contato a gente vai determinar quem que passou essa doença. Porque às vezes a pessoa está com um lá, que está contaminando os outros, e que não sabe que é portador da hanseníase.”

Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de proceder com o exame de contatos após o diagnóstico, geralmente não evidente para os pacientes, que muitas vezes o consideram desnecessário, já que a doença demora muitos anos para se estabelecer e nem sempre um contato, mesmo que prolongado, resulta em infecção nas pessoas mais próximas. O exame de contatos pode, também, evidenciar outra dificuldade, que é contar para a família que tem a doença, pelas reações negativas que essa informação pode gerar devido ao preconceito. Maria Leide nos conta sua experiência com os pacientes que acompanha:

"(...) eu estava fazendo uma reunião com um grupo de Manaus, que é uma unidade centro de referência internacional de hanseníase, não só nacional e regional da Amazônia, com dois grupos do interior da Amazônia, um de Parintins e com um grupo do Rio de Janeiro, e no Rio de Janeiro nós tínhamos Caxias, Nova Iguaçu e o próprio HU. E uma paciente falou assim: "eu não digo pra minha família que eu tenho essa doença", e outra falou assim: "pois eu duvido que seja transmitido porque na minha família ninguém adoeceu disso, só eu". Então é muito complicado, porque as pessoas adoecem muitos anos depois, podem adoecer muitos anos depois, ou nem adoecem, ou o contágio foi fora da família, então é muito complexo isso. Aí eu costumo colocar essas possibilidades, mas quando o paciente tem uma forma infecciosa, aí eu falo "você tá transmitindo essa doença, você está eliminando bacilos, o que não quer dizer que todas as pessoas que receberem esses bacilos vão adoecer".

 

No entanto, sabe-se que o paciente pode ter sido contaminado com o bacilo em lugares fora do convívio familiar, como no trabalho, com amigos ou até mesmo em outros lugares. Além das diversas possíveis origens, o tempo longo entre o contágio e o desenvolvimento dos sintomas é outro fator que dificulta que o paciente descubra a origem da doença, uma grande necessidade para muitos que contraem  a hanseníase. A neurologista Márcia jardim explica que:

"(...) nós somos o segundo país do mundo em casos de hanseníase. Então a gente tem hanseníase em qualquer lugar que se vai. Isso eu costumo falar para todos os pacientes. Você andando, no elevador, na condução, numa sala de espera. É claro que a gente sabe que quanto mais contato, maior é o contágio e maior a chance de desenvolver a doença. As pessoas que convivem mais com uma frequência maior, que são os contatos que a gente fala domiciliares, tem uma chance maior, mas nada impede de você ter o contágio em qualquer lugar. Isso no país inteiro. Então eu acho que essa busca por um culpado, uma fonte… A gente tem muita hanseníase infelizmente no país. Não é pra gente sair apavorado com medo de andar na rua. Assim, eu falo isso porque achar uma fonte de infecção... assim, primeiro porque é difícil você ter uma fonte de infecção, segundo que é difícil você identificar qual foi. Mas essa ansiedade é frequente, muito frequente, sem dúvida. Acho que é uma necessidade você identificar, justificar, faz parte, acho que em qualquer doença."

 

É importante frisar que o tratamento impede a transmissão da doença, porque frequentemente as pessoas acometidas pela hanseníase têm receio de voltar às atividades do dia-a-dia após o diagnóstico. Maria do Carmo relata que:

"Por exemplo, uma criança, a mãe me perguntou se eu poderia dar uma carta dizendo - eu mandei pra escola - que a criança estava em tratamento, mas que não tinha nenhum risco de nada e que estava livre pra brincar com as outras, pra conviver com as outras, com os professores e tudo mais, que esse menino realmente ele já tinha acabado o tratamento. (...) Os multibacilares podem transmitir, mas com o tratamento, eles vão parar de transmitir, então não tem porque mais isolar, porque quem tinha, se alguém, se eles contaminaram alguém que geneticamente era predisposto, já foi contaminado nesse período. Que eles podem voltar a ter a vida normal, “doutora, posso comer no mesmo..., não precisa separar meu prato, não?” Eu digo, "pode beijar, pode ter relação sexual, pode trazer o neto no colo, pode afagar, pode beijar o marido, beijo de boca, o que for". Então, assim, eu tento falar muito claro com eles. "Qual a sua dúvida?" "Não, porque eu acho que pegando em alguém vai ter problema, que..." "Não precisa separar roupa de cama pra lavar." Então eu tento trazer a informação pra rotina deles."

 

Com isso, apesar do paciente aprender como se dá o contágio e o tratamento da hanseníase, as pessoas ao redor ainda mantém o pensamento preso no estigma e no medo de se contaminar, resultando em discriminação e exclusão dos portadores de hanseníase do convívio próximo. Sônia relata um caso, dentre muitos outros que tiveram esse desfecho, em que isso ficou evidente:

“Eu tenho um outro caso, uma senhora muito querida, uma paciente minha de muitos anos, que ela mora num bairro em que a casa dela é o centro de convivência do Bairro. Assim, não era o centro de convivência, todo mundo ia lá tomar um cafézinho, ela cozinha muito bem, fazia um docinho, fazia um pão de queijo, e a vizinhança toda ia lá. A partir do momento que ela começou a tratar hanseníase, ela não tinha uma visita. Isso deprimiu muito ela, ela falou para os vizinhos que estava fazendo tratamento. Isso teve um efeito negativo na evolução da doença dela, porque o psicológico afeta. Ela começou a ter mais reações que ela não tinha, evoluiu não de forma tão boa, fez várias neurites de repetição, e as pessoas se afastaram dela por isso. Os vizinhos, aquela amiga lá de 20, 30 anos que ia na casa dela tomar um cafézinho passou a não ir mais. Aí eles perguntam, se hanseníase pega fácil. Eu falo assim "gente, eu trabalho há 15 anos com hanseníase, eu nunca peguei. Eu converso aqui com vocês, abraço vocês, atendo 20 a 30 pacientes por dia com esse problema." Se pegasse tão fácil, como as pessoas acreditam que pega por via respiratória, contato prolongado e íntimo, por anos de exposição. Então a gente pegaria... Todos os médicos teriam que usar máscara, usar proteção especial pra atender os pacientes, o que não é o caso."

 

Por fim, a assistente social Elen ressalta que a informação sobre a transmissão e o contágio deve ser dada e repetida inúmeras vezes, quantas vezes o paciente necessitar, para que ele se aproprie dessa informação e esqueça as informações que se embasam no preconceito.

“Então, ainda não é, por mais que até se fale, tem que repetidamente dar essa informação. O médico dá, a fisioterapeuta dá, a assistente social, e a gente vai repetir até ele internalizar, ele aceitar e acreditar. Porque durante muitos anos, historicamente essa doença é uma doença bíblica, e que se falava muito de outras formas de transmissão, então muitas informações de pessoas, que, na verdade, não sabem, não conhecem a clínica da doença, passam informação e, às vezes, o paciente demora até a acreditar nas informações que a equipe de saúde dá. Então a questão da transmissão ainda tem que ser muito reforçada, inclusive pra quem já acabou o tratamento."