Percebendo o Preconceito

Muitos associam o preconceito ao desconhecimento da doença. Como nos diz Adriana: “tem muita gente leiga da doença ... é uma doença que não é divulgada. Ou David, “porque todo mundo tem a Hansen como lepra, os ignorantes, porque hoje em dia não é mais”.

Cintia nos conta como as pessoas reagem muito preocupadas de terem se contaminado na convivência com ela: “e agora, será que eu peguei? Porque eu conversei com você, porque eu apertei sua mão, porque eu fui um dia desses na sua casa...”

Mesmo com muita discrição, o que é a regra, o tratamento com a clofazimina ao escurecer a cor da pele torna visível o que muitas vezes até então ninguém sabia. Eles ficaram sabendo, principalmente, quando eu fui mudando de cor; com 15 dias já deu para notar que eu tinha mudado de cor”, diz Cintia. E complementa: “Não podia sair de casa... porque eles vinham perguntar, não tinham vergonha não, vinham me perguntar mesmo.” Ou, no dizer de Maria da Conceição, eles já tinham a sabedoria deles, ao descrever que a vizinhança que a conhecia ao ver, de repente, seu rosto manchado, a pele toda manchada, toda preta [escurecida], aí eles já sabiam que era aquela doença”.

E o resultado é sempre o afastamento seja de familiares, seja de amigos, seja da namorada, seja até de desconhecidos. As mãos em garra também levantam a suspeita da pessoa ter hanseníase: quando eu pegava ônibus, tinha gente que nem se sentava perto de mim quando percebia que eu tinha a mão estranha; teve uma vez que até uma senhora disse que não iria sentar perto de mim porque eu estava doente. Mas há também solidariedade. Nesta mesma situação, no ônibus havia apenas aquele lugar. Aí, uma moça grávida falou: ‘eu troco com a senhora, a senhora senta no meu lugar, que eu sento perto dela’. Aí se sentou do meu lado, nos conta Cintia

 

José Vieira: 

Constrangido eu fiquei quando um camarada não quis beber água por causa da hanseníase, quando soube que eu tinha hanseníase, ele não quis beber água. Ele disse que pegava, esse amigo nosso. Aí eu falei, 'misericórdia'! Aí que o cara vai no chão mesmo. Ele acha que todo mundo em volta dele só tá com dó dele. Porque o sentimento é uma coisa difícil.”

 

Mais uma vez os profissionais de saúde que tratam as pessoas com hanseníase são apontados como pessoas que “levantam sua autoestima”. O acolhimento realizado por eles desde o diagnóstico faz diferença para as pessoas adoecidas como nos relatam vários participantes. Nas palavras de David:

Nós temos muita ajuda, graças a Deus, o pessoal quando procura ajuda, esse hospital aqui, o pessoal tem me ajudado muito, eu conheci muita gente boa aqui, médicas, enfermeiras, fisioterapeutas, lá em Mesquita a mesma coisa, muita gente boa, sabe? Eles te levantam, levantam a sua autoestima, mas a discriminação tem, a discriminação não vou falar que não, ela existe.

 

E o silêncio, a discrição é a regra de ouro para não sofrer discriminação. 

Como nos diz Fábio: “eu acho que eu não sofri preconceito porque eu não divulguei. Eu só divulguei pras pessoas que estavam próximas, pras pessoas na rua eu sempre dizia que eu tinha ‘problema reumático’, essas coisas. Não trazia às pessoas o problema.”

 

Quando alguns familiares e amigos se afastam por “rejeição” à pessoa com hanseníase, essa “é uma das coisas que machuca muito a gente” nos diz João Ferreira, mas ele conclui: A gente não pode desesperar, porque sem todos que nascem em cima desse chão, a gente não vive, não consegue viver, mas sem um ou dois, a gente consegue”.

 

Quando perguntamos aos participantes se eles conhecem outros casos de hanseníase na vizinhança, no trabalho etc. muitas vezes eles nos respondem que há várias pessoas que não sabem que têm a doença, e muitas, se sabem, não dizem com medo do preconceito. 

Na vizinhança, Geisa teve um diálogo difícil com uma vizinha, que lhe disse que ela tinha lepra e que por isso não devia estar morando ali. Geisa respondeu: os incomodados que se mudem, se você está incomodada, você se muda, porque eu não estou com lepra não, o nome dessa doença é hanseníase e ela tem cura; fazendo o tratamento certo, de certo tem cura.” A vizinha chegou a dizer que “a carne estava podre, por causa das bolhas que deu”, quando numa fase de piora Geisa precisou inclusive ser internada. 

 

Mesmo assim, e por isso mesmo, muitos procuram dissimular. Josefa, ao ir ao supermercado, ouviu elogios à sua cor, e perguntada, para “despistar”, respondeu que estava tomando banhos de sol. 

Por vezes, em função da posição social e institucional da pessoa que toma a atitude, o preconceito ganha dimensão institucional. Felipe estava empenhado em terminar o último ano do ensino médio, aos 25 anos. “Não faltava aula de jeito nenhum. Aí quando eu descobri [o diagnóstico] comentei com um amigo, que acabou falando para alguém até cair na boca da diretora, aí ela me proibiu. Me chamou, também não espalhou para ninguém, me chamou, explicou a situação que eu só poderia assistir aula com laudo médico dizendo que eu poderia frequentar o colégio. Aí eu fiquei chateado pra caramba com isso e não voltei mais, nem tentei de novo.”

 

As crianças também sofrem com o preconceito. Luiz não pode mais brincar com o amigo com quem brincava todos os dias na rua, porque a mãe do colega proibiu; mas outras mães “eram conscientes do que era a doença”, e não proibiram. A filha da Taísa precisou mudar de escola, porque na escola que ela estava quando teve o diagnóstico aos 6 anos, a professora teve várias atitudes discriminatórias quando soube pela Taísa, mãe da menina, que achou que deveria avisá-la.

 

Maria Anabia chora e nos diz, Olha, eu acho que eu sou uma das pessoas que não superei”, ao lembrar da descoberta da sua patroa que ela se tratava para hanseníase, quando ela trabalhava de doméstica, grávida da primeira filha, com 15 anos. A patroa perguntou por que ela não havia falado que tinha essa doença, pois ela podia passar para seus filhos. Este não era o seu primeiro emprego, mas as outras patroas não souberam, nem descobriram.

 

Por vezes, o preconceito vem da parte de profissional de saúde, que não trabalha com hanseníase, como o médico que realizou a perícia de Maria da Saúde

“Eu também sofri um preconceito quando eu fui me aposentar, que a doutora me deu o laudo, e o perito do INSS, eu achei aquilo um preconceito, porque quando eu entrei na sala, ele colocou uma máscara, ele me colocou no fundo da sala e pediu para mim ficar falando de longe. Aquilo me incomodou. Eu falei: ‘por que que eu tenho que ficar quase gritando com o senhor daqui?’ Aí ele falou: ‘não, é porque eu estou resfriado’. Aí eu falei: ‘mas o senhor ficou resfriado assim que eu entrei na sala?’ Eu senti que não era resfriado. Porque quando ele perguntou qual era o motivo do pedido, e eu falei: ‘sequela de hanseníase’, automaticamente ele não deixou nem eu me sentar. Ele falou: ‘peraí’. E botou a cadeira longe, botou máscara. Eu me senti muito mal com aquela atitude dele, mas graças a Deus eu saí dali.”