É frequente que, durante suas entrevistas, os profissionais digam que cuidar da hanseníase é emocionante e significativo para eles. Esse cuidado os confere a experiência de dar voz e valorizar os relatos de uma parcela da população que é historicamente estigmatizada e alvo de tentativas de exclusão do convívio com outras pessoas, frente ao medo da contaminação.
Apesar das satisfações que médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros cuidadores têm nesse cuidado, para quem não vivencia essa realidade e, sobretudo, não tem o conhecimento sobre a hanseníase, a escolha dessa especialidade na área da saúde pode parecer estranha e perigosa do ponto de vista do contágio. "Mas você não tem medo de adoecer?” e “Você nunca pegou essa doença?" são perguntas que os profissionais que trabalham com hanseníase escutam de forma recorrente. Nesse sentido, o medo do contágio pode até ter ocorrido no princípio, mas não tem lugar no dia-a-dia desses profissionais, uma vez que as informações científicas e o hábito de repeti-las demonstram que não há razão para tal sentimento.
Entretanto, muitos profissionais da saúde de outras áreas vivem esse medo quando estão frente a um paciente de hanseníase, desacostumados com a perspectiva de que aquelas crenças acerca do contágio não são reais. Maria do Carmo relata uma história que passou com um médico que trabalhava em um hospital de referência:
“Aí o colega chegou e falou ‘mas Carminha, você por aqui, o que que tá fazendo, dermato na UTI?’ Eu disse ‘porque aquela paciente é minha’. E ele estava se dirigindo, ele estava examinando a paciente, por coincidência, quando eu cheguei. Aí ele disse: ‘mas é paciente sua de que?’ ‘De hanseníase, mas ela tá tratando.’ Imediatamente ele tirou o estetoscópio do precórdio da paciente e se afastou.”
Maria Katia complementa, contando uma situação ocorrida com seus alunos, residentes de Dermatologia da UFRJ. A história contada por ela nos mostra que o medo do contágio é corroborado tanto pela falta de prática, como também pelo preconceito, já que seus alunos são bem informados a respeito do fim do contágio após o início do tratamento. Eles, inclusive, sentem-se envergonhados de admitir que essa informação científica tem um valor "duvidoso" para eles:
“Os nossos residentes, eles hoje já se habituaram mais e eles aceitam mais o nosso ambulatório, mas eu diria que de todos os ambulatórios da Dermatologia, é o que eles têm mais dificuldade de ir, e eles sempre dizem que têm dificuldades porque a doença é complexa, eles têm dificuldade no manejo. Nós temos uma estagiária que é psicóloga, que agora é mestranda, e uma vez ela conversou com nossos residentes e ela percebeu que eles tinham muito medo de ficarem contaminados.”
No entanto, a falta de informação permanece a grande fonte de preconceito. Ao se deparar com um portador da doença, o medo torna-se realidade para o profissional da saúde que não compreende bem o ciclo de transmissão da hanseníase, perpetuando a ideia de que ela é altamente transmissível. É justamente esse medo, que pode se apresentar de forma velada, que Elen, técnica de enfermagem, nos relata:
“Às vezes os funcionários externos não querem ajudar a gente. No dia do Cabral, na sexta-feira, às vezes ele atende uns 25 pacientes e aí às vezes está só eu e o Vanderlei, ou eu e outra pessoa e eu peço para alguém fazer uma retirada de ponto do Dr. Cabral e ninguém quer participar. Os enfermeiros dos outros setores não querem participar, nem os outros técnicos.” “Por medo de contágio?” “É, eu acredito que seja. Elas não falam, mas acredito que sim, acredito que seja isso. Mas elas não falam.”
Nesse contexto, é inevitável que alguns pacientes percebam esse preconceito vindo daquelas pessoas das quais não deveria vir, como relata a fisioterapeuta Mabel:
“Eu lembro só de um caso agora desse paciente que sou madrinha de casamento dele, ele estava no ambulatório e chegaram alunos do primeiro período da faculdade pra visitar o ambulatório, saber o que era fisioterapia, tudo mais. Aí ele, aí eu ‘ah, tá. Esse é o meu ambulatório, é de pré e pós-operatório de correção de garra ulnar de pacientes com hanseníase’. E duas alunas deram um passinho pra trás, tipo assim, como se fosse transmissível. Eu não reparei, que eu estava cuidando da mão dele, estava falando. Quando elas saíram, ele ficou extremamente revoltado. ‘Que absurdo! Elas estão pensando que eu transmito, que eu passo a doença! É ridículo, que não sei o quê!’ Aí toda vez que agora quando tem, que ele tá nesse momento, e passa algum aluno pra fazer essa visita inicial, aí eu ‘vai lá, fulano, faça o seu texto’. Aí ele explica o que é hanseníase, que não é transmissível, e fala, ele que discursa pra turma, tem um depoimento dele. É a forma que eu tenho, pelo menos dele poder se externar, dele poder falar."
Mabel relata ainda um caso que mostra que nem sempre a informação correta livra o profissional do preconceito. Sendo assim, é importante não só passar os conhecimentos, mas se apropriar deles e usá-los para diminuir o estigma não só externamente, como dentro de si mesmo também.
"Eu lembro também de uma colega, psicóloga, que trabalhava comigo numa policlínica regional lá em Niterói, (...) ela era assistente social. E ela era responsável pelo grupo de autocuidado, ela que explicava aos pacientes, reforçava que hanseníase não é transmissível, que tem cura, tudo mais. Aí ela, a empregada dela doméstica, que também era babá do filho, tomava conta do filho dela de 2 anos, teve um acidente doméstico que a faca rodou e caiu de ponta em cima do dedo dela e ela não sentiu nada. Quando ela chegou na cozinha, só viu o sangue no chão e a faca próxima do pé dela e ela não tinha sentido nada. Então ela achou aquilo estranho e pediu para que ela fosse ao médico pra ver e fechou o diagnóstico de hanseníase. O que que ela fez? Demitiu a empregada. (...) Acabou que ela foi desligada do grupo porque ela não tinha compatibilidade com o que ela verbalizava."
Por fim, Mabel deixa um recado importante para os profissionais de saúde que ainda não possuem experiência com a doença, tornando claro o que a equipe envolvida no cuidado necessita dos outros que não estão:
"Com relação aos profissionais: (...) entender primeiro que ela não é uma doença tão agressivamente transmissível a esse ponto, que não é manipulando pacientes que ele vai adquirir hanseníase, que, muitas vezes, pela situação histórica da hanseníase, as pessoas não querem nem ouvir falar da doença, não querem nem aproximar de um paciente que tenha hanseníase, então é difícil você convencer os outros profissionais que nos interligam, porque, por exemplo, se um paciente depende de uma cirurgia, ele vai depender de um cirurgião ortopédico, neurológico, que execute. (...) Então conseguir convencer um profissional que não tenha essa formação que a hanseníase é uma doença como uma outra qualquer, mas que deixa uma sequela e que essa sequela precisa ser cuidada"