Nos momentos de lucidez, muitos dos entrevistados tentaram negociar decisões em seu tratamento com a equipe de saúde. Estabelecendo limites, negando procedimentos ou prescrições, implorando por alternativas: todas são formas que os participantes encontraram de expressar o que queriam ou não em seu próprio tratamento. Diante de uma doença nova, ainda não existiam protocolos específicos de tratamento, e diferentes abordagens terapêuticas difundiam-se. Nos primeiros meses da pandemia, mesmo especialistas discordavam sobre as melhores estratégias de tratamento para a COVID-19. Em meio à incerteza do melhor tratamento, muitos entrevistados pleitearam uma participação ativa nas condutas da equipe.
A negociação das decisões no tratamento inicia-se no momento da internação. Maria Cláudia em um primeiro momento foi contrária à decisão do médico de interná-la. Ela conta que sua família estava também adoecida pela COVID-19, e preocupava-se em especial com seu filho Theo.
"Aí, o médico queria que eu ficasse internada, e aí eu não quis. Eu não aceitei, porque eu tenho um filho, e ele também estava com covid, meu marido também. E aí, eu não queria deixar assim, minha maior preocupação era o Theo, e eu não queria deixar. E aí, eu falei para ele para eu ir pra casa que eu voltava de oito em oito horas para tomar a medicação venosa."
Em algumas narrativas, fica evidente o desejo dos participantes em estar a par das decisões terapêuticas. Maria Cláudia, fazia questão de estar ciente das condutas da equipe e frequentemente as questionava: "eu quero ver tudo, eu quero saber". Por esse motivo, ela narra que a equipe a considerava "insuportável", optando por prescrever uma medicação sedativa para acalmá-la. Ao subitamente se sentir sonolenta, ela descobriu a decisão da equipe e exigiu que reduzissem a frequência do sedativo da prescrição:
"Eu fui insuportável, eles falavam mesmo que eu era insuportável porque eles me botaram pra dormir. Teve um dia que eu dormi o dia todo [...] e eu falei: "o que está acontecendo [...] eu estou piorando? Porque eu só estou dormindo." Eu não comi nesse dia, eu não fiz nada, eu não tinha forças para nada. Aí uma enfermeira que era bem legal, chegou para mim e falou: "a gente botou um calmantezinho pra você ficar tranquila, pra você não sentir os dias passarem." E eu falei: "Ah não, pode parando, pode parar, eu quero ver tudo, eu quero saber." [...] Eles me davam duas vezes no dia, e eu pedi [para dar a medicação] só para dormir. Aí de noite, assim umas sete horas, eles me davam."
O médico Eduardo, também internado em um hospital privado, foi um paciente que desejava não só estar ciente das decisões da equipe, mas também acompanhava seus sinais vitais e parâmetros respiratórios. Ele também perguntava frequentemente o resultado de seus exames. Ele considera a experiência de ser um médico enfrentando a COVID-19 desafiadora, porque ele entendia aspectos chave sobre a doença e sua gravidade, além de ter um ímpeto natural em participar de seu próprio cuidado. Em sua narrativa, ele nos narra uma transformação, desde o momento em que estava agitado e ativamente envolvido nas decisões terapêuticas, até o momento em que confiou integralmente na equipe e "deixou ser cuidado" por ela:
"E aí eu comecei a ficar muito agitado, a todo momento tentando… vem aquela experiência como médico, é muito complicado porque você sabe tudo da doença. Eu queria saber o resultado da gasometria. Eu queria saber como é que estava minha saturação. Eu já estava quase com torcicolo, porque eu não conseguia levantar do leito, mas eu queria ficar olhando a saturação na tela. Quando colhiam a gasometria, [...] eu falava: “Qual foi o resultado?” Eu queria saber o resultado. [...] Aí a médica que estava me acompanhando, a Priscila, falou assim: [...] "Eu queria que você confiasse em mim, porque o que eu tenho percebido é que a ansiedade atrapalha demais a evolução dos pacientes com o COVID. [...] E eu quero fazer um pacto com você: vamos fazer assim: esquece que você é médico, abstrai Eduardo, deixa comigo. Eu te passo as informações, mas você não precisa ficar acompanhando." [...] Foi naquele momento que eu percebi que eu já não estava aguentando mais. [...] Foi quando eu realmente me entreguei, mas não de entregar na luta e de desistir, não! Foi quando eu me entreguei no sentido de falar assim: “Pode cuidar de mim”.
Os entrevistados também negociavam com a equipe a realização de certos procedimentos. A gasometria arterial é um exame em que se coleta o sangue de uma artéria, comumente realizada no pulso (artéria radial) ou na região da virilha (artéria femoral). Por fornecer informações valiosas acerca da oxigenação, a gasometria é essencial para o acompanhamento de um paciente com COVID-19 grave. No entanto, por ser um procedimento invasivo feito sem anestesia, o exame é doloroso e pouco tolerado por muitas pessoas. Durante a internação, ele é realizado diversas vezes, como Eduardo nos conta: "é um procedimento extremamente doloroso, sofrível. Eu saí [do hospital] todo furado, todo cheio de hematomas". Em sua narrativa, Maristela questionava a frequência de coletas de gasometria, chegando mesmo a negar a realização do exame:
"Quando eu consegui, [quando eu tive] fôlego pra falar, [...] eu questionava, perguntava “porque que vai fazer isso?” Tanto é que: “gente, não dá pra fazer uma, duas gasometria no dia, tem que fazer uma quase de uma em uma hora?” “Não, é porque a senhora está com a oxigenação baixa, tem que ver o oxigênio e tal.” Eu sabia que tinha que ver, mas eu questionava por causa da dor que eu sentia. [...] [Teve uma] hora da gasometria que eu não quis fazer."
Kátia nos conta que a sensação de coletar a gasometria pela artéria radial é "como se estivessem arrancando seu coração pela mão". Como Maristela, ela também chegou a negar a realização do procedimento em alguns momentos, apesar de ter consciência da necessidade de realizá-lo regularmente. Após manifestar à equipe seu incômodo com o exame e negar a realização de novas gasometrias, os profissionais procederam para a inserção de um cateter na artéria radial para facilitar a coleta frequente do sangue:
"É como se estivessem arrancando seu coração pela mão. É muito ruim. Teve uma médica [...] ela veio [para colher a gasometria] e eu: "não, você não vai pegar não". "Mas eu preciso!" "Não, você não vai pegar, isso dói demais. Não vou deixar pegar". Eu criei um problema com ela no CTI. [...] Porque doía, doía muito, parecia que estava arrancando. Aí resolveram realmente abrir o meu pulso, ficou mais fácil, anestesiaram, fizeram uma mini cirurgia. [...] Eles tiveram que fazer, porque eu falei: "não, da minha mão não vai pegar mais não".
A intubação foi outro procedimento que muitos dos entrevistados negociaram com a equipe. Conhecida na medicina como intubação endotraqueal, ela é classificada como um procedimento de "suporte avançado de vida", indicada no contexto de COVID-19 grave com insuficiência respiratória. Durante a intubação, o(a) médico(a) introduz um tubo na traqueia do paciente e depois o conecta a um circuito de ventilação mecânica, que substitui a respiração normal. A intubação sempre é feita em contexto de anestesia geral, por isso envolve inevitavelmente a perda da consciência. O receio em realizar a intubação deve-se ao fato de ser um procedimento invasivo com possíveis complicações, além do imaginário que associa a intubação à morte.
O entrevistado Reneé compartilhava do receio em ser intubado, e constantemente pedia à equipe para não ser submetido ao procedimento. Ele tentava se manter lúcido, pois pensava que se dormisse não acordaria mais. Nos momentos em que percebia que a equipe se movimentava para proceder à intubação, Renée pedia para que esperassem um pouco:
"Mesmo com a medicação, eu sentia que eu ia cair… mas tentava ficar firme, porque na minha cabeça eu ia dormir [e ser] intubado. Então eu lutei contra isso dentro de mim mesmo, e pedia a cada momento. Eu sei que eles viam que a saturação ia caindo mais, porque eles chegavam perto de mim como quem eles queriam pegar, injetar alguma coisa, ou mover aquele aquele equipamento de tubo para entubar. Então eu só fazia sinal que não era o momento. [...] Eu pedia para a equipe esperar, e dava um tempo, pedia por favor. Esperar só mais um pouquinho. Então eu sabia até que limite eu estava tendo, eu tentava suportar para não ser intubado."
Michael Douglas também tinha grande receio na intubação, e gostaria de ter tido a oportunidade de pedir para a equipe não intubá-lo. No entanto, devido a seu quadro clínico grave, confiou na equipe de que a intubação seria o melhor naquele momento: "eu queria ter falado [para não ser intubado]. Eu queria ter esse poder, mas como eu vi que a minha situação realmente estava muito grave, eu falei: "Cara, eu vou confiar. Se não for isso, eu sei que eu vou morrer de qualquer forma". Maristela também não queria ser entubada, e pediu explicitamente à equipe médica para continuar na ventilação invasiva: "graças a Deus [...] deixaram, e eu consegui superar a questão da oxigenação sem precisar de tubo"
Assim como Maristela, Maria Cláudia negociou com a equipe alternativas para não ser intubada. Ela nos conta que ao dar entrada no hospital, a médica envolvida em seus cuidados disse que ela precisaria ser submetida imediatamente à intubação. Entretanto, ela implorou por outras possibilidades de tratamento a um fisioterapeuta, e conseguiu enfrentar a COVID-19 grave sem precisar de ventilação invasiva. Macau considera que a conversa com esse fisioterapeuta "a salvou", sendo decisiva para o sucesso de seu tratamento:
"A médica entrou, olhou para mim e falou assim: “Vamos intubar essa menina. Vamos fazer os exames e intubar ela hoje, de hoje não passa”. A minha saturação estava muito baixa, eu não lembro direito, mas estava a menos de 80, eu acho. Eu [estava] desesperada, "não me intuba, não me intuba, eu não quero ser intubada". Eu chorava, pedia pelo amor de Deus. Chegou um fisioterapeuta para olhar minha respiração [...] eu quase rasguei a roupa dele pedindo pelo amor de Deus para ele me salvar [...] Eu não fui intubada, mas se eu não fizesse o escândalo que eu fiz, eu acho que eu ia ser intubada. [...] Eu tinha certeza que eu ia morrer porque na época estava todo mundo dizendo que: “ah, intubou morreu, intubou não volta." [...] Ele me botou de bruços, pediu pra botar fralda em mim. [...] Ele botou o celular dele para despertar de duas em duas horas. Ele ia lá me mudava de posição, a minha cabeça, o meu braço."
Gilson, também compartilha o receio de ser entubado, mas ele sabia que só iria ser entubado se não se adaptasse a VNI, então ele ficava o máximo possível para não ser entubado, sentia que só dessa forma sobreviveria ao vírus:
“É um movimento que tem que ser bem cadenciado, não é toda pessoa que se adapta a VNI. Quando você não se adapta a VNI você tem que ir no tubo, então eu não fui pro tubo, na verdade porque eu me adaptei a VNI, porque eu mentalizei que eu iria sair dali vivo e não iria pro tubo. Minha maior briga, porque eu ouvia os relatos, que imediatamente quando você é entubado, você aumenta 10% a chance de morrer, diziam os médicos lá. Eu digo, eu já estou aqui, eu não quero aumentar nem um centavo, nem um percentual as minhas chances de morrer, então eu vou pra luta eu vou lutar aqui fazendo VNI, e os, os, fisioterapeutas que acompanhavam lá é eeerrr, eles ficavam monitorando as máquinas.” Ainda complementa:
“Facilmente, porque eu já era acostumado a fazer mesmo quando ele não… mesmo quando eles não prescreveram que eu me lembrei das minhas aulas de canto então quando eu não estava na veinha eu estava fazendo respiração diafragmática do mesmo jeito… Isso eu tenho uma impressão né? Eu não perguntei a um dos médicos. Mas eu tenho uma impressão que me ajudou muito também a não ir pro tubo. Porque eu só aproveitava o meu tempo pra exercitar. Respiração, respiração, respiração, respiração o tempo inteiro. Então eu saía da VNI, dava uma descansada e ia pro pra diafragmática, ia deitado lá, respiração diafragmática. Tanto é que o meu desempenho e dos outros e internados, a maioria das vezes para melhorar o desempenho era pronado, né? Pronado. E está de bruços a pronagem comigo não funciona muito legal não.”
Um outro aspecto importante acerca da negociação de decisões no tratamento é sobre a utilização de medicações sem eficácia comprovada. Juliana nos conta que a equipe de saúde prescreveu ivermectina durante o período em que esteve internada, mas ela a negou por não acreditar que seu uso poderia ser benéfico no tratamento da COVID-19. Inclusive, teve de assinar um termo dizendo não aceitar o medicamento prescrito pela equipe médica. Juliana diz que o uso de medicações sem comprovação é completamente diferente do que pensa "como pessoa, como cidadã e como paciente".
"Eu sei que foi ofertado a ivermectina, e eu recusei porque eu não acredito que funcione. Então eu não quis tomar, até que um dos médicos da equipe veio conversar comigo, eu falei: “eu não acredito e eu não vou tomar”. [...] A enfermeira da equipe veio conversar comigo falou: “olha, se você não concordar, realmente você não precisa tomar, mas você vai ter que justificar isso, vai ter que assinar um termo dizendo que você não quer”, [...] porque foi o remédio prescrito pela equipe, eu falei: “tudo bem, eu assino”. [...] Eu acho que a pessoa tem que pensar com a ciência e não com a política, não com seus ideais. [...] Era completamente diferente do que eu penso como pessoa, como cidadã e como paciente."
Rosana nos conta que antes de ser internada em abril de 2020, recusou o medicamento ivermectina, durante a consulta médica:
“Mas ele falou que esse remédio, eles usam pra... pra covid. O médico, do Hospital da Bahia, falou que esse remédio eles usam pra... pra ajudar na covid que ajuda, mas eu não uso porque eu não acredito, recusei lá com ele mesmo, falei: ‘ah, não tomo. Não prescreva que eu não tomo’, ele: ‘ah, mas…’ eu digo: ‘não, moço, eu não, não, não’. Primeiro, ele... ele falava assim... sabe? Muito friamente. E era, né? Eu tava infectada e aí falei do meu problema, tanto que eu não tava sentindo nada a não ser uma dor de ouvido e uma dor de garganta pra... como eu... pra não ir trabalhar assim, espirrando muito, corizando, pra não ir trabalhar assim, eu tive que fazer um teste pra, né? E aí eu fiz o teste, né, fiz particular até deu positivo, aí eu fui lá falar pra ele do meu problema da minha lesão que eu tenho levemente no coração e... fiquei preocupada e aí ele passou, aí eu falei da dor de garganta, dor de ouvido, ele passou um antibiótico e passou o Ivermectina e eu falei que não tomava, não, não usava que ele não…”
Paula nos narra uma experiência semelhante, quando a equipe pediu para que ela assinasse um termo de consentimento para uso da hidroxicloroquina. Entretanto, mesmo não acreditando na eficácia dessa medicação, decidiu tomá-la:
"Eles pediram para eu assinar um termo de consentimento para o uso da hidroxicloroquina em comprimido. Eu era contra, mas quando eu vivi aquela situação, eu falei "eu vou fazer qualquer coisa, já que estou aqui, eu vou para o tudo ou nada". E aí eu tomei por três, cinco dias, [...] porque depois eu fiquei entubada. [...] Eles vinham com um potinho da hidroxicloroquina, mas eu piorei, não melhorei em nada."