3.3.2 Buscando a família e amigos com o próprio celular

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O isolamento social por si só já é algo difícil mesmo quando se tem meios de comunicação disponíveis, como o próprio celular. Entretanto, quando não se tem acesso, ou ele é limitado, torna-se ainda mais difícil. Os participantes se viram em meio a uma pandemia, a qual se tem um vírus contagioso que pode se alastrar rapidamente pelo ar. Com isso, a internação tinha que ser restrita, sem objetos que pudessem carregar o vírus no ambiente. Esse foi um dos motivos que levou os serviços de saúde a manterem seus pacientes sem o celular, por exemplo. 

Essas experiências quanto ao acesso aos seus aparelhos celulares para se comunicarem com familiares e amigos foram distintas entre os entrevistados. Para aqueles que tiveram acesso, como Concelita, não foi tão positivo, como era de esperar. A excepcionalidade que foi concedida a ela não durou muito, pois os próprios profissionais orientaram a não utilizar o aparelho celular, como ela conta: “É horrível, porque você tem vontade de falar com as pessoas. Não pode usar um celular porque não tem como botar para carregar. Eu estava com o carregador, estava com o celular, mas não podia botar, porque até os enfermeiros me orientaram para não botar devido a contaminação que o celular tinha que ficar dentro de um saco plástico, tinha que amarrar o carregador também, e eu fiz tudo isso e guardei debaixo do colchão.” Mas, quando ela foi para a enfermaria, conseguiu recarregar o celular e disse que ligou para todos, familiares e amigos.

 

Maria Claudia, também teve uma exceção concedida a ela para permanecer com seu celular e nos conta que o médico orientou ela a não postar fotos, vídeos, a não falar por áudio. “Então, assim, o que eu fiquei mais tranquila foi que eu tive notícias do Theo, tudo pelo celular, entendeu? É isso.” Ela diz que estar com o celular a deixou menos ansiosa e distraía ela durante a internação.

André, relata a alegria dos familiares ao saber que ele já poderia se comunicar com eles, pois, ele já tinha saído da UTI, e estava na enfermaria, ele nos conta,  o inusitado, é que ele tinha esquecido dentro da bermuda:

“E aí lá, eu conversando com, assim que eu cheguei na enfermaria eu descobri que eu podia pegar o celular e meu celular tava dentro do meu, da minha bermuda que eu tinha chego lá, celular e carregador. Aí pronto, quando eu me instalei no quarto, que eu comi, aí eu pedi o celular, pedi, pedi, pedi, aí passei o número do leito e tal, não sei o que, aí conseguiram pegar minhas coisas porque tava tudo ensacado, eles ensacam tudo, logo quando eu cheguei que eu tirei a roupa, botei o celular pra carregar, deixei o celular carregando, aí eu cheguei e falei, que a gente tem uma brincadeira, aí eu peguei e mandei uma mensagem pra ela, botei não dorme não, gatinha? Aí, no WhatsApp. Aí a maior felicidade, aí ela “você tá aonde, você tá aonde?” Eu falei calma, eu desci pra enfermaria e aí a gente começou a conversar e tal.”

Alguns pacientes que tiveram acesso ao seu celular, sobretudo após o CTI, já na enfermaria, dizem que isto mudou a experiência de internação. Maristela contou que pediu à equipe para ficar com seu celular: “gente, por favor, eu vou  ficar  trancada  nesse  quartinho  aqui,  sem  me  comunicar  com ninguém, não entrava ninguém lá, aí tinha um banheiro assim do lado, eu ia ao banheiro e vinha pra cá, o tanto que eu andava era daqui pra ali, se eu fosse, ainda bem que o banheiro era assim no quarto, porque se não fosse, eu não conseguia ir por causa da falta de ar que eu tava.” 

Ela ainda compartilhou que ficar com seu aparelho foi um diferencial positivo para seu período de internação: “Fez  muita  diferença,  gente,  se  todo  paciente puder ficar com o celular, com esse meio de comunicação, isso ajuda muito o paciente. Se ele puder falar, se ele tiver como se comunicar, é uma, é uma maravilha, porque ajuda muito, você consegue ouvir a voz do seu familiar, você consegue ouvir as pessoas te mandando uma mensagem, conversando, te mandando uma música, um louvor, uma  coisa. Então aquilo vai te preenchendo, aquela solidão que o paciente fica ali, porque a pessoa fica muito abandonada. Quando eu fui pro quinto andar, eu fiquei sozinha em uma enfermaria, aí tinha uma senhorinha, uma senhora que foi enfermeira da guerra, ela estava no quarto do lado, aí dizia ‘no meu tempo não era assim, ninguém tratava o paciente assim, me socorre, me socorre’, e todo mundo achando que ela ia falecer, acabou que ela foi embora de alta antes de mim, antes de mim, uma gracinha ela, noventa e poucos anos.” 

 

Vera Lúcia, nos contou que quando desceu do CTI para a enfermaria também conseguiu acesso a sua família, a princípio pela tablet da equipe, e depois ela teve acesso ao seu próprio celular, e nos conta com alegria: “Aí mandaram meu celular, entendeu? Deixaram trazer meu celular. Pelo menos no celular a gente já conversava, já liguei pra vizinha “estou bem”.  Aí já falava com todo mundo.”

E além do contato com os familiares, os pacientes tinham como acessar redes sociais, ver vídeos que os distraíam e os ajudavam a passar pelo momento difícil da internação, Carlos Eduardo nos contou que a equipe multiprofissional não permitia a permanência do celular, mas que abriram uma exceção para ele: “Porque no segundo dia da DIP elas levaram, porque eu estava sem carregador, compraram o carregador. Aí botaram lá pra mim, aí aquilo ali foi muito bom. Então, eu passei a ver o vídeo no celular. Distraí, né?” 

Eduardo também pediu à equipe multiprofissional para ficar com seu celular: “por favor, deixa eu ficar pelo menos com meu celular. Eu tenho aquele auto higienizador de produto eletrônico, num tubinho, eu vou higienizar, deixa eu ficar com o meu celular para poder me comunicar com a minha mulher, com o carregador e tudo.” Depois de avaliarem seu quadro clínico e ver que ele não estava tão grave, a equipe abriu uma exceção e permitiu que ele ficasse com o celular.

 

Mesmo com acesso ao celular alguns pacientes encontraram dificuldades para manter o contato com a família, uma vez que se encontravam debilitados pela COVID-19. Ana Cristina, que ficou internada no sistema privado, contou que não manteve contato com os familiares, mas percebia o apoio de amigos e familiares pelas redes sociais: “eu não conseguia nem escrever, você imagina, a primeira semana, você cheia de acesso, sem força, então eu não conseguia falar com ninguém também, falar era muito esforço, então eu falava com a minha filha e com a minha irmã que mora em Salvador, e elas falavam com os outros, uma ou outra pessoa, as pessoas que escreviam, eu mandava uma florzinha.” Porém, ela nos contou que depois, quando já tinha recuperado parte das forças, ainda durante a internação, conseguia se comunicar melhor com amigos e familiares e ela disse que achava “fantástico”. 

 

Marcelo também contou que estava na UTI, entubado, e conseguiu ficar com o celular, mas que não se recorda: “meu irmão até pouco tempo atrás falou que eu cheguei a conversar com ele quando eu estava na UTI, que deixaram eu ficar com o celular, e eu falei com ele. […] eu não me lembro de nada”. Além de falar com o irmão, também houve  procedimentos, como colher a gasometria, e a entubação, mas ele não se recorda desses momentos. Dada a sua condição, medicação e até mesmo sedativos, é compreensível que esses momentos não estejam tão vívidos em sua memória. 

Para Janilda a questão foi mais pessoal, ela nos contou que não queria falar com ninguém: “No começo, eu sei que eu fiquei sem o celular, no CTI eu não tive celular, também não tinha condições. Nos primeiros… na primeira semana na enfermaria eu não quis. Eu não queria ver o mundo externo. Você saiu de um lugar, você não anda, você está usando fralda, você não consegue pintar, não consegue escrever…” 

Rosana também compartilha uma questão semelhante, relata que sentiu incômodo: “Incomodava muito, porque a gente sente muita dor de cabeça, né, e toda hora uma pessoa liga e você tem dificuldade, porque como eu tava cheia de aparelhos, toda monitorada, né, então eu tinha muita dificuldade de pegar no celular, de digitar, aí eu mandava mais áudio, as pessoas faziam vídeo-chamada, meus amigos, todo mundo queria ligar, o pessoal lá do meu interior que soube que eu tive, que eu passei todo mundo já queria saber se era verdade, um monte de abelhudos também, era muita curiosidade... era amigos, todo mundo: ‘ah, tô orando por você’ aí ficava aquela coisa, aí... eu não sei se piorava a situação, porque às vezes piora, viu? Você fica com tanto medo, sabe? Tudo bem, você pode ser querido e tal, mas às vezes você fica com tanto medo e as pessoas ao invés de contar uma história as pessoas querem saber, né, aí fica... lhe assusta um pouco.”

 

Renné compartilhou que ficou 15 dias internado até conseguir contato com a família, e diz que quando teve esse contato melhorou: “A equipe falou que eu poderia ter acesso ao celular. Aí o serviço social e a fisioterapia fez o contato com elas e elas trouxeram o celular, e eu comecei a conseguir conversar com elas. Aí melhorou…"

As comorbidades dos pacientes, e também acometimentos da própria COVID-19 dificultaram a comunicação dos participantes com suas famílias.  Ademir contou que por estar acima do peso não conseguia achar uma posição no leito que o favorecesse e, por isso, teve dificuldades de conseguir segurar seu celular. 

Márcia Cristina compartilhou que, pelo risco de ter feridas por pressão, precisava mudar de posição no leito, para a posição conhecida como “pronação” e, nesses momentos, não conseguia falar com a família: “Eu falava para eles: vou ficar um tempo sem mexer no telefone, porque eu vou pronar, eu tenho que pronar, porque eu estou muito cansada.” Mas, ela teve acesso ao seu celular e diz que foi bom manter esse contato.

Margareth disse que mesmo com seu celular em mãos, era difícil obter informações do marido que estava internado no mesmo hospital. Ela não conseguia responder mensagens de texto, pois ficou inchada durante a internação e, por isso, não conseguia abrir os olhos por completo: “eu percebia que eu não conseguia ler a tela do celular e eu não entendia o porquê minha visão estava tão turva. Até que indo ao banheiro, eu acho que foi no sexto dia já internada, eu consegui me olhar no espelho, eu estava muito inchada, muito, meus olhos estavam muito inchados, então ali eu entendi o porquê eu não conseguia ler, não conseguia responder as mensagem da minha filha, tinha que ser só por áudios.”

 

Paula Inês trouxe uma reflexão sobre seu próprio celular, seu valor financeiro e seu significado naquele momento de gravidade: “Eu ainda com o tubo, eu lembro que eles deixaram meu celular em cima da mesinha que dava para ver. Eu pensava no valor que tinha pago nele e eu pensava assim, queria tanto, que aquele valor virasse oxigênio e não vai virar. Não vira. E vai ficar aí, eu tô indo embora, vai ficar aí, todo aquele valor financeiro e de status que aquilo proporciona, naquele momento, não tinha valor nenhum.”

Miguel também nos contou que foi difícil manter o contato com a família, mesmo com o celular em sua posse. Quando ele voltou da UTI, não havia sinal e, por isso, acabava mexendo e ligando pouco. Porém, quando ele desceu para o quarto, disse que isso mudou: “Já no quarto, o sinal entrou, e aí, eu pedi ao médico para eu ver minha esposa, ver meu filho, falar com eles, isso com ajuda.”

Wellington contou que uma parte positiva de estar com seu celular foi poder reconectar laços, fortalecer seu relacionamento com os familiares e amigos, e nos disse que isso foi importante naquele momento de internação: “Aconteceu que a minha esposa não me acompanhou muito nesse momento porque ela tava muito ruim nesse primeiro momento, naturalmente ela falava com a minha mãe, com o meu irmão, pegava as informações, mas ela tava realmente de cama quando ela me passou. E a partir do momento em que eu saí do tubo, que eu estava já me recuperando, eu falava com ela e com a família por whatsapp, pelo hospital, pelo telefone. O médico pediu para eu não falar muito no telefone, mas falava um pouco, isso eu senti assim que esse é um aspecto positivo também, porque a gente percebe que pessoas e familiares assim, você se sente amado, reforça isso e também, até amigos, amigos distantes que a gente tinha um convívio menor e você sente as pessoas preocupadas, sempre desejando o melhor, carinho, você se sente muito amado, muito mais do que imaginava. Assim, eu senti que eu tenho uma importância na vida das pessoas maior que eu achava que eu tinha.”

 

Para Marcial foi importante manter sua família atualizada, ele disse que conversava com a esposa, amigos próximos, e isso fazia ele se sentir apoiado. Além disso, ele mantinha a família a par do seu estado de saúde: “então eu chegava de manhã e mandava no zap, 'gente, não estou na UTI, estou no quarto, beleza?” E aí, quando a médica falou aquele bendito “ainda”, a médica falou “ainda não vou para UTI”, então foi uma coisa assim entre altos e baixos, complicado, e a família deu super apoio, embora eu esteja isolado no hospital porque não podia ter visita, não podia ter nada.”

E nesse contexto de internação, os participantes que puderam permanecer com seus celulares puderam mostrar suas vivências para os familiares, que não eram tão positivas pelo momento que estava atravessando, pelo fato de estarem em um ambiente de UTI com máquinas hospitalares, como nos conta Maristela: "Aquelas máquinas tudo apitando, e tudo. Aí quando  eu  falava  com alguém, eu gravava algum áudio pra alguém, aí as máquinas apitando “ai, como  é  que  você  aguenta  vinte  e  quatro  horas  no  dia”,  eu falei “gente, tem horas que eu nem escuto as máquinas, já acostumei tanto, que tem  horas que eu já não ouço mais as máquinas, os monitores, eu não ouço mais não, fico tranquila”.

 

Ademir nos contou que após ser internado, ele conseguiu entrar com seu aparelho telefônico e manteve o contato com a família por alguns dias, até que seu quadro se agravou e precisou ser entubado, passando por um período em ventilação mecânica e coma. Depois de acordar, diz que gostaria de ver sua esposa, porém, o celular se perdeu durante seu período desacordado e ele não conseguiu recuperá-lo: "Nessa época eu lembro, quando eu acordei, logo depois a menina que me cuidava, a enfermeira… Aí falei “pô queria tanto falar com minha esposa, não sei o que”. Meu celular tinha se perdido.” Essa é uma das preocupações das equipes, que por vezes leva à proibição dos celulares nas UTIs, que são recolhidos juntamente com seus outros pertences pessoais. A COVID-19 ainda acrescentou a preocupação com a contaminação dos objetos materiais.

Como nos contou Kátia Verônica que chegou a ser internada na UTI: 

Não, não, não, não fica com nada, você não fica com nada, Eles não deixam você ficar com nada. Mesmo porque contamina. Qualquer coisa que levar, você ia contaminar, você  ia ter que jogar fora. Porque quando eu saí do CTI, eu joguei tudo fora, a escova de  dente que eu tinha levado, a escova de pentear o cabelo, tudo você tinha que jogar fora. Porque está tudo contaminado, não tem nem como você levar pra casa isso. Aí era de noite, a noite era assim… você dorme o dia todo, porque a medicação vai te dando  aquele sono. Você dorme um pouco, acorda. Dorme um pouco, acorda. Praticamente você dorme o dia todo. Então quando é de noite, você fica um pouco mais acordado. O que me divertia era o pessoal da enfermagem, você via eles conversando, discutindo, brigando. Eu ficava olhando aquilo, sabe? Rindo. "É, a senhora tá prestando atenção aí,  né?" E eu falei: "olha, vocês são minha televisão, eu não tenho televisão, não tenho  rádio, não tenho nada. Eu tenho que estar prestando atenção em vocês brigando aí". Era como você passava o tempo, e ficava rezando pra amanhecer. Porque era outro dia, pra você estar melhor e você ir embora. Era só o que eu passava.”