2.3 Vivendo os primeiros sintomas

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Sabemos que a apresentação da COVID-19 é bastante variável, indo desde a ausência completa de sintomas (infecção assintomática) até sintomas graves como falta de ar, cansaço e insuficiência respiratória. Embora a maioria das infecções não seja severa, os entrevistados compõem um grupo restrito de pessoas que evoluíram com doença grave e necessitaram de tratamento em unidades de terapia intensiva ou semi-intensiva. A maioria deles refere um curso semelhante de início da doença: tosse, mal estar, dores no corpo, dor de cabeça, diarreia, dor de garganta, perda de olfato e paladar… 

Em muitas das vezes, os primeiros sintomas foram leves e não preocuparam os nossos participantes, embora os tenham deixado em alerta nos próximos dias. Como Alcione nos diz: "Inicialmente pensei ser só uma síndrome gripal mesmo, mas já fiquei atento a qualquer alteração que fugisse dos sintomas habituais de gripes e resfriados." Pelo fato dos sintomas iniciais serem inespecíficos, repetidas vezes eles se perguntaram se enfrentavam apenas uma gripe comum, ou se seria o início da COVID-19: "Será que é, ou será que não é?" (Marcelo)

Em alguns casos, os sintomas foram confundidos com outras doenças. No caso de Bárbara, por exemplo, ela buscou atendimento quatro vezes em unidades de pronto atendimento distintas até receber o diagnóstico de COVID, dois dias antes de receber o diagnóstico de COVID, ela foi tratada para chikungunya por ter apresentado um inchaço nas articulações associado à febre, e nas outras vezes foi tratada para asma (que ela descreve como ‘cansaço’ respiratório), até chegar na última vez, onde foi tratada para COVID e regulada para unidade hospitalar. “Eu fiquei preocupada que eu senti cansaço e eu fui pra 3 UPAS, a primeira UPA de Valéria, eles me deram remédio pra cansaço, fez um raio-x não deu nada. Voltei de novo, fui lá pro Curuzu, o Curuzu... também me deu remédio de cansaço… na época, não tava dando nebulização por causa da covid e também aquelas injeções e... Voltei, de novo, na 3a vez pra lá pro… Valéria e o médico passou um remédio pra tomar pra covid.”

Já no caso de Gilson, os sintomas iniciais de COVID foram confundidos com os sintomas de um quadro alérgico habitual que ele tinha ao consumir frutos de mar. Apenas quando a filha aferiu sua saturação, por uma queixa de cansaço exacerbado, que a gravidade de seu quadro se tornou perceptível. "Demorou demais para se manifestar dessa forma, e como eu entrei no hospital, talvez eu não resistisse aquele dia 31. Talvez eu amanhecesse o dia 1º morto… Se não fosse minha filha pegar o oxímetro. Mas eu estava aparentemente bem, eu conseguia andar, só o cansaço bastante acentuado.”

 

Outros pacientes já presumiam tratar-se de COVID-19, seja por uma exposição prévia, seja pela alta do número de casos naquele momento, ou mesmo por conhecer o funcionamento de seu organismo. Como nos diz Margareth: "Eu não sou de ter dor de cabeça, então ali eu comecei a perceber que eu estava desenvolvendo sintomas"; e como nos conta Julio: "Os primeiros sintomas que eu tive, eu já achei que estava com COVID sim".

O momento do desenvolvimento de sintomas graves é um marco importante na narrativa dos nossos participantes. A percepção deles sobre a piora varia, e muitas das vezes a sensação é de um cansaço inespecífico, como nos conta Maristela: "Era o corpo pesado, sabe? Eu não conseguia… parecia que eu tava com um chumbo em cima do meu corpo. Uma coisa muito ruim." Ela acrescenta: "Então aquilo me angustiava, porque eu não conseguia fazer as coisas, eu não queria me levantar, só queria ficar deitada, o corpo pesado". Muitos lembram exatamente o momento angustiante quando os sentiram, como na fala de Ademir: "eu amanheci com muito frio, muito frio, me arrepiando. Achei estranho." Nelson nos descreve a sensação de "falta de ar", o principal sintoma da COVID-19 grave:

"Eu vou dizer para você, [...] a sensação que eu senti foi a mesma de uma pessoa que está se afogando. Porque uma vez, quando eu salvei a vida de umas crianças lá na Região dos Lagos, eu salvei elas mas não tinha força para me salvar. Mal consegui sair, a onda me jogando… não consegui sair. Mas a sensação que eu senti nesse momento… eu sentia o vento no meu corpo, na minha pele, mas eu não conseguia sentir o oxigênio em mim. Dá aquele desespero." 

 

Há ainda aqueles que não viveram os sintomas clássicos antes da internação. Elisa nos conta que descobriu que estava com COVID-19 através da testagem que realizou por ter tido contato com sua mãe, à época internada na UTI. Ela só percebeu que estava piorando devido à monitorização da oximetria: "Eu não senti absolutamente nada, nem falta de ar. Eu só sabia que eu estava saturando menos já no final, quando eu estava chegando no hospital." Maria Verônica é outra participante que não descreve sintomas respiratórios antes da internação, como nos conta em sua narrativa:

"Na verdade, eu não suspeitei, mas fui pega na contramão da história. No dia 11 de abril do ano passado [2021] comecei a me sentir mal do estômago, e no dia 12 fui para emergência do hospital porque os remédios de uso caseiro não estavam fazendo mais efeito. Eles fizeram uma tomografia do abdômen, exames de sangue que deram inexistência de qualquer problema. Medicaram pra enjôo [e me disseram] para que eu retornasse para minha casa e que no dia seguinte estaria bem. No dia seguinte realmente acordei bem, sem problema algum. Aí de manhã, eu recebo uma ligação de uma médica do hospital onde estive internada [...] [dizendo] que estava revendo os exames do dia anterior, e que ela estava com o meu na mão. Eu agradeci e perguntei se estava tudo bem. Ela disse que [...] no abdômen não tinha nada, só que ela podia ver um pedaço do pulmão nesse exame, e ela gostaria que eu retornasse ao hospital para fazer uma tomografia dos pulmões [...] Retornei ao hospital, procurei a médica da emergência e ela me explicou que havia uma suspeita de COVID. 'Impossível, não estou sentindo nada, não tenho febre, não tenho nada, nenhum dos sintomas respiratórios que são previstos no COVID, como é que pode isso?' [...] Quando foi na quinta-feira, saiu o teste do COVID, deu positivo, mas aí já havia piorado muito e me transferiram pro semi-intensivo. [...] Quando foi às nove horas da manhã do dia 18 de abril, eu já estava no CTI intubada."

 

"Será que vou morrer? O que será que vai acontecer?" Como Marcial nos traz, o medo da morte, a ansiedade a respeito da evolução e a incerteza sobre o futuro são frequentes após o desenvolvimento de sintomas graves. Isabel descreve o curso da maioria dos participantes, desde a sintomatologia leve até os sintomas graves: 

"O que aconteceu com meu COVID foi que eu fui piorando, piorando, piorando, piorando. Não tinha assim: 'gente, ótimo, vou ficar isolada aqui por 10 dias' - assim como aconteceu igual com todo mundo. [...] Eu só piorei muito. Daí eu comecei a ter problemas de oxigenação, eu comecei a ter falta de ar, que é a sensação pior do mundo, que eu nunca imaginei. Tive muita febre, tinha 39oC. Daí fui para o hospital pela primeira vez com meu médico no telefone, enfim, tomando conta e tal"

 

Apesar de reconhecerem a gravidade dos sintomas, muitos dos pacientes relutaram em procurar atendimento no hospital ou em outra unidade de saúde. A decisão sobre o momento de procurar ajuda parece ser central, principalmente nos momentos críticos da pandemia, quando do crescimento do número de internações e de óbitos por COVID-19. Como nos conta Maria Claudia: "Eu comecei a ficar bem nervosa, porque na época estava passando um monte de coisa [na televisão], todo mundo morrendo, não tem vaga no hospital. E aí a cabeça pira, né?". Por medo, Isabel falava para seus familiares: "Não me leva para o hospital, se eu passar mal você não me leva para o hospital! Me deixa quieta aqui que eu vou melhorar". Mesmo após a avaliação de seu médico e da indicação de cuidados hospitalares, o temor de ir para o hospital era grande: "eu não saio de casa de ambulância nem amarrada".

Viviane nos conta que seu esposo e filhos não consentiram em procurar ajuda médica, pois tinham medo de que ela não voltasse mais do hospital. "Meu esposo não queria deixar de jeito nenhum ir pro médico, com medo de eu morrer, porque estava sendo muito caso de gente no hospital que morria. Eu tenho três filhos [...] e também estavam com medo de eu ir." Foi quando ela, por fim, tomou a decisão de procurar ajuda por conta própria: "gente, eu não aguento mais, eu tô passando mal". Uma experiência diferente ocorreu com Michael Douglas, cuja esposa insistia para que ele fosse ao hospital, e ele era quem relutava:

"'Estou respirando, é só fazer um esforço que eu vou continuar respirando'. No segundo dia, deu mais uma piorada e a Andreza [esposa] falou assim: 'Michael, vamos para o hospital'. Aí eu falei: 'Não, não vou, não vou. Eu consigo, vai melhorar, só fazer mais suco de laranja com inhame' [...] Eu fiquei muito assustado [...] tentando relutar para realmente eu não ir ao hospital. Tentamos de todas as formas tentar curar em casa e aconteceu que a minha situação piorou, e piorou de tal forma que eu acordei certo dia e não conseguia respirar mesmo. Aí foi quando a minha esposa correu comigo, a gente pegou o carro. Ela me botou dentro do carro e veio pra cá [...]. Chegando aqui e aquela correria toda, não estava conseguindo respirar, a situação era muito complicada, muito delicada".

 

Mesmo com a resistência em ir ao hospital, nenhum dos participantes se arrepende da escolha de ter procurado uma unidade de saúde. Pelo contrário, lembram-se com orgulho, como uma decisão de coragem. Como Jorge Luís nos conta: "se eu não tivesse ido nesse dia, eu teria morrido em casa". Juliana enfrentou esse momento sozinha, e impediu seu esposo de ir ao hospital para protegê-lo da infecção: "Eu tremia tanto, que eu acordei o meu marido na cama de tanto que eu tremia. Ele falou: 'cara, a gente tem que ir no hospital'. Eu falei: 'você não vai, eu vou. Você não vai'."

Em certos momentos, no entanto, a procura por uma unidade que admitisse novos pacientes com COVID-19 foi um desafio, pelo fato de muitos hospitais estarem com seus leitos ocupados. Quando os participantes adoeceram durante as duas principais ondas da pandemia, foi frequente referirem dificuldades no processo de internação. Transferência entre hospitais, permanecimento em salas improvisadas, falta de recursos ou mesmo internação negada apesar da presença de sintomas graves. Em nossas entrevistas, fica evidente que essas dificuldades foram maiores para os pacientes que utilizaram o sistema público de saúde, como Vera Lúcia nos narra:

"Mas eu comecei a tossir muito forte, entendeu? Mais a tosse. Eu ficava lá encostada num canto, tossindo, tossindo, e os filhos queriam me levar para o hospital. E eu não queria ir, "não, não vamos". E eu fiquei tossindo, tossindo. Aí [um filho] ligou para o outro, ele veio me buscar e me carregaram para o UPA. Chegou lá no UPA, o médico falou que devia estar com COVID, mas não tinha como ver porque eu tinha que bater uma radiografia. Só que estava quebrado a radiografia do UPA. Como eu estava… 'ah, não vou poder atender ela, ela toma um xarope". 

 

No caso de Mábia, enfermeira, ela reconhece, na própria busca por atendimento, certa procrastinação por ser uma profissional de saúde. “O que me levou a procurar mesmo uma unidade hospitalar, foi a questão da dispneia, eu estava muito desconfortável, não estava conseguindo dormir, e eu percebi naquele momento que eu precisava de um apoio, não sei os demais, mas pelo que eu escuto dos meus colegas, o profissional de saúde tem uma certa resistência de entender que ele está num processo de adoecimento, então, eu pensava 'Meu Deus, não! Não é possível que eu adoeci, comigo não'. Então, fiquei analisando, até o momento que eu disse 'Não posso mais esperar', e aí foi o momento que eu procurei uma ajuda profissional, de uma equipe multidisciplinar.”

Ao reconhecerem a gravidade dos próprios sintomas, a família pareceu ser a principal rede de apoio dos participantes. A esposa de Ademir, bastante cuidadosa, tomou conta dele desde o primeiro sintoma, e chegou a ligar para o suporte telefônico da prefeitura: "ela ligava para o número da prefeitura, que dava assistência, e mandava tomar dipirona, e se tivesse falta de ar procurar a emergência. A gente seguiu isso."Nelson, quando presumiu ter pego a COVID-19, falou para sua esposa se afastar dele, para protegê-la da infecção. Com o uso da máscara protetora, ela o levou para o hospital: "Mandei ela se afastar, e [falei]: 'eu estou sem ar, estou sem ar, se afasta, se afasta, eu acho que eu peguei, eu peguei, se afasta!' Afastaram, foi na porta, eu pedi a chave do carro, ela foi, correu, pegou a máscara [...]. E eu: 'no Fundão, me leva para o Fundão!'."

No caso de André Luís, no entanto, foi diferente. Ele adquiriu COVID ao mesmo tempo que a esposa e por ela ter apresentado um quadro leve da doença não achava que ele poderia estar piorando. Isso contribuiu para que ele só procurasse atendimento quando estava se sentindo muito mal. “Eu deitei de lado, deitei de bruço, o que você imaginar, não consegui dormir. E eu vinha pedindo a minha esposa pra gente ir no médico e ela tinha dito que não precisava e tal, que isso ia passar, que era Covid, mas era coisa fraca e tal… aí 4 horas da manhã, do dia 26, eu, já bem claro, eu aí falei com ela ‘oh se você não vai me levar, é um problema seu, mas eu tou indo pro hospital porque eu tou, eu não tou bem não, eu tou morrendo’.”

 

Camila conta que enfrentou a COVID-19 grave junto com seus pais, e admite em sua narrativa que pensou primeiro neles antes de preocupar-se com sua própria saúde. Em sua entrevista, ela também evidencia a dificuldade que encontrou no sistema público de saúde para encontrar vagas disponíveis para internação.

"No dia 6 a gente acordou muito mal. Ninguém mais conseguia levantar da cama, não conseguia fazer as coisas. Eu comecei a medir a oximetria, a minha deu 89% e as dos meus pais também estavam super baixas. Minha mãe estava com 91% e meu pai estava com 92%. Daí eu liguei para o meu irmão e falei: 'vamos levar eles para o hospital, você fica com eles e eu vou para outro hospital'. Porque eu não tinha, eu não tenho ainda convênio. [...] Deixei eles lá no hospital do convênio, falei 'tchau' e fui achando que eu ia passar, sei lá, mais uma noite no oxigênio e voltar para casa, para cuidar dos meus pais. Eu não me sentia mal, não tinha essa noção de que eu estava vivendo a gravidade da doença. [...] Deixei eles lá no hospital e eu comecei a percorrer os hospitais aqui da cidade e eu não encontrava nenhum que tivesse a porta aberta. Eu fui em vários [...] [e o médico me falou]: 'aqui na cidade você não vai achar nenhum, está tudo lotado. A gente não tem vaga, você precisa ir para São Paulo'. Aí eu falei: 'vou para o hospital da USP, que é onde eu tenho certeza que é porta aberta'".

 

Não faltam experiências marcantes na vivência dos participantes antes da internação, principalmente quando os sintomas de infecção grave despontam. Em várias delas, a solidariedade de familiares e amigos foi indispensável para o apoio dessas pessoas, que enfrentam com receio esse novo desafio. Em sua narrativa, Marcio relata a importância do ato de seu amigo Francis, que o buscou em uma cidade do interior do estado de Minas Gerais para levá-lo para atendimento no Rio de Janeiro. Com essas histórias, fica claro que a solidariedade e a empatia mostraram ser essenciais para o enfrentamento da pandemia, tanto no nível individual como no coletivo.

"[A médica, por telefone] falou: 'onde você tá? [...] Se eu fosse você, voltaria para o Rio de Janeiro, porque pode ser que você precise'. E daí isso me deixou mais preocupado, eu não sei se vou conseguir, do jeito que eu estava, conseguir dirigir de lá para o Rio - é em torno de 5 horas. [...] Falei com meu irmão, e meu irmão falou: 'cara, eu busco você'. Eu falei: 'não, quero não, não posso te encontrar porque eu posso passar isso para você, [...] deixa comigo que eu resolvo'. Nesse dia eu comecei realmente a passar mal mesmo [...]. Na quinta-feira, assim de noite, eu pedi arrego, eu realmente falei com meu irmão [...] 'vou encontrar com o Francis, vou com o Francis porque o Francis já pegou COVID-19. Então ele vai dirigindo para você, vai ser menos mal'. [...] De quinta pra sexta eu cheguei ao meu limite, eu estava péssimo. Eu peguei minha mala, e para levar para o carro foi uma tortura, porque eu ficava muito cansado, cada movimento que eu fazia de carregar uma coisa eu sentia muito cansaço [...]. Eu peguei o carro, encontrei com ele em Juiz de Fora. Meu amigo entrou no carro, eu fiquei no banco de trás, ele veio com a máscara N95 e de lá a gente foi direto para o hospital."