O Paciente e o Preconceito

Rostos desfigurados, incapacidades físicas e alto contágio: essa é a imagem que muitas pessoas têm quando falamos de hanseníase. Hoje em dia, apesar dos conhecimentos apontarem contra esse imaginário, o pensamento popular se mantém nas características do passado, e o paciente sofre tanto com o preconceito das pessoas a seu redor, como do que sente de si mesmo. Nesse sentido, a assistente social Elen nos conta de sua experiência com esse tema:

"O estigma, ele tá sempre caminhando junto com o paciente da hanseníase. É quase impossível você fazer uma abordagem em um paciente com hanseníase que nunca tenha vivenciado uma situação de estigma, de preconceito. Ele pode ser sutil, ele pode ser claro, mas ele existe. Independente da minha abordagem esse assunto sempre vem à tona, o paciente tem a necessidade de falar porque é uma carga de sofrimento muito grande, e ele sente a necessidade de falar das experiências que eles viveram por serem estigmatizados, eles, as suas famílias, pelo fato de ter recebido o diagnóstico da hanseníase."

 

O preconceito pode vir dos lugares onde se menos se espera, incluindo aqueles onde deveria haver acolhimento, como no convívio familiar. Frente a uma possível falta de aceitação, muitos pacientes preferem esconder a doença, como relata a técnica de enfermagem Antônia:

“Eu fui fazer uma visita domiciliar, eu cheguei lá, a família inteira morando num 4 por 8: pai, mãe, filhos, irmãos, todo mundo junto. Ele era um paciente já que ele tinha sequelas, ele já tinha reações, e ele se ausentou durante 3 meses, e a gente foi investigar o que estava acontecendo. Quando eu cheguei lá, eu me deparei que ele tinha falecido, e a família não informou ao programa, porque não sabia que ele fazia tratamento de hanseníase. A família ficou sabendo nesse dia, porque eu tive que informar porque eu estava lá atrás dele. E a família nunca soube.

 

Apesar de nesse caso não ser possível saber qual teria sido a reação da família se o paciente tivesse contado, em outras histórias, as consequências são o afastamento familiar ou a separação, como nos conta a fisioterapeuta Rosângela: “Ontem mesmo a paciente me relatou: ‘É, agora, doutora, eu arrumei um namorado, é o que vem me buscar, que ela tinha feito a cirurgia, e esse disse que vai cuidar de mim até eu ficar boa, enquanto o outro foi embora’. Então infelizmente eles ainda sofrem preconceito, eles ainda têm um estigma muito grande. E essa paciente era uma paciente que estava sempre muito chorosa, eu conversava com ela, não podia chegar pra ela: ‘Tá tudo bem?’ Passar a mão nela, pronto ela já estava chorando. E aí ela, ontem, ela me relatou isso, que o marido largou porque ela estava doente, e o outro sabe que ela está doente e disse que vai cuidar dela.”

 

É frequente que a doença também cause consequências na vida profissional do paciente por causa do preconceito: "Nós temos casos de paciente que o patrão descobriu que ele tava fazendo tratamento de hanseníase e mandou ele embora.", diz Antônia. Nesse sentido, é necessário muitas vezes fazer uma separação entre trabalho e vida pessoal, sem abrir o jogo com os colegas sobre a hanseníase, como nos conta a fisioterapeuta Mabel:

"Uma das questões, por exemplo, que são bem perguntadas por eles, é a questão da 'eu falo ou não no emprego que eu tenho hanseníase?' Bom, eu, geralmente, dependendo do caso: 'como é que é seu empregador? Como é que é seu ambiente de trabalho? Você já tentou conversar sobre a doença antes? Precisa de algum suporte?' E eles muitas vezes falam 'ah, não, o pessoal lá é muito preconceituoso, eu tenho medo de perder o emprego'. Então eu falo pra ele não falar que tem a doença (...)"

 

Apesar da vontade de esconder, muitas vezes as manchas de pele ou as deformidades físicas identificam o paciente portador de hanseníase, tendo como resultado a exclusão dessas pessoas. Essa realidade é mais comum em áreas endêmicas e evidenciam-se nas entrevistas dos profissionais que trabalham em Rondônia. É como nos conta a dermatologista Sônia:

“Eu tenho paciente que fala "olha, doutora, quando tava com muita lesão de pele, eritema nodoso, reações, feridas, o pessoal não…” O ônibus não pega a pessoa, ou o pessoal do ônibus desce do ônibus na hora que vê a pessoa entrando.

O ortopedista Cabral complementa, dizendo que as cirurgias de lesão do nervo ulnar, deformidade típica da hanseníase, também são muito procuradas por pessoas que lesionaram o nervo de outra forma, a fim de não serem vistos como doentes:

“(...) em áreas endêmicas, pessoas que lesam o nervo ulnar de forma traumática, acidente de trabalho ou acidente pessoal, para não ser confundido com paciente atingido pela hanseníase, eles vem muito atrás dessa cirurgia, porque nós temos uma forma de comprimentar no Brasil, na América aqui, com a mão. (...) Aí o paciente, na cabeça dele, ele tá sendo reconhecido como portador de hanseníase, como leproso.”

 

O próprio tratamento também podem ser fonte de discriminação, como o medicamento Clofazimina. A identificação que ele causa por meio do escurecimento cor da pele é razão de muita insatisfação para alguns pacientes, que não querem ser reconhecidos como portadores de hanseníase pelas pessoas do seu convívio. Sônia, ao prescrever o medicamento, recebe essas queixas:

“Eu tenho casos… que tem um remédio de hanseníase que muda a cor da pele, então ele mostra mais ou menos que você tá fazendo tratamento, que chama Clofazimina, que a pele escurece. Eu já tive um paciente, um senhor de 65 anos de idade, que falou assim "Eu vou parar o tratamento”, ele tava na quinta dose. Eu falei "mas por que o senhor vai parar o tratamento? Tá acontecendo alguma coisa?" Ele falou assim: "não, porque minha pele mudou, meus vizinhos sabem que eu tô tratando hanseníase" (...) ele falou desse jeito "eu vou me suicidar porque eu não estou aguentando". Aí eu falei assim: "então, a gente vai mudar o seu tratamento para um tratamento que a cor da sua pele não modifique". Porque o sofrimento psíquico dele era tão grande que a gente teve que tratar ele de outra forma pra que aquele estigma da mudança da pele, o pessoal não identificasse que ele tava tratando hanseníase.”

 

Os profissionais identificam diversas causas para o preconceito, a começar pela religião. O termo lepra foi amplamente utilizado na Bíblia para designar tanto hanseníase quanto outras doenças que causavam deformidades, mantendo uma imagem enganosa da doença. O enfermeiro Wanderlei acredita que o estigma ainda existe pela forte religiosidade presente no país:

“Se a gente pegar o Brasil, ele é um país predominantemente católico, então a gente tem mais de 50%, acredito que mais de 50% da população, é católica, uma boa parte protestante, então todos acreditam no evangelho. E quando você vem lá no velho testamento ainda faz referência ao termo lepra como qualquer moléstia de pele. E naquela época, na Bíblia, a pessoa que era impura era acometida por alguma doença, então tinha isso como um castigo divino. Então, se a gente fizer um paralelo: o Brasil por ser um país catolicista e protestante, que prega o evangelho, muitas pessoas, ainda por doutrinamento religioso, por falta de uma orientação mais efetiva, eles acabam ainda trazendo essa informação da lepra ainda como sendo algo impuro. Então é uma situação um pouco difícil porque a gente envolve religião.”

 

A técnica de enfermagem Antônia complementa que essa questão pode ser substrato para que os próprios pacientes tenham um estigma deles mesmos, “porque eles assimilam, até porque nos tempos bíblicos, a lepra era uma das piores doenças. Então eles ainda têm isso na cabeça, leproso, eles não chamam de hanseníase, eles chamam lepra. Tá leproso. O que que é? Uma pessoa que é rejeitada.

Em sua experiência, a neurologista Márcia Jardim acredita que as sequelas causadas pela doença são as maiores fontes de preconceito:

“Assim, porque esse estigma está relacionado, a meu ver, com as deformidades da doença. E, sem dúvida, os pacientes que evoluem por mais tempo acabam sofrendo uma discriminação maior, e isso amedronta o contágio. (...) E aí o medo de contágio justamente para não ter aquela deformidade.

O desconhecimento sobre o que realmente é a hanseníase, aliado à manutenção da imagem da religião e das deformidades, transparece a principal causa de preconceito: a falta de informação. Silvana orienta seus pacientes sobre isso:

"Eu tento tornar isso um pouco mais leve, sabe? Eu tento explicar pra ele que as pessoas, elas, muitas das vezes, agem ou reagem dessa forma, ao saber que o paciente é um paciente hanseniano por questões de desconhecimento, porque a gente sabe que o estigma está muito ligado ao próprio desconhecimento, à falta de conhecimento das pessoas com relação à doença. Então eu tento de alguma forma mostrar pro paciente a princípio que, na verdade, a pessoa é um tanto ignorante com relação aquilo ali – ignorante na forma de não conhecer. "

 

Nesse sentido, a maior arma para diminuir o estigma é orientar corretamente o paciente, proporcionando a auto-aceitação, com o aprendizado de que a hanseníase não é tudo aquilo que o estigma dita. Maria do Carmo explica que "(…) quando ele se apropria disso, e ele consegue, trabalhar isso nele, ele consegue conviver, eu acho que ele é o maior multiplicador de informação que tem. Porque ele não aceita mais ser tratado de forma discriminada.".

Por fim, a técnica de enfermagem Elen nos conta de sua experiência familiar, mostrando uma situação de aceitação seguida por seu irmão, que é portador da hanseníase e se sente confortável em não esconder a doença, talvez pelo conhecimento que ele possui sobre a hanseníase e sobre outras doenças no seu trabalho como agente comunitário de saúde, além de  estar cercado por pessoas que também possuem essas informações no seu ambiente profissional e, portanto, são capazes de entender que não há razão para preconceitos:

"No caso do meu irmão, ele não esconde de ninguém que ele tem hanseníase, que ele faz tratamento, ele não esconde ele não precisa, ele foi bem corajoso. E em momento nenhum ele quis esconder de ninguém, e ele é agente comunitário de saúde... ele é agente comunitário de saúde, então todas as meninas que trabalham com ele a diretora o pessoal do posto sabe que ele faz tratamento, o pessoal da minha família, todo mundo sabe. Então eu acho que... é pessoal."