2.7 Incerteza e medo da evolução da doença

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A pandemia da COVID-19 foi uma surpresa para todos. Sem tempo de planejamento para enfrentar essa doença, e sem muita informação científica disponível, o enfrentamento foi, aos poucos, sendo configurado. Os pacientes estavam em suas rotinas de trabalho e convívio social quando foram pegos de surpresa pela pandemia, o que gera incerteza de saber em qual momento se contraiu a doença, Márcio nos contou que muitos parentes se surpreenderam com sua hospitalização e o questionaram sobre como sua doença evoluiu rapidamente para um estado crítico, e ele nos diz: “tem muita gente que achou que peguei, sei lá, numa balada, no restaurante. Falei ‘pior que não foi nada disso, cara, foi trabalhando’.” 

Para Soraia, o mais assustador foi a necessidade de ser hospitalizada na rede pública, onde testemunhou dificuldades em alguns serviços. O fato de ter tido uma assistência humanizada, em um hospital de referência, foi o que a deixou um pouco mais tranquila em relação à evolução do seu quadro. "De repente a gente se vê hospitalizada por conta disso é assustador num meio de uma pandemia, onde eu vi atendimento mesmo sendo em rede pública, porque todos foram rede pública, foi SUS né que eu passei, muito diferenciados. Eu fiquei muito assustada, acho que foi a pior parte da minha vida que foi quando eu passei essas 24h nesta emergência, nessa UPA, eu fiquei muito mais muito assustada, eu não posso nem dizer que foi falta de atendimento, talvez a própria carência de profissionais, mas eu me senti ali realmente que foi o pior momento da minha vida, quando eu cheguei no gripário talvez eu dei uma grande sorte que esse gripário não estava cheio, tinham pouquíssimas pessoas neste gripário, pacientes, então eu realmente eu tive uma atenção, um cuidado maior, a família pode estar mais próxima e aí depois no Couto Maia onde finalmente o familiar não pode ter acesso, mais tinha toda uma assistência bem humanizada mesmo, foi surreal.”

 

Eduardo contou sobre como se sentiu devido a incerteza de sua evolução: “Eu estava totalmente no bagaço físico e emocional que essa doença causa, porque ela é uma incerteza. A gente não sabe, ela é uma caixa de Pandora. A gente não sabe como vai evoluir. Então, tive muito medo e naquele momento foi muito difícil, mas fui muito bem cuidado.” 

 

Alguns participantes contaram da incerteza que viveram sobre a evolução individual da doença. Márcio acompanhava os números crescentes de falecidos pela COVID-19, tomava os cuidados para não contrair a doença, quando alguns casos começaram a aparecer em amigos e familiares, e ele conversava com essas pessoas e elas o acalmavam, dizendo que tinham sintomas brandos. Mas seus receios se confirmaram quando ele adoeceu, pela gravidade de sua evolução com a COVID-19: “Aí depois que ocorreu isso comigo, vi que por um lado as pessoas que eu soube que pegou e tudo mais foram brandas, e até quando eu peguei eu falei com algumas pessoas que pegaram, “cara, você teve reação assim?” Ele, “cara, tive febre durante quatro dias”, “ah então vai melhorar, vai ficar tranquilo e tal” e eu falei “cara, não melhorava”, e aí foi ladeira abaixo em relação, mas engraçado quando eu fui para hospital e tudo mais que comecei a conviver e conversar com as pessoas do que eu passei, aí começaram surgir depoimentos próximos das pessoas que passaram, e aí você de fato vê do que essa doença é capaz de fazer, de afetar, não só a função respiratória, mas nas outras funções vitais do seu organismo, de como ela consegue ser maldita, de como isso acaba com a pessoa e leva a morte.” 

Os participantes manifestaram sintomas de formas variadas e, às vezes, de maneira imperceptível, como contribuiu Nelson: “Não deu tempo de planejar, não deu tempo para conversar, nada. […] Aí fui fazer essa viagem, quando voltei foi tão rápido que eu não pude nem falar assim para minha esposa: ‘Neguinha estou mal, sentindo a falta de ar’, eu não pude, não tive tempo, eu não percebi.” 

Com a rapidez de instalação da doença, também veio as preocupações por ter a rotina interrompida de forma abrupta e a possibilidade de morrer, como Fabrício internado no sistema público compartilhou: “quando o médico falou que ia me entubar, a única coisa que veio na minha mente foi minhas filhas que de repente poderia morrer e não ver elas mais.” Dessa forma, os pacientes passaram por diversos momentos de grande incerteza  na evolução da própria doença. Fabrício ainda contou que achava que não sobreviveria a doença: “Foi uma coisa assim muito espontânea, na verdade, quando a gente a gente cai num estado desse, é algo que não dá tempo pra nada, não tive tempo de falar com ninguém, com os familiares, aí tipo eu falei com o pessoal na época e me despedi. Eu falei assim, 'olha, eu acho que essa é a última vez que você vai escutar minha voz. Eu não estou bem. Eu acho que não volto mais'. E foi isso, não consegui. Aí eu não consegui mais falar com mais ninguém.” 

 

Glauciane, ao ser internada, também lembrou do filho. E pensou no seu trabalho como profissional da saúde, pois nesse momento estava em um papel invertido em que era ela a paciente: “Eu tenho um filho e aí eu falei: é agora! Quando eu estava lá com o paciente, você dar um apoio, um acolhimento, você consegue ver de outra forma. E agora eu sou o paciente, eu preciso de cuidado, como é que fica? Como é que vai ficar para a minha família, como é que eu vou ficar? E aí, assim, surgem todas aquelas dúvidas que eu mesma, às vezes, tirava do paciente, surgiram todas as dúvidas em mim também. E agora? É uma doença desconhecida.”

No caso de Mábia, também profissional de saúde, seus receios giravam em torno de ainda não existir um protocolo definido ou remédios com eficácia comprovada. “Eu mesma me senti muito amedrontada porque era uma doença que estava no início, os protocolos mudavam quase que diariamente, não existia ainda fechado uma droga de escolha, eram várias drogas que estavam utilizando, que eu não sabia qual era a que tinha eficácia, então tive muito medo, tive medo de uma complicação, eu dessaturei muito.”

Pelo fato de ser uma doença recentemente descoberta, ao serem internados, por não haver um protocolo estabelecido de forma mais definitiva, ao serem tratados, havia muita incerteza, como compartilhou Márcio: “Então, é uma doença respiratória e como ela influencia todo o resto do corpo, toma um medicamento para ajudar em uma coisa, atrapalha a outra, cara, é uma doença muito agressiva e bizarra.” Ele ressalta também que conversando com sua esposa se questionava quando a pandemia iria acabar, e achava difícil que ela acabe a curto prazo. Wellington também compartilhou: “o meu médico falou: ‘Wellington, era tanto tratamento que eu não vou saber dizer para você qual foi que deu resultado, entendeu? Porque a gente vai tentando com o tempo vários medicamentos e em determinado momento você reagiu, mas a gente tentou diversas coisas, então eu nem sei o que que foi que deu resultado que foi até mais rápido do que o esperado’.” E Glauciane: “os médicos falavam ‘agora é rezar para não evoluir para uma piora. Porque é algo desconhecido, a gente vai dar todas as medicações e você já sabe: vai ter que ficar internada, vai ter que passar por todo o processo de exames’.” Como nos diz Wellington

 

A rápida velocidade com que os sintomas se agravaram também deixou os pacientes preocupados sobre sua situação de saúde, sendo tomados pelo medo de falecerem, como contou Maria Verônica: “era para eu ter morrido, porque a velocidade que foi a doença que propagou em mim foi tão grande, que em uma situação normal talvez na sexta feira era para eu ter morrido, não ia dar tempo de chegar até o hospital. Então, eu dei muita sorte de encontrar pessoas preocupadas com a vida, batalhando para que as pessoas tivessem saúde.” 

E além da rápida instalação da doença, Paula nos contou que seu estado de saúde oscilava entre momentos melhores e outros piores: “Todos ficavam muito alertas, muito apreensivos. Todos que falavam comigo era do quanto sofreram, angustiante, de saber do meu estado. Porque eles relatam assim, que era uma gangorra, que tinha dia que era uma notícia boa, que a minha carga viral tinha diminuído. Aí, no outro dia, tinha subido de novo. Então, eles nunca ficaram tranquilos.”

Essa evolução rápida dos sintomas foi diversa entre os pacientes, alguns conseguiram dirigir seus veículos até o atendimento médico, outros tiveram de ser levados, pois os sintomas já estavam mais avançados, mas percebe-se que a evolução foi muito rápida, sendo necessário um cuidado hospitalar. Isabel contou que, para ela, a evolução foi em horas: “porque o que eu senti do covid, assim das pessoas que tavam lá passando a mesma história ou até muito piores que eu, comigo eu senti que a doença muda em horas, ela não muda em dias, ela não muda em dois dias, ela muda muito, eu não sei se de repente, se foi a tal da cepa delta lá que eu peguei ou se é uma coisa normal. Você deve tá nessa área mais profunda do que eu, mas ela muda muito rápido. Então se você não tem médico que ta te acompanhando com exame, porque não adianta você estar com febre, você não estar com febre, você tomar isso, você tem que fazer exame de sangue, fazer uma tomografia para saber exatamente onde está atacando. É muito difícil se segurar porque eu saí, na verdade, eu internei, fiquei internada uma semana, e meu sogro internou.” 

 

Ademais, foi notório que a COVID-19 se instalou desde os jovens até os mais velhos, não respeitando idade para ter um padrão de gravidade. Maria Verônica compartilhou sobre isso: “o covid não escolhe a pessoa, ele pega todo mundo, tem atletas que estão morrendo ai, tem pessoas idosas que estão morrendo, tem de todo tipo, então não tem uma lógica essa doença, não dá pra entender o que acontece.” 

Julio compartilhou que se precavia com os meios disponíveis e por isso se surpreendeu ao descobrir que estava com COVID-19, ele conta: “Pela precaução que eu tinha de estar sempre usando máscara, e pelos cuidados que eu tinha de alimentação, fisicamente eu sempre, sempre fiz atividade física. Então, eu achava que essa coisa não ia se aproximar de mim […] Então, foi uma questão que todo mundo ficou sem entender nada, ‘como é essa doença? Como isso funciona?’ A gente não sabe nada.”

Entretanto, Wellington contou que, para ele, não foi surpresa o diagnóstico, mas sim a rapidez da evolução, ele diz: “no primeiro momento tinha uma mancha insignificante no pulmão e dois dias depois eu já tava com cinquenta por cento de comprometimento, no mesmo exame, então isso para mim me assustou. Então, em dois dias o meu pulmão piorou em cinquenta por cento assim, falei, ‘caramba é muito rápido’.” Com essa incerteza de sua evolução, ele conta que manteve a positividade, acreditando que iria sair dessa situação.

Além disso, havia a incerteza sobre a melhora da saúde, mesmo utilizando medicações, alguns pacientes tinham oscilações durante a internação, como contou Alcione: “Era uma incerteza que, às vezes, num dia eu acordava muito bem disposto: 'nossa, hoje eu acordei ótimo, que bom! Vou preparar meu café, vou tomar e tal'. E aí, daqui a poucas horas, o dia ia passando e eu começava a sentir tudo de novo e finalizava o dia muito pior do que o dia anterior. Ou tinha dia que eu acordava mal e falava: 'nossa, hoje eu acordei pior do que ontem, então nossa, eu estou piorando'. E aí isso era ruim porque não tinha um padrão assim, algo para eu comparar. Tinha dia que eu estava bem, no outro dia estava pior, no outro dia tinha uma melhora, no outro piorava de novo e eu não tinha uma referência e isso não era legal para a mente, de pensar: 'Estou melhorando, vou ficar bem e tal'. E assim foi. Mas foi passando e piorei. E quando piorei, vi que estava ruim mesmo que disse que eu tinha que procurar ajuda.” 

 

Com tudo isso, uma das questões mais frequentes relatadas era a incerteza da  sobrevivência da doença, como compartilhou Maria Claudia: “Eu tinha muito medo de morrer, muito, muito, muito. E como tenho um filho, eu ficava pensando, como é que eu vou deixar meu filho, entendeu?” E, Augusto: “Bom, moral da história, e aí começa o pesadelo. De uma hora para a outra você está em casa e um dia e meio depois, dois dias depois, você está no inferno, porque você entrega o celular, tiram a tua roupa, coloca uma fralda. E começa o processo sem fim de para onde isso vai. E meu quadro foi se agravando. Foi se agravando.”

Camila internada no hospital público, contou que o aparelho que se deveria apertar para chamar um profissional da equipe, até isso era incerto, pois nem sempre funcionava: “e se eu passar mal será que o negócio vai estar funcionando? Tinha gente que apertava lá, e só para ver se estava funcionando. Às vezes a gente falava: 'ó qualquer coisa eu te chamo, e aí você aperta o seu para chamar'."

Durante a internação, principalmente no hospital público, os pacientes não tinham acesso aos seus celulares para falar com seus familiares, sendo a comunicação feita pela equipe profissional. Alcione contou que nem sempre as informações eram passadas integralmente a ele, mas somente aos familiares, o que lhe trazia incerteza sobre seu próprio estado de saúde: “a equipe mesmo não me passava muita coisa e não contavam, eles deixavam mais para falar mais com minha família. E alguns colegas acompanhavam o meu quadro e eu comecei a ficar preocupado. Em algum momento teve um plantonista que falou que eu estava com uma piora e que eles estavam estudando talvez até iniciar a ventilação mecânica e que eles iam tentar a pronação, e se não funcionasse, ia precisar de ventilação mecânica.” 

 

E mesmo após três anos do surgimento da COVID-19, ao ser entrevistado, Eduardo nos disse que ela ainda é uma doença a ser desvendada: “Então, a COVID é ainda uma doença que é assim, uma doença traiçoeira. Uma doença que embora a gente saiba muita coisa da sua fisiopatologia, da história natural e, enfim, da evolução e do tratamento, ainda tem algumas nuances que ainda não foram totalmente desvendadas. E a gente pode medir por completo ainda hoje os impactos diretos, clínicos ou epidemiológicos, mas o seu impacto psicossocial, isso vai demorar muito tempo pra gente poder de fato mensurar a repercussão disso.”