Cura

Com o surgimento da poliquimioterapia (PQT) na década de 80, a hanseníase passou a ser considerada uma doença infectocontagiosa que tem cura. Isso foi uma grande conquista e tanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) como o Ministério da Saúde desenvolveram programas muito mais otimistas, desde o fim do isolamento compulsório até mesmo a meta de eliminação da hanseníase, a partir da existência deste tratamento. Os remédios da poliquimioterapia são eficazes para eliminação do bacilo da hanseníase, o que leva inclusive à interrupção da transmissão da doença a outras pessoas, com pouco tempo de tratamento. 

A evolução favorável da doença depende também do diagnóstico precoce e do tratamento feito corretamente, havendo assim maior possibilidade da pessoa vivenciar a cura. A experiência de adoecimento e tratamento da hanseníase é muito variada assim como a vivência de cura ou de expectativa de cura também. 

Vários participantes dizem acreditar e repetem o que os médicos falam: a hanseníase em si tem cura; as sequelas não têm cura, sem expressar conflito. Dentre eles estão, por exemplo, Erico, Ana das Graças, David, Felipe Sales, Marcos, João Carvalho, Geraldo e José Alves.

 

Por vezes acrescentam comentários, como David ao ver tantas pessoas no ambulatório, há tantos anos, ele pensa, poxa, uma cura estranha

Ou José Vieira, “olha, é igual eu tava explicando: ela tem cura, mas só que... eu vou repetir as palavras do Cabral: ‘ela tem cura, mas só que onde ela te lascou, lá não volta mais não”. 

Ou, ainda, Marcos, “quanto mais cedo você descobre, com menos sequelas você fica. As sequelas você tem que conviver. A cura que eu digo, assim... existe a cura da transmissão, mas o que ficou, ficou.”

Para vários outros participantes, quando perguntados eles respondem que “a hanseníase não tem cura”. Para eles é difícil vivenciar a cura, e eles enfatizam da experiência que nos relatam: de que eles não voltaram a ser o que eram; de ver os “dedos encolherem” e a sequela se instalar depois de terem recebido alta; de faltar força porque os “músculos e nervos não voltaram a funcionar normal”.

Para Izaías, “eu acho que não. A bactéria eu não sei se ela morre realmente ou se ela fica só fraca, eu não sei. Porque se ela tivesse cura, a gente não tava até hoje nos hospitais, nosso músculo, nossos nervos voltavam a funcionar normal. Essa dúvida que me pega. Eu não sei.”

 

Maria da Saúde: “eu acho que o bacilo da hanseníase, ele até tem cura, mas o que me intriga é a evolução das sequelas. Isso me intriga. Porque você ouvir do médico assim: "você está curada", você tem alta. Como eu ouvi: "olha, você tá curada, você não precisa mais tomar a cartelinha de remédios" e do nada você começa a ver – como eu vi – os dedos dos pés encolherem, virarem garra, e quando você anda, fere... Mas se eu fui curada, por que a sequela evolui? Isso é o que me intriga. Na verdade, eu acho que o bacilo ele cura, mas será que a sequela também? Eu fico com essa dúvida na minha cabeça. Estou sendo sincera. [sorri]”

 

Taísa é uma das participantes que não acredita na cura. “Eu penso assim, que já tem dois anos eu fazendo o tratamento com essa prednisona. Eu acho, pra mim, que não tem cura. Muita da gente também já falou que não tem cura. Todos que eu conheço que tem, fala que não, ela não tem cura, só apenas eles dão remédio pra não ficar machucando muito, maltratando o corpo da gente, mas que ela não tem cura... é todo tempo tomando remédio.”

 

José Melo acha que não há cura, cura mesmo não tem, porque eu já tô desde 2006 com esse problema, e a mão continua dormente. Fiz a cirurgia, mas continua dormente. Cura mesmo só quando Deus levar a gente. É a vida.”

João Ferreira também nos diz: “Olha, com todo o respeito aos médicos – e eu sei que a batalha deles é muito grande – eu não acredito que tenha. [...] “existe um controle pra que um paciente venha a melhorar das dores, evitar dele ir pra cadeira de rodas, de perder um membro, isso aí eu acredito. [...] Não posso me queixar dos médicos, tenho mais é que agradecer, mas..., esperança de eu voltar ao que eu já fui... não tenho mais não”.

 

Para vários participantes, a ideia de que a hanseníase “estabiliza”, mas não cura, é muito presente.

“Pelos tempos que eu faço o tratamento, eu acho que ela estabiliza, cura não. Porque a hanseníase pra mim curar mesmo é ela ficar... é eu não depender de nenhum médico, e eu dependo até hoje.” (Eliane)

 

“Sou sincero em dizer. Posso dizer que ela estabiliza ali, mas curar, curar não cura. Eu acredito que a sequela não é uma sequela que a hanseníase deixa, porque é uma sequela que fica dando problemas e problemas e problemas.” (Elias)

 

Josefa não sente que está curada. “Tem cura não, pode perguntar a todos eles, se algum disser que acredita, está mentindo, porque não tem cura não. Ela se afasta, ela se isola, fica de um jeito que a senhora não sente mais nada, nem nada, mas ela não acaba não. Os médicos sabem disso, é tanto que se eles não soubessem disso eles não pediam avaliação de 3 em 3 meses, a pessoa fazer avaliação pra saber se tem alguma coisa, que ela esteja voltando ou não. Eles não acreditam também não, eles dizem aquilo por dizer, mas eles não acreditam. Ela nem volta e nem acaba. Se tratar, tomar o remédio direitinho, aí um dia assim "fiquei bom", tá bom”. Tá certo, ficou bom, mas é porque é assim, ela nem volta, nem ela continua. Ela pára ali e ali mesmo ela morre, não vai nem pra frente nem pra trás”.

 

Marizélia vive também um sentimento de insegurança, não em relação aos profissionais, mas em relação à própria evolução da doença, a existência ou não de cura.

"Eu fico sempre em alerta, por exemplo, se eu sinto uma cãibra, eu digo: "Isso é cãibra. Isso não é a doença". Eu já... Eu já pego e aperreio o Vanderlei [enfermeiro]. Eu digo assim, eu ligo pro Vanderlei: "Vanderlei, eu tô com a doença, a doença voltou." A gente fica com medo. A gente sabe que a doença tem cura, porque a gente vê os trabalhos dizendo que tem cura, e você, você por ser da área, você sabe que ela tem cura, mas o medo ainda permanece na pessoa. Ela nunca... Na mente dela, ela sempre tá com medo de que a doença volte, tanto é que o que me traz aqui todo ano para fazer revisão é o medo. É o medo de que não tenha tido cura.”

 

Para Simone “não há cura, cura total não”. Simone fica insegura e desconfiada supondo omissão naquilo que é dito pelos médicos: “a única coisa que eu acho é que tem um diagnóstico muito vago, acho que podia ter um pouquinho mais de precisão: hanseníase pode causar isso, sabe? Assim, você pode ter isso, isso, isso, aí eu acho que, não sei, não sei se consigo explicar... Hoje eu falei até para a minha fisioterapeuta, tem hora que eu acho que alguma coisa a mais pode acontecer e o médico não fala. Eu vivo, eu tenho essa impressão. Se algo pouco ou mais grave, não sei o que pode acontecer com a gente. E essa informação acaba sendo omitida.”

 

Fábio também teme sofrer além do necessário por não ter uma informação mais completa da doença, não desconfiando do que foi dito pelos médicos, mas pelo o que não foi dito. Fabio adoeceu há 15 anos de hanseníase, tratou por 6 meses, e foi considerado curado. Sete anos depois adoeceu novamente, com sintomas diferentes, e custou a informar o médico que já havia tido hanseníase, pois os sintomas eram diferentes e ele não esperava o retorno da doença. Eu vejo que eu estou curado, hoje faço tratamento das sequelas, mas eu tenho um pé atrás, eu tenho, não desconfiando da palavra do médico não. Porque pelo que me constou, o vírus é morto, mas a bactéria, um viruszinho fica lá perdido lá dentro lá, aí do nada, do nada, ele se manifesta. Quer dizer, eu não sei se é um vírus que eu pego de fora, ou se é ali que ele revive. Essa é a visão que eu tenho. Eu só quero ter a consciência de saber que eu verdadeiramente fui curado dessa fase difícil que eu passei, de saber assim, amanhã ou depois se aparecer qualquer sintoma em mim, eu já tenho a inteligência de dizer assim: "não, eu já tive Hansen, de repentemente pode ter voltado". Isso ninguém me ensinou, isso eles não me orientaram, talvez se tivessem me orientado eu tivesse sofrido menos.

O sentimento de não estar ouvindo a verdade ou toda a verdade por parte dos profissionais de saúde que os tratam aparece na fala de alguns pacientes, e este sentimento abala a relação de confiança envolvendo outros aspectos do tratamento. Além de Fábio, no final da entrevista, quando o participante tem a liberdade de acrescentar, comentar, perguntar o que quiser com relação à hanseníase e à entrevista, Simone, Alexsandro, João B. Ferreira e Lóris escolheram mostrar sua desconfiança com relação à cura (ver o TEMA COMENTÁRIO FINAL).

Outros têm dúvidas com relação à possibilidade atual de cura. Cintia vive a dúvida se a cura poderá chegar: eu não sei se vai parar, se vai continuar... Essa é minha dúvida.

Lóris nos diz que, “eu acho que não, até agora não. Porque, de 2010 pra cá, até hoje eu nunca encerrei 100 por cento meu tratamento. [...] Até o momento, pra mim, eu acredito que ainda não existe uma cura ainda”.

Muitos participantes sentem pessimismo ao conversar com outros pacientes na sala de espera dos postos de saúde ou de serviços especializados na atenção secundária.

Neste contexto, Adriana, há poucos meses diagnosticada, nos diz “tem pouco tempo que eu estou convivendo, que as pessoas conversam comigo. Eu perdi a esperança. Eu acho que não tem cura não. [...] Hoje em dia a medicina está melhor do que era antigamente, faz cirurgia. Eu só peço a Deus, dia e noite, eu agradeço pra mim não ter tantas sequelas. Só isso que eu peço.” 

Alexsandro também faz referência ao que observa nas salas de espera: “Doutora, eu acho que não, só vejo as pessoas com pé caído, mão com não sei o que, eu tenho medo. Tenho medo de perder um dedo, tenho mesmo. Tem como combater ela, cura não.”

Outros valorizam o fato das pessoas estarem se tratando há muitos anos. Ermelinda: “Penso que não, porque a gente encontra paciente aí que tem muito mais tempo que eu e fala: “não, eles falam que tem cura, mas não tem não, porque tantos anos que eu tô vindo aqui”. Aí eu falo: “eu também, porque comecei aqui em 2007. Mas desde 93, pode contar, porque foi o primeiro medicamento que eu comecei a tomar.”

 

No entanto, há participantes que se sentem vivendo a cura. Pacientes jovens, diagnosticados há menos de um ano como Felipe e Matheus.

Felipe: “Sim, me falaram que tem [cura], pelo menos [sorri]. Agora, se eu fui enganado, é outra história.”

 

Matheus nos diz, “com certeza, eu vivo a cura, participo da cura.”

 

Yara, também, jovem, há 3 anos diagnosticada, embora já tendo passado por intercorrências que necessitaram de internação, mantém-se otimista.

Para Yara: “Acho que tem.”

 

E Geisa e Jucenir, mais velhos, com mais de 15 anos de diagnóstico, tendo apresentado vários sintomas e intercorrências da doença, e Jucenir tendo feito várias cirurgias relacionadas à hanseníase:

Geisa nos diz que “mesmo que ela seja uma doença crônica, eu acredito porque já fiquei curada uma vez. E complementa seu depoimento: eu fiquei 15 anos sem tomar remédio, sem ir pra hospital, sem ir pra lugar nenhum. Nem dor de cabeça eu sentia, 15 anos da minha vida. Até resfriado era difícil de eu pegar, entendeu? 15 anos. Eu casei, tive dois filhos, ajudei a criar meus sobrinhos, trabalhei, entendeu? Quinze anos da minha vida foi assim. [...] Meu filho tá com 14, meu filho com 12, são crianças perfeitas, graças a Deus, saudáveis. Então eu acredito, que se eu fiquei curada uma vez, eu posso ficar curada de novo, entendeu?”

 

Jucenir se “sente curado”, está sendo acompanhado, e faz questão de comparecer, mas não toma mais medicamentos, só Amytril de vez em quando.

 

Por fim, há participantes cuja fé os leva a considerar que existe a “cura divina”. Almir acrescenta que conheceu duas pessoas que ficaram curadas, o que “aguçou minha fé. Maria Luiza acredita na cura e sente-se curada: “eu acho que tem, tem, tem sim. É só a gente crer Nele que tem sim”. Geraldo Schupp também compartilha dessa perspectiva: “Cura... tem, tem cura. Tanto por vocês quanto por Ele lá de cima.”

Outros já pensam que “não há cura” e que “essa doença vem lá do começo do mundo, e eu acredito que não, ela vai adormecer lá um tempo, e depois ela volta”. (Denis)