Reagindo ao Preconceito

Não dizer a ninguém, com exceção dos familiares próximos, é o modo de agir de quase todos para se proteger do preconceito. Até mesmo alguns profissionais de saúde, não raro, quando orientam ao dar o diagnóstico, sugerem que a pessoa não fale para os outros que tem hanseníase. Até familiares, frequentemente as mães, dão este conselho. Vários participantes ao serem perguntados sobre a experiência de ter sofrido preconceito, respondem de forma segura: “eu não falei com ninguém”

Como nos explica Izaías

Na escola você sofreu algum problema pelo fato de estar com hanseníase?

“Não, porque eu não contava pra ninguém. Eu ficava na minha, quieto, não contava. [...] nem meu melhor amigo sabia. Acho que não sabe até hoje.”

Algum professor sabia?

“Nenhum professor sabia”.

Não dizer para uma pessoa do convívio diário ou até íntimo é mais raro, a não ser que haja forte desconfiança de uma possível reação preconceituosa que levará à rejeição. Por vezes, como foi o caso de Dona Maria, um teste foi feito: 

“Uma vez eu falei assim com ele: 'se tu soubesse, o que tu acha que uma pessoa, uma senhora com o diagnóstico com hanseníase?' Ele disse: 'o que que é hanseníase?' Eu digo: 'hanseníase, quando eu descobri o que era hanseníase, o que significava, é o mesmo: lepra. Só mudaram o nome, botaram um nome bonitinho agora: hanseníase. Se tu morasse com uma pessoa dessa? Como que tu ia fazer? Tu ia deixar, abandonar, coisa assim?' Aí ele: 'mas quem é?' Eu disse: 'uma colega minha, que o marido dela era cheio de preconceito com ela'. Aí ele disse: 'eu tinha era largado'. Desse jeito. Aí, eu larguei de mão, fiquei quieta.

 

Quando, por alguma razão, alguém estranha ou desconfia da atitude da pessoa com hanseníase, algum disfarce é imediatamente providenciado para que a suspeita de que a pessoa está escondendo algo se desfaça. Assim, supostamente, Alexsandro bebia e Josefa tomava banho de sol! 

Alexsandro, mesmo com os pés inchados, buscava justificar com atestado médico as horas em que se ausentava para o tratamento, mas não dizia a ninguém no trabalho. 

“No trabalho, igual quando eu faltava no trabalho, ‘ah, tu tá botando muito atestado, tu vai ser mandado embora’, mas eu não falava que eu tava no tratamento dessa doença. ‘Isso é bebida’, falava que eu bebia. Eu gostava de tomar uma cerveja. ‘Eu bebi’, pra não falar que eu tinha doença. Continuava trabalhando, tava recente, novo no trabalho, três meses, para mim não faltar, não perder o emprego, eu vinha, fazia o tratamento e voltava pro trabalho”.

 

Ou Dona Josefa

“A minha pele, só quando a Dra. Cazuê passou aquelas pílulas pretinhas pra eu tomar que eu fiquei mais escura, aí eu não andava no sol porque ela dizia ‘se você andar no sol, você fica mais preta ainda’. Aí eu ia trabalhar lá e ia no mercadinho que tem lá perto, aí a mulher falava ‘mas mulher de Deus, tu pegou sol e ficou bronzeada na tua pele? Tá bonita a tua cor, tá bonita desse jeito, sabia?’ Eu digo, ‘é isso aí, rapaz, eu vou pro banho e me bronzeio’. Que vou pro banho nada! Eu nunca ia. Era só pra despistar mesmo, que era pra ninguém saber.”

Dona Josefa nos conta da experiência de antigamente quando, como hoje, as pessoas não falavam que tinham lepra, e se descobria pela aparência, quando a doença se tornava visível e “as pessoas que tinham, a gente quando ia descobrir, já começava a notar porque via eles já inchando os dedos, até o rosto ficava grosso, as orelhas... Falava, ‘fulano tá leproso, repara como que tá ficando’, era assim, aí já ia se afastando daquela pessoa.

 

Felipe, jovem estudante da área médica, considera que entre os profissionais da saúde há o privilégio do conhecimento e do não preconceito. 

“Assim, eu confesso que fiquei até com medo de como as pessoas iriam reagir sabendo que eu tinha hanseníase, porque tem esse preconceito todo, então eu fiquei meio preocupado com isso”. No entanto, no ambiente profissional da saúde, Felipe considera: “na verdade eu não tenho problemas de falar sobre isso, porque eu acho que quem é da área da saúde, ‘ah, ele é leproso, não sei o quê’, não tem esse preconceito, quem entende, quem é da área. Sabe que é uma doença como outra qualquer, que você está sujeito a contrair, dependendo do seu sistema imunológico. Você não tem o que fazer, você não escolhe.”

Marizélia, enfermeira, não pensa exatamente como Felipe, embora tenha muita esperança na geração mais jovem de futuros profissionais de saúde. Para esconder, Marizélia fez o seguinte:

“Quando eu recebi o diagnóstico, depois de quinze dias, que aí eu viajei pra João Pessoa, e quando eu voltei eu comecei a fazer o tratamento escondido de todo mundo. Como escondido? O médico lá enviava pra mim por Sedex, amigo meu, o tratamento. Aí houve uma greve de Correios. Eu fiquei desesperada que eu não poderia pegar a medicação. Aí eu falei pra Valmira [enfermeira amiga]. A Valmira, ‘eu sabia que você tava me escondendo alguma coisa. Eu sabia. Por que que você não fez isso, Zélia? Ninguém ia saber, a gente fazia um jeito de ninguém ficar sabendo’. Eu disse, ‘não, mas eu sabia que as pessoas iam descobrir’.”

 

Sua experiência com profissionais de saúde não a deixou confiante como Felipe. O sofrimento de Marizélia foi marcante no corrimão dos leprosos: 

“Quando a ANVISA mandava a gente fiscalizar as unidades terápicas a gente ia, eu ia com um colega dentista... com outros colegas, fiscalizar. Aí eu me lembro de um episódio em que eu tava num hotel, subindo uma escada e eu passei a mão no corrimão. Aí ele fez: ‘Zélia, tira essa sua mão daí porque aqui tá cheio de leprosos’. Menina... Quando eu entrei no meu quarto, mas eu chorei tanto... Passei até duas e pouca da manhã chorando... Liguei pro meu marido e chorava ele de um lado e eu do outro. Sabe, só naquela agonia, naquele desespero, eu dizia assim: ‘Meu Deus, se meu colega sabe que eu tô enfrentando uma hanseníase... Ele até botou o nome bíblico... lepra’. Aí eu fiz assim... Porque o nome choca demais a gente! Mas eu superei e fui trabalhar com o olho inchado no outro dia. Ele perguntou o que era, e eu disse que era por causa que eu tive uma dor de cabeça, que eu não sei dormir fora da minha cama, me adaptar... enfim... inventei aquela história toda.”

 

Há também quem diga que superou o preconceito. Jucenir nos conta como foi importante para ele ler a história de Jó: 

“Aí foi que eu comecei a ler a história de Jó. O livro de Jó, eu vi o sofrimento dele, engraçado, que quando eu estava lendo, eu tava lá dentro da história, e eu me sentindo. Porque se Jó superou tudo, por que eu não posso? Aí foi que eu tirei o preconceito, eu saí do preconceito, eu não me importava mais com as pessoas que estavam com o preconceito porque o problema era deles, não era meu. Eu superei esse problema.”

Superado o preconceito, Jucenir passa a falar para as pessoas que têm hanseníase.

Com o tempo eles souberam porque eu falei, porque não tive mais o preconceito de ficar me escondendo, ficar me judiando. Eles souberam depois de um ano, quando eu tava em tratamento, eu tava ficando escuro por causa da medicação, aí eles perguntaram por que eu tava ficando escuro, e eu falei por causa que eu tava fazendo tratamento de hanseníase. ‘É a lepra?!’ ‘É.’ ‘E como é que tá?’ ‘Hoje tou superando. Mas eu quero saber se você tá superando, quero saber se você vai continuar minha amizade?’ Eu cheguei e fiz essa pergunta. Eles falaram, ‘a gente jamais vai te abandonar porque você aqui foi uma pessoa que sempre estendeu os braços pra gente, sempre orientava a gente aqui’.”

 

Quando não dá para esconder, a pessoa enfrenta a situação de diversas maneiras. Por vezes é possível um diálogo mais suave, outras vezes não. A ideia de que existe justiça, e de que todos têm direitos iguais está presente. Não se deve ter culpa por estar doente. A natureza, Deus ou a polícia são lembrados como autoridades e podem fazer justiça. Em ambos os casos, depois do diálogo, as pessoas mudaram de atitude para com elas.

Argumenta David: “eu falava com eles assim ‘gente, vocês têm que ter cuidado que isso não dá em pedra, gente, nós somos seres humanos. Todos nós estamos sujeitos. Não tem rico, não tem pobre, não tem ninguém. Tá todo mundo sujeito, desde o momento que você está no mundo, você está sujeito”. [...] Todas as pessoas que chegavam assim me censurando, tentando me colocar pra baixo, eu sempre falava assim ‘vocês têm que se ligar numa coisa: nós não sabemos o dia de amanhã. Claro que todo mundo se preocupa em se cuidar, se tratar, mas mesmo as pessoas que se cuidam, elas estão sujeitas’.”

 

Geisa nos conta o que disse à vizinha: “se você ficar falando, eu posso ir numa delegacia dar queixa de tu, dar parte de tu, e se eu for, eu não vou tirar queixa.' Falei pra ela. ‘Porque você tá falando pra todo mundo coisa que você nem sabe, se você quer falar, você procura um posto, procura um médico Dermato e pede informação primeiro antes de você espalhar o que você não sabe’. Falei pra ela assim ‘se você ficar falando pros outros coisas da minha vida que você não sabe, eu vou na delegacia e vou dar parte de você. Entendeu?’ Falei pra ela: ‘Eu vou lá, pego meus laudos e vou com tudo. Vou dar parte de você e se eu for dar parte de você vai vir uma viatura aqui te pegar e você vai presa e eu não vou tirar a queixa’, falei pra ela. Aí eu acho que ela parou, porque não escutei mais ela, pelo menos piada pra mim, ela não jogou mais.”

 

Às vezes, a autoridade é o profissional de saúde. Durante a fisioterapia, Izaías nos conta:

“Há muito tempo chegou algumas estagiárias, só que a Mabel [fisioterapeuta] ia explicando pra elas. Aí elas faziam aquela cara de ‘nojinho’, aí eu olhei assim pra cara da Mabel, e eu perguntei, ‘posso falar, Mabel?’ E ela, ‘fala, fica à vontade’. Foi a hora que eu falei: ‘olha gente, vocês podem ficar tranquilas que hoje em dia a gente não tem mais... a bactéria tá morta, então não tá mais viva na gente não, a gente já fez o tratamento certinho. Então vocês podem meter a mão na gente à vontade, tá?’ Aí a Mabel [fisioterapeuta], quando ela entrava, ela até falava: ‘quer falar teu discurso?’, e às vezes, eu falava ‘acho que não precisa não’.”

 

E, ainda, uma forma de reagir ao preconceito, inclui a participação nesta entrevista, como nos diz Ermelinda

“Sofre também por bobice da gente também, que a gente fica com timidez de falar pras pessoas também. Muitas vezes a pessoa pergunta o que que eu venho fazer aqui em Porto Velho, e eu nem falo.” [...]

Eu quero agradecer a todos vocês por ter ajudado a gente. Ajuda muito. E que através dessa entrevista, que pode muita gente ficar sabendo, é bom, que a gente se liberta desse mal. Agradeço a todos por isso.”