Abordando a Cura na Relação com o Paciente

A cura é frequentemente mencionada pelos profissionais como um dos temas mais complexos na abordagem do paciente. O conceito de "cura" defendido pela OMS refere-se à cura bacteriológica, isto é, à morte da totalidade dos bacilos causadores da hanseníase. Em termos práticos, essa cura pode ser atingida em 6 ou 12 meses, a depender da classificação da hanseníase em paucibacilar ou multibacilar. No entanto, sabe-se que uma parcela significativa dos pacientes com hanseníase pode desenvolver as chamadas reações hansênicas, que são manifestações inflamatórias exacerbadas que pioram o quadro clínico e podem gerar sequelas. Como essas reações podem ocorrer mesmo após o término do tratamento com a poliquimioterapia, a cura da hanseníase é um tema que gera questionamento de quem experiencia a doença, como explica Sônia, dermatologista: 

"Quando é fora do tratamento, quando ele já teve alta, existe uma abordagem mais complexa. Porque o paciente fala assim: "mas eu não curei? Eu não tratei 12 meses? Porque eu tenho que tomar esses remédios? Então hanseníase não tem cura?" Então existe a diferença da cura microbiológica, que é o tratamento de 12 meses, a maioria dos tratamentos, existe o tratamento de 6, mas existe também as reações imunológicas que podem ocorrer até 10 anos, 15 anos após o tratamento. Então você tem que explicar bastante isso, que isso não significa que ele não está curado, porque senão o paciente não lida muito bem com isso. Porque ele já tomou 12 meses o tratamento, então ele acredita que está curado, mas não é o que ocorre, às vezes, por causa das reações, não é o que ocorre. Ele tá curado microbiologicamente, mas ele ainda tá tendo as reações imunológicas. Isso você tem que deixar bem claro pra ele entender que hanseníase tem cura, porque muitos deles "ah, mas como? Eu não tô curado?"

 

Para as pessoas que experienciam reações ou sequelas, a presença da hanseníase é sempre sentida, mesmo após o fim do tratamento com a poliquimioterapia. A crença na cura, portanto, é controversa: como posso estar curado se tenho sintomas, tomo medicamentos e permaneço indo a consultas médicas? A orientação sobre a cura muitas vezes é um ponto de tensão entre profissionais e pacientes, como ressalta Elen, assistente social:

"A maioria dos pacientes falam em cura, mas não acreditam na cura de verdade da doença, eu observo isso. No trabalho que eu faço repetidamente há um questionamento: "como é que eu posso estar curado da doença se eu sinto os mesmos sintomas, ou sintomas parecidos?" Ou alguns até acham que pioraram no decorrer da doença, não entendem a cura como a morte dos bacilos, vamos assim dizer. Os pacientes associam "o que que é a cura?" a "ausência de sintomas da doença".

 

Nas entrevistas, pudemos perceber que a orientação, o diálogo e a repetição de conceitos, na tentativa de fazer os pacientes entenderem a cura bacteriológica, é a posição que a maioria dos profissionais escolhem. Contudo, alguns deles se mostram sensibilizados aos questionamentos dos pacientes e, se colocando no lugar de quem experiencia a doença, começam a refletir sobre a concepção de cura defendida pelas autoridades de saúde. A dermatologista Maria Kátia defende que, atualmente, a própria equipe técnica tem que rever o conceito de cura em hanseníase. O primeiro passo para essa mudança seria aprender a ouvir, e entender a experiência das pessoas; a partir daí,  seria necessário ampliar o olhar do que consideram saúde e doença:

"Bom, com relação à cura, eu acho que nós temos que aprender bastante ainda, os técnicos, porque o nosso discurso ainda é muito biomédico e a gente repete a informação que a gente aprendeu lendo os artigos, estudando. O que é preconizado pelo Ministério da Saúde e pela OMS é que curar é fazer com que o paciente não tenha mais bacilo viável. No entanto, 30% dos pacientes fazem reação pós-alta, portanto eles ainda são doentes, e eles podem desenvolver uma sequela depois da alta. Ora, se a gente pensa num cuidado mais amplo, um cuidado ampliado, e na questão da saúde integral dessa pessoa, essa pessoa não está curada. Então não adianta a gente ficar repetindo esse discurso pra uma pessoa que ela continua tendo que vir ao serviço de saúde, tendo que fazer cirurgia, tendo que usar corticoide, tendo que usar talidomida, e explicar pra ela que ela tá curada... Eu acho que, neste caso, quem precisa rever esse conceito somos nós, profissionais de saúde, e entendermos que a cura é muito além do que um conceito bacteriológico. Acho que tem essa questãom e acho que tem a questão da gente aprender a ouvir, e entender qual a experiência de adoecimento dessas pessoas, porque, muitas vezes, a gente repete um discurso e até exige dos pacientes um nível de compreensão, que está para além da possibilidade de experiência de adoecimento deles. Nesse caso, eu acho que somos nós que temos que nos rever, os técnicos."

 

Sendo assim, além das medicações, das cirurgias e das consultas regulares, ainda há o sofrimento de não se sentir curado e ter de conviver com a doença. Nesse sentido, Maria Leide complementa que, para além do conceito padrão de cura bacteriológica, é necessário entender qual é a experiência do paciente com a doença e, a partir disso, trabalhar para que ele se sinta curado em seus próprios parâmetros.

“Então o conceito de cura da hanseníase é muito estranho, porque você dá alta por cura, e o paciente pode ter doença que exige um tratamento com corticoterapia, que é pior do que o tratamento da poliquimioterapia para doença. O manejo é mais difícil, traz mais efeitos adversos, mais sofrimento da pessoa. A pessoa, o sofrimento dela, ela traz um sofrimento maior do que os sintomas, os sinais e sintomas da doença em si. Então você vai ter que trabalhar a cura de acordo com cada um desses pacientes. É muito fácil você trabalhar a cura com um paciente que tem duas manchinhas e que não tem nenhuma deformidade, é mais difícil trabalhar a cura com um paciente que tem deformidade e com reação é mais ainda, porque o paciente não se sente curado, ele não se sente curado.

Para evitar que os pacientes tenham quadros mais graves e, de fato, experienciem a cura, o diagnóstico precoce e o tratamento regular são essenciais. Maria Leide, conta sua experiência, ressaltando que a regularidade do tratamento ainda é baixa, o que pode gerar consequências para o paciente a longo prazo:

“Agora, também, se o paciente fizer o tratamento regular, a chance de cura, quer dizer, o diagnóstico precoce e o tratamento regular, claro, mais rápida a cura, a gente tem até um slogan de campanha assim: "Hanseníase: Diagnóstico Precoce + Tratamento Regular = Mais Fácil a Cura". A gente vê que, como é uma doença que o tratamento ainda é longo, um ano, também a regularidade não é tão grande, então a gente tem também essa questão da insuficiência terapêutica em alguns casos.”

 

Não só o tratamento com medicamentos pode ser interrompido, mas o fisioterápico também. Os exercícios fisioterápicos ajudam a prevenir o aparecimento de sequelas e a evolução para incapacidades. A fisioterapeuta Silvana, ao falar sobre a cura, destaca a necessidade de ressaltar a importância do tratamento ao paciente, além de acolhê-lo, o que gera um melhor resultado no trabalho dos profissionais:

"Eu procuro explicar pra eles a questão da cura clínica, mas mostrar pra eles também que existe um risco de se ter alguma sequela e que ele tem que prevenir. Então, quando a gente cuida, quando a gente faz o cuidado, então, a gente tá cuidando do paciente, a gente dá os ensinamentos, dá as orientações de como ele deve se cuidar, e a gente transmite também esse acolhimento, que a gente faz esse acolhimento pro paciente. Eu procuro explicar pra ele a necessidade que ele tem de se cuidar e mostrar que essa cura é uma cura clínica, mas que ele pode, pra que ele se mantenha no estágio que ele está e não se agrave, ele precisa ter um cuidado com ele próprio. E acho que quando a gente também acolhe, que esse cuidado é com a questão do acolhimento, a gente ganha o paciente. Então, quando a gente ganha, é muito mais fácil que ele siga as orientações, e a gente consegue um trabalho mais completo, um resultado melhor desse cuidado que a gente está tendo com ele."

 

A neurologista Márcia Jardim nos conta que, mesmo para ela, compreender o conceito de cura em hanseníase foi difícil. Ela defende que, para além de esclarecer o paciente sobre a cura bacteriológica, os profissionais precisam ressaltar que ele pode desenvolver complicações mesmo depois de terminar a poliquimioterapia. Estar em posse dessa informação é importante para que o paciente possa reconhecer em si os sintomas e retornar prontamente ao serviço de saúde caso ocorram.

"Eu mesmo tenho essa dificuldade. Durante algum tempo até entender que a cura na hanseníase não significa ausência de evolução. Cura a doença infecciosa, e o paciente não transmite mais, o paciente resolveu o quadro infeccioso. Mas você não acaba com a possibilidade do comprometimento, seja dermatológico, seja neurológico. Aqui expondo só a parte neurológica, que é o que eu conheço melhor, há possibilidade de evolução, apesar da cura da doença infecciosa. Isso às vezes é muito difícil do paciente entender. E aí, como você falou, auto vigilância tem que ser por muitos anos. (...) Mas o paciente tem que entender que ele tem que ir ao serviço de atenção básica, de preferência onde ele foi tratado, se possível, senão em algum serviço de atenção básica para relatar o que ele está sentindo e o diagnóstico que ele teve, seja quando for. Isso pode acontecer, e aí não é mais a doença infecciosa que a gente tenta explicar para eles. Existe a possibilidade de um comprometimento imunológico e o corpo dele pode reagir contra estruturas, como o nervo, como a pele, levando ao comprometimento e alguma evolução da doença."