O Que a Hanseníase Pode Ensinar?

O cuidado aos pacientes com hanseníase é complexo, pois além das tarefas usuais que as equipes de saúde têm de realizar, como fornecer o diagnóstico e os tratamentos de acordo com cada área, o que por si só já é diferente na doença  por conta do choque que informar ao portador que possui uma doença altamente estigmatizada pode gerar e pela especificidade que cada doente apresenta em termos de tratamento, torna-se necessário também suprir outras demandas nos atendimentos, como as questões psicológicas e sociais que os pacientes podem apresentar.

Nesse sentido, com a carga física e emocional embutida nesse cuidado, parte dos inúmeros desafios para o tratamento de pacientes portadores de hanseníase, há consenso entre os profissionais de que as experiências de adoecimento e cuidado têm muito a ensinar para que haja superação dessas dificuldades. As lições, tanto técnicas quanto pessoais e afetivas, são verdadeiras transformações na trajetória dos cuidadores. 

Com a necessidade de um trabalho voltado também para a o entendimento acerca de como o paciente lida com a doença, a fim de que os profissionais possam delimitar as expectativas e as dificuldades que o doente possui, possibilitando assim a chegada em uma cura mais completa, é normal que haja a construção de um vínculo mais forte com os pacientes, tendo em vista essa aproximação. A fisioterapeuta Silvana ressalta também uma maior continuidade da relação, o que não é visto com tanta frequência em outras doenças:

"Eu posso te dizer, antes de tratar, de passar a tratar paciente com hanseníase eu era uma pessoa, e depois da hanseníase, eu passei a ser outra, eu comecei a ter uma visão muito diferente – porque a gente tem aquela visão muito mecânica do tratamento. É pegar o paciente, é avaliar o paciente, tratou, ele vai embora. O paciente da hanseníase não, é aquele paciente que vai conviver com a gente o resto da vida, porque a gente... Tem as questões das sequelas, tem as questões de... Até mesmo por situações de referência. O paciente de hanseníase ele se apega tanto à gente com relação a esse cuidado, e ele sabe que ele tem alguém a quem ele pode recorrer, que qualquer episódio que aconteça com ele, ele acaba nos procurando pra gente poder tentar resolver a situação dele."

 

Estabelecer essas relações de cuidado traz também grandes lições para a vida, já que o tratamento a longo prazo faz com que as equipes acompanhem simultaneamente a vida pessoal dos doentes. Essa, requer grande resiliência para lidar com a doença, que se alia muitas vezes a problemas familiares e sociais, como relata a técnica de enfermagem Elen:

"Eu acho que como a gente passa muito tempo em tratamento, a gente consegue acompanhar a vida pessoal também dos pacientes. Eles acabam falando algumas coisas. Isso é bom porque a gente aprende com eles. A gente aprende lições, a gente aprende às vezes a dizer não, às vezes a dizer sim, com as coisas que eles falam. A gente aprende que às vezes eles tão doentes, mas eles cuidam de pessoas mais doentes do que eles. Tem uma que tem uma mãezinha que é acamada e tal e ela tem que puxar força não sei de onde, tem que ser forte para poder cuidar de uma outra pessoa que está doente. Eu vejo muito isso."

 

Além do aprendizado acerca das relações, a possibilidade de adquirir uma nova habilidade técnica também é positiva para os profissionais, que podem utilizar essas informações no cuidado de pacientes não-hansênicos. O ortopedista Cabral nos conta como sua prática com os pacientes portadores de hanseníase lhe acrescenta conhecimentos cirúrgicos para outras patologias, aprimorando, assim, seu trabalho:

"Olha, é uma coisa muito gratificante para mim, uma experiência de longa data, e que toda a minha aprendizagem, toda a minha curva  nesse trabalho, tudo se reverte no ponto de vista humano, no ponto de vista profissional, não exatamente em dinheiro, mas as técnicas todas que eu aprendi com pacientes de hanseníase, atingidos pela hanseníase, eu posso aplicar na minha vida fora no tratamento com paciente traumático. Por exemplo, uma lesão no nervo ulnar, nervo fibular, com a sua deformidade, tanto faz, o paciente com hanseníase ou o paciente da traumatologia; uma lesão por projétil de arma de fogo ou arma branca, a reabilitação, comparando com o paciente atingido pela hanseníase, não difere em nada a questão técnica. Então muita coisa que eu aprendi operando paciente com hanseníase eu aplico na minha atividade profissional fora da hanseníase, tanto na mão quanto no pé.”

 

Aprender a trabalhar em equipe multidisciplinar, entender o que é lidar com uma doença crônica, entender a importância da epidemiologia, da saúde coletiva e dos vínculos familiares também são aspectos importantes apresentados pelos profissionais. Isso tem relevância especial para os alunos de graduação, que estão tendo o primeiro contato com esses assuntos, frequentemente difíceis de serem compreendidos e abordados. Além disso, ressalta-se que a hanseníase faz os profissionais aprenderem a ensinar, pois treinar novos profissionais e explicar a doença da melhor forma possível para os doentes é um exercício diário que exige didática e dedicação. A dermatologista Maria Katia relata sua experiência no ensino de alunos de Medicina da UFRJ:

"Bom, eu acho que a hanseníase, ela é um ensinamento muito grande pra todos nós, e acho que ensinar medicina a partir da hanseníase permite muitas coisas: aprender como se ensinar para o aluno o que é ter uma doença crônica; como lidar com uma doença que você tem que tomar remédio todos os dias por muito tempo, por 12 meses, às vezes por 5 anos se a pessoa faz reações pós-alta; entender, ela permite entender, a epidemiologia, permite entender saúde coletiva, permite entender vínculos familiares, então eu acho que a hanseníase não é só um aprendizado pessoal, individual para cada técnico, mas eu acho que pro aluno de medicina é uma experiência única, uma única oportunidade de entender uma doença em seus vários aspectos: na relação pessoal, na questão da integralidade, na longitudinalidade, do indivíduo na família, do indivíduo na comunidade, e toda a complexidade da saúde coletiva, uma doença transmissível, uma doença que afasta o indivíduo do trabalho, uma doença que pode acabar com um casamento, tirar o lugar que a pessoa ocupava na família previamente. (...) E esse aprendizado é muito mais rico quando fazemos projetos de extensão interdisciplinares, que a gente junta um enfermeiro, um fisioterapeuta, um assistente social, um terapeuta ocupacional, com um aluno de medicina. O aluno de medicina sai do lugar do centro da formação e ele vai aprender qual é o lugar do assistente social na equipe de saúde, qual é o lugar do fisioterapeuta, qual o lugar do enfermeiro."

 

Nesse sentido, o cuidado integral dos doentes ensina a indispensável capacidade de respeitar as vontades próprias daquela pessoa, que deve ser considerada o foco do tratamento da doença e ter suas demandas atendidas pela equipe, à medida que os profissionais tentam conciliar essas solicitações com o que é melhor para a saúde do paciente. Dessa forma, não se pode uniformizar o tratamento, já que a hanseníase afeta cada um de uma forma diferente, não só fisicamente, mas também emocionalmente, além do próprio cenário social influenciar a maneira do paciente lidar com a doença, sendo necessário analisar todo esse contexto ao tratar. Maria do Carmo nos conta seu aprendizado sobre isso:

"eu acho que a gente tem muita limitação, também, de respeitar o que o outro quer. Porque, às vezes, a gente como médico, a gente é treinado a entregar um pacote pronto pra uma pessoa. Olha, você tem isso, o seu exame deu isso, e você vai fazer esse tratamento, o efeito colateral é esse. Então quando a gente começa a entender que o paciente, ele é a principal coisa e que ele tá inserido nesse contexto, a gente começa a fazer medicina diferente também. A gente aprende a fazer diferente. Então acho que a gente passa de técnico, meramente um técnico, a ser um profissional mais humano, mais cuidadoso, até com a vida da gente mesmo e com as pessoas que tão cercando, a gente passa a ser mais tolerante, a ser mais paciente.”

Por fim, Maria do Carmo nos fala da questão do preconceito, enfatizando que para lidar com os pacientes, é necessário desconstruir o estigma em si mesmo primeiro, o que é colocado em evidência quando se está em um contato tão intenso com a doença. Ressalta também, o trabalho em equipe, tão importante na hanseníase, já que o tratamento dos pacientes só é completo quando a equipe toda está envolvida:

"eu acho que a hanseníase sempre me ensinou. Primeiro me ensinou hanseníase, os pacientes me ensinaram, me ensinaram dermatologia, e me ensinaram a lidar com pessoas, acho que isso é o mais importante desses anos que eu vivo. Cada vez mais eu aprendo com eles. Aprendo a ser gente, aprendo a ser melhor, aprendo a fazer diferente no dia a dia. (...) Mas acho que a contribuição maior é pra mim enquanto gente, enquanto indivíduo, como pessoa. É porque eu acho que a gente lida com uma doença que tem um preconceito imenso, um preconceito histórico que antes da gente ser médico, ser enfermeiro, ser terapeuta ocupacional, ser psicólogo, você traz essa carga de preconceito histórico, cultural. Então assim, poder desfazer esse preconceito em mim, na minha família, nos meus amigos e, também, de acolher os pacientes, pra mim esse é o maior ganho. E como eu disse, em vários momentos, a gente precisa repensar a hanseníase, tanto como, como trabalho meu, mas também como a minha relação com ela, com o trabalho com os pacientes. Porque eu passei em várias fases. Passei a fase em que eu me desesperava, achava que não sabia nada, que não estava fazendo nenhuma diferença. A fase em que eu me sentia ignorante frente à doença, que eu era rebelde, que muitas vezes você descarrega no paciente uma raiva, uma coisa que no fundo é o seu contato interno com sua limitação intelectual, inclusive. Então a gente tem várias fases da gente processar esses ensinamentos na gente e, também, dessa relação com o paciente. E, acho, que a hanseníase me ensinou a trabalhar em equipe também, porque a gente nunca trabalha sozinho. A gente só consegue fazer alguma coisa pelo paciente quando a gente sabe escutar o enfermeiro, sabe escutar o assistente, o TO, o fisioterapeuta, o cirurgião. Então a gente tem que ter essa visão mais dilatada da profissão. Então eu acho que a hanseníase até hoje só me trouxe benefícios."