Cuidando das Sequelas

O bacilo da hanseníase pode se infiltrar em pele, mucosas e nervos periféricos. Dessa forma, o objetivo do tratamento é impedir a progressão da doença para essas estruturas, a fim de limitar as complicações que podem ser causadas por ela. Essa tentativa costuma ser bem-sucedida em casos com diagnóstico precoce ou em pacientes com menor carga bacilar. Já nos pacientes que tiveram demora em serem diagnosticados, como os que têm pouca acessibilidade aos serviços de saúde, ou nos pacientes multibacilares com alta carga bacilar, esse controle é mais difícil de ser feito.

Nesse sentido, a infiltração da doença nos tecidos é maior, podendo ocasionar um maior efeito do bacilo, muitas vezes irreversível, causando o que chamamos de sequelas. As sequelas da hanseníase são divididas em grau 1, referente às feridas de pele, e grau 2, quando há comprometimento de nervos e pode ocorrer deformidade, principalmente de mãos e de pés. As incapacidades geradas podem ser motoras ou sensitivas, o que deve guiar o cuidado ao longo do adoecer. 

Quando aborda o assunto, a maioria dos profissionais ressalta dois pontos principais: o diagnóstico e tratamento precoce para prevenir sequelas e a importância de uma equipe multidisciplinar no cuidado dessas lesões. A dermatologista Sônia relata que mesmo as sequelas mais graves podem, muitas vezes, ser prevenidas quando o diagnóstico é feito precocemente. 

"A gente tem um cirurgião, um ortopedista extremamente dedicado, que é o Dr. Cabral, que vestiu há anos, há mais de 30 anos, ele vestiu a camisa da hanseníase. Então, assim, a gente não vê tanta sequela grave porque eles fazem as cirurgias preventivas e as reparativas. Então, assim, existe alguns pacientes com sequelas, mas são pacientes muito antigos. (...) Mas a gente conhece a realidade do Brasil, que poucos lugares têm ortopedistas que colaboram com o programa. Então existe sequelas graves, sequelas, assim, que devem ser prevenidas com diagnóstico precoce, que a gente bate na questão do diagnóstico precoce. É sempre para o médico da ponta, o enfermeiro, o fisioterapeuta, o agente de saúde pensar em hanseníase. Se já pensou que pode ser hanseníase, isso já nos ajuda muito."

 

Já a fisioterapeuta Rosângela, parte da equipe multidisciplinar voltada para a hanseníase do Hospital Santa Marcelina em Rondônia, reforça outro ponto essencial: a adesão dos doentes ao tratamento preventivo das lesões, principalmente voltado ao cuidado fisioterápico, nem sempre compreendido acerca de sua importância e executado de forma correta pelos pacientes, o que representa grande parte das sequelas que vemos hoje em dia:

"É muito triste, a gente vê pessoas jovens com sequelas severas. Hoje mesmo, eu falei pra um rapaz, que ele estava internado, e ele tem uma úlcera plantar e esse rapaz tem só 15 anos, e ele tem uma úlcera bem extensa, e eu estava conversando com ele. A enfermeira falou que ele não gosta de usar o calçado e a palmilha. E eu falei pra ele: "olha, você sabia que se você não usar esse calçado, essa palmilha, você sabe o que pode acontecer?" Aí ele falou assim: "não". Eu falei: "você sabia que você pode ficar sem sua perna, essa perna pode ser..." “Deus que me livre!” Eu falei: "pois é, então você olhe bem as pessoas que estão aqui no hospital - porque a gente tem vários amputados por outros motivos, hoje a hanseníase é mínimo - e isso pode acontecer se você não tratar do seu pé, se você não cuidar do seu pé". Eu fiz um tratamento de choque pra que ele entendesse a necessidade que ele tinha de usar aquele calçado, que ele tinha de usar aquela palmilha. E assim você vê uma infinidade de pacientes idosos, novos, crianças, jovens, com sequelas da hanseníase. Hoje em menores sequelas, porque no início a gente via desabamento de septo, orelha. Hoje a gente não vê mais esse tipo de paciente, nós não temos mais hoje, mas de garra ulnar, de pé caído, a gente ainda vê bastante paciente com sequelas porque demoraram a iniciar esse tratamento, iniciaram e não levaram a sério esse tratamento, e isso trouxe sequelas. Alguns porque realmente iriam chegar a essa fase, mas a grande maioria por falta de cuidado deles com eles mesmos, entendeu. Foi ensinado, foi orientado, foi avaliado, foi informado, mas nem sempre as pessoas entendem a gravidade, até que ponto pode chegar uma sequela. Quando eles chegam e eles aceitam serem tratados, ótimo." 

 

Mabel, também fisioterapeuta, conta sua experiência com pacientes que já possuem sequelas extensas, afirmando que eles podem negar o autocuidado ao estarem tão acostumados com a presença daquela lesão, que fazem dela um parte de si mesmos, impedindo a melhora, ou a ausência de piora da condição. Nesse sentido, destaca que, apesar disso, as cirurgias de reparação representam uma possibilidade de reabilitação para esses pacientes e que a vontade de melhorar é fundamental na preparação para o procedimento:

"Bom, quando eu fui engajada, me engajei nesse programa da hanseníase, eu peguei justamente o paciente com grau 2 de incapacidade, que são as sequelas maiores, principalmente com relação às deformidades. É difícil pra esse paciente, primeiro: alguns conseguem se adaptar, ou fingem se adaptar com as deformidades, aceitar as deformidades, e conseguem levar suas atividades do dia a dia muito bem e tem outros não, que valorizam, hipervalorizam... Não é que sejam uma hipervalorização, eles dedicam todo seu foco para aquela deformidade e se tornam incapazes, como se fosse ali... E entram num ciclo vicioso e não melhoram porque têm aquela deformidade e ficam naquele ciclo ali, não evoluem para que eles possam ter uma melhora. Então eu comecei, justamente, preparando os pacientes para cirurgias de correção de deformidade de garra ulnar da mão ou garra mista, que inclui nervo ulnar e mediano. Então, esses pacientes, eles tinham o desejo de melhorar. Porque tem pacientes que às vezes estão tão adaptados à deformidade, e tem uma atividade de trabalho que não permite, ou não tem um suporte social que permita ele acompanhar no pós-operatório.”

 

A médica do Rio de Janeiro Márcia Jardim ainda lembra que a perda de sensibilidade é um dos tipos de sequelas que podem permanecer, sendo um fator de risco para complicações secundárias, como queimaduras e machucados nos pés que podem infeccionar, necessitando de uma maior atenção por parte dos pacientes. Márcia reafirma também a importância de outros profissionais nesse cuidado, além da possibilidade de reabilitação dos portadores de sequelas por meio da persistência: 

"É só orientar os cuidados, principalmente nas feridas, porque o paciente perde a sensibilidade, quando o paciente perde a sensibilidade, tem uma sequela sensitiva importante. E aí são os cuidados de… É porque aí você não sente. Então você tem que ver, tem que fazer uma inspeção quase diária dos pés, principalmente o mais distante, o uso de sapatos confortáveis, se às vezes machuca, tropeça, não sente. A dor é um mecanismo que o organismo tem defesas, e se você perdeu esse mecanismo, você tem que estar atento. Do ponto de vista sensitivo é principalmente para não infectar, para não ter complicações secundárias a essa perda da sensibilidade. Sob o ponto de vista motor, se o paciente tem o controle de dor muito extenso, às vezes só a cirurgia plástica mesmo, não para voltar a atividade mas para restaurar pelo menos a postura. Quando o paciente tem um déficit parcial, a gente pode trabalhar ou orientar o paciente a trabalhar a reestruturação daquela musculatura, pode reinervar fazendo o trabalho de fisioterapia. Como falei, a gente só orienta. O trabalho tanto do fisioterapeuta como do terapeuta ocupacional são fundamentais para esses pacientes, principalmente os que têm déficit parcial. A gente fala, além de tudo eu sempre falo, costumo falar para os pacientes, "olha, o seu organismo pode se recuperar. Agora, o quanto recuperar e quanto tempo vai demorar… A gente não tem como saber." Então a reabilitação é possível, mas a gente não tem o tempo nem o quanto isso pode acontecer. Agora, o trabalho que tem que ser feito sob o ponto de vista sensitivo é a inspeção, usar os olhos já que perdeu a sensibilidade. E sob o ponto de vista motor, se ainda tem alguma possibilidade funcional motora, é trabalhar exaustivamente, exaustivamente sem exagero, não é trabalhar muito, não adianta pegar peso nada disso. É trabalhar com um profissional adequado e sob uma orientação e persistir naquilo."

 

Os fatores emocionais também têm influência na percepção das sequelas. Márcia conta que a ansiedade relacionada à possibilidade de reações hansênicas mesmo após a cura infecciosa é um fator que pode levar a uma preocupação exagerada com sintomas, levando à falsa impressão de que o quadro está recidivando:

Se você piora, se a sua vida está em um momento mais conturbado, as chances de sofrer essa disfunção sensitiva é maior. Então o que acontece, às vezes, ele chega e fala: piorou a dormência. Em um paciente que tem uma gravidade muito grande de déficit neurológico, e é pouco provável que tenha piorado da função sensitiva. Aí a gente faz todos os exames, a gente investiga, a gente avalia. Mas no final das contas não mudou nada. (…) Às vezes naquele momento você está percebendo mais a dor, você está percebendo mais a dormência, a parestesia, a perda de sensibilidade. Mas efetivamente aquilo não piorou comparado com o exame que foi feito, tanto neurológico quanto neurofisiológico, que é o exame que a gente faz pra avaliar a função do nervo. Eu acho que a ansiedade de ter a doença normalmente é maior que a chance.

 

Por fim, ressalta-se que mesmo com as dificuldades, a médica Maria Kátia revela ser a reabilitação uma das etapas mais gratificantes do cuidado. A atenção adequada às sequelas, feita por uma equipe multidisciplinar no tempo correto, permite que os pacientes retornem às suas vidas de forma independente, o que facilita sua reabilitação e lhes proporciona grande gratidão.

"Então, por incrível que pareça, eu acho que esse é o ponto que eu enxergo com maior esperança. Nós implantamos no HU um grupo de reabilitação, envolvemos fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, a assistente social que trabalhava conosco, e os cirurgiões ortopedistas, e é muito gratificante quando a gente vê um paciente que tinha uma garra estar com uma mão perfeita, que tinha o pé caído, corrigiu o pé e caminha perfeitamente, quando ele tinha dores crônicas de longa data, ele fez descompressão cirúrgica dos nervos e ao longo de, demora 2, 3 anos, mas ele fica totalmente sem dor. Então eu percebo que talvez numa experiência de um Hospital Universitário que é de referência, e que recebe os pacientes mais complexos da rede, o retorno do tratamento da sequela talvez seja o melhor retorno, pelo menos que eu tenha."