3.3.3 Buscando a família através de meios da equipe

Temas

O isolamento social causado pelo adoecimento por COVID-19 foi difícil para os participantes. Por conta de protocolos, eles se viram privados de se comunicarem com seus familiares e amigos para evitar contaminação e até para receberem cuidados mais específicos, nos casos mais graves. Entretanto, com a solidariedade dos profissionais,  essa experiência foi menos ruim, pois muitos participantes tiveram acesso a comunicação com seus entes queridos com ajuda da equipe multiprofissional onde estavam internados. 

A equipe multiprofissional obtinha o contato dos familiares e, com isso, colocava o paciente em contato com eles por meio de tablets e celulares da própria equipe, mas sem o paciente encostar nos aparelhos, para evitar contaminação, como compartilhou AlcioneNa verdade elas ficam em pé na beira do leito com tablet, mostrando tudo, a gente não toca, não se aproxima.” Viviane, que ficou internada no sistema público, disse: “Aí veio um enfermeiro e perguntou se eu queria falar com a minha família. Aí eu falei assim: eu quero! Porque eu achei que fosse uma despedida. Aí veio um enfermeiro com telefone, que eu também não podia ficar com o telefone porque eu tava muito debilitada, fez a ligação de vídeo, a chamada de vídeo, aí fez aquele compartilhamento de vídeo. Entre a minha irmã, minha mãe, os meus filhos… Aí eu fui, depois que eu vi a minha família, porque quando você não vê a sua família, você não tem apoio de ninguém, você acha que você tá sozinha. Dois dias depois, após eu falar com a minha família, eu recebi alta do CTI e fui pro leito. Então, o que eu estava precisando era de apoio da minha família, eu precisava deles e ver que eu tinha força pra lutar contra aquela doença, porque é uma doença que eu não desejo pra ninguém. Daí depois eu fui pro leito, fiquei dois dias no leito. Aí dali eu conseguia já falar com a minha família, por vídeo, por telefone.” 

 

Maria Verônica, que internou no sistema privado, também compartilhou sobre a importância de manter o contato com sua rede de apoio, inclusive com a equipe de saúde  que a acompanhava antes de sua internação: “Eu acho assim que você ter a presença de alguém que você gosta muito ao seu lado te ajuda muito nessa recuperação. O hospital fez coisas não só pela presença dele [o médico], quando eu saí do CTI COVID e fui para o CTI GERAL que ele pode me visitar, ele foi várias vezes me ver, isso me dava uma alegria muito grande. O hospital teve o procedimento, que embora muitas vezes eu não queria fazer, mas que hoje eu vejo a importância dele, a psicóloga do hospital vinha com um tablet até mim e falava: “fulano quer falar com você, vamos ligar para ele”, aí às vezes eu concordava e pedia e ela fazia a chamada de vídeo por WhatsApp e a pessoa conversava comigo, eu mais gesticulando do que falando. Então eu falei com vários amigos através da psicóloga, muitas conversas eu nem lembro direito, só sei que houve porque me contaram que falaram comigo, mesmo eu estando no CTI pelo tablet, mas eu lembro de muita gente que eu consegui falar, lembro principalmente do meu psiquiatra, que é uma pessoa muito importante, porque eu tinha passado fases muito ruins com ele. Então a presença dele no hospital pela chamada de vídeo me trouxe uma paz muito grande.”

 

Vera Lúcia contou que assim que saiu do CTI e desceu para a enfermaria a equipe multiprofissional fez o contato com a família por meio de um tablet da própria equipe: “Com o tablet, tem um aqui, aí botava meu filho, botava minha nora. Aí a gente já  conversava com uma pessoa. Eles tinham o  telefone de um, aí eles botavam. Eles já se comunicaram com ele, né, aí eles falavam.”

Concelita disse que quando internou não teve mais contato com a família, mas que havia um enfermeiro que sempre informava sua filha sobre seu estado de saúde e que, por isso, tem amizade até os dias atuais com ele. E vale ressaltar que na comunicação, sendo muitas famílias para passar informação, houve um momento em que passaram a informação incorreta de que Concelita havia falecido, e sua filha ficou desesperada. Foi nesse contexto que o enfermeiro conheceu a filha, foi no sistema do hospital e viu que a mãe dela estava viva e que foi uma confusão ao passar a informação. Concelita disse que desde então o enfermeiro é amigo da família: “E daí pra cá ele ficou sempre passando informação pra ela. Mas nisso já tinha ligado para a direção do hospital e já tinha virado céu e terra para saber como é que eu estava lá dentro.”

 

Nos casos em que o paciente se encontrava mais debilitado, por exemplo, na UTI, os profissionais buscavam manter os familiares informados. Fabrício compartilhou que os profissionais buscavam mostrar ele, mesmo estando desacordado, para mostrar o estado de saúde dele. Ele diz que a equipe não sabia se ele acordaria ou não do coma, mas que num sábado, que a equipe mostraria ele desacordado, como de costume, ele acordou do coma: “Só que para surpresa me chamaram e eu estava acordado.”

Com Henrique foi uma situação parecida, a equipe mostrava ele por vídeo chamada e, às vezes, ele estava acordado e conseguia conversar um pouco. Porém, ele estava no CTI em uma situação vulnerável, e na maior parte das vezes se encontrava desacordado: “Colocava junto a minha esposa, os meus pais e a minha irmã para poderem me observar ali no leito. E foi assim o tempo todo. Até que em alguns momentos eu estava acordado, para eles me virem e falarem comigo alguma coisa, em outros momentos eu estava dormindo. No início eu estava sempre dormindo, que a minha esposa falava.”

Ademir também compartilhou que uma estudante de medicina entrava em contato todos os dias com sua esposa para dar notícias sobre seu estado: “ela é a estudante de medicina que ficou incumbida de dar as notícias pra minha esposa, todo dia. Era mais ou menos 1h, 2h da tarde. Aí a minha esposa falava que nem almoçava, ficava esperando mesmo. Só que muitas das vezes era uma notícia ruim, porque meu rim quase parou, meu coração também, eu ficava tomando remédio. Vários momentos que ela lembra que a notícia não era muito boa.” Ele contou que quase sempre havia uma notícia ruim sobre seu estado de saúde, mas que mesmo assim a sua esposa ficava confortada de ter notícia: “Ela gostava, ela ficava ansiosa, ela deixava de almoçar esperando, só almoçava depois de ter notícia minha. E ela ficava rezando o tempo todo.”

Outros pacientes também compartilharam que a família ficou abalada a cada ligação do hospital, e que pensavam em coisas ruins que poderiam ter acontecido. Henrique, que ficou internado no sistema privado disse: “Então eu acho que teve a comunicação, mas, sinceramente, também não sei se é tão bom ser 100% e falar tudo o que está acontecendo, acho que só deixa a família mais preocupada em vez de passar um pouco de tranquilidade e eu acho que foi bom assim.” 

 

Carlos Eduardo conta que sua esposa não gostava de atender o telefone por achar que seriam notícias ruins. Mas um dia ela atendeu e, para sua surpresa, era uma chamada de vídeo para falar com o próprio Carlos, e não somente conversar com a equipe sobre informações dele. Ele diz que mesmo com esse sentimento de incerteza, foi bom ter essa comunicação com seus familiares: “Deu um levante mesmo, aí quando eu saí do CTI, ainda fizeram mais uma chamada. […] Mas isso foi uma coisa muito bacana, muito bacana, tá? E aquilo ali levantou mesmo. Eu fiquei bem pra cima com aquilo ali.”

Camila também teve contato com a família somente por meio da equipe e conta que durante a internação queria notícias da sua família: “Eram  coisas  que  elas  faziam  por  elas. Não tinha uma coisa combinada, que elas faziam meio escondidas para ninguém ficar sabendo. Depois que eu descobri que a minha internação não seria assim tão curta, eu só consegui me acalmar em relação a minha família, depois que uma delas ligou para o meu irmão e perguntou: "e aí, como eles estão? Como é que tá aí?". Mas até isso  acontecer eu estava super desesperada.”

 

José Luiz compartilhou que a equipe ligou por chamada de vídeo para a família e que para ele foi normal ligar para falar com os filhos, mas quando eles atenderam e estavam chorando, ele contou que se sentiu amado. Quando os netos falaram com ele, a emoção foi maior ainda: “A minha pequenininha, que hoje tá com seis anos, ela me chamava de “titicô”, aí meu Deus do céu, você se derrete, aí que eu chorei.”

Paula Inês contou que ficou muito debilitada e que em alguns momentos queria falar com a família, mas em outros momentos não queria ver ninguém e isso acendeu uma questão na equipe, pois acharam que ela estava se entregando à doença. Com isso, deixaram que o marido de Paula a visitasse: “Aí ela me contou isso depois, eu ainda internada, ela disse que chamou o médico e falou: “ela está se entregando, a gente precisa fazer alguma coisa”. E aí foi quando deixaram o meu marido me visitar, no dia que me extubaram, mas ele chegou antes de tirarem o tubo, então ele entrou, eu estava entubada. Ele chorava muito, eu chorava muito também. Eu escrevia no celular dele o que eu queria falar, e ali eu tive certeza que se deixaram ele entrar era porque eu vou morrer. Só que eles vinham, "hoje a gente vai te extubar, você vai ficar bem, eu pensava... Eu fazia assim para eles (gesto com a mão no pescoço). ...eu sei que vou morrer.”

 

Soraia, que ficou internada no sistema público, conta com emoção das cartas que chegavam no hospital dos familiares, pois, naquele momento ela estava sem nada para se comunicar com a família, e isso a angustiava naqueles dias difíceis:

“Os processos lá no Couto Maia, são as carta né que chegam, a coisa mais maravilhosa, ainda tenho elas guardadas aqui né, o pessoal mandava entrava em contato e eles depois iam me entregar essas cartinhas, minha nossa senhora isso é maravilhoso, eu só tive a oportunidade de fazer uma videochamada porque coincidentemente eu nem sabia na época, uma amiga minha, amiga mesmo que é da área de saúde ela tava trabalhando lá e foi um acaso a gente se encontrar e através dela de uma forma muito rápida e muito segura que eu pude fazer uma videochamada, mas eu tava lá sem celular sem nada, eu não fiquei lá com nada meu.”

Michael Douglas, assim que saiu da intubação teve a oportunidade de fazer uma videochamada para sua esposa com o tablet da equipe, ele diz que ainda estava sob o efeito da sedação, mas se emocionou e chorou ao falar com a esposa. Para além da comunicação virtual, Michael Douglas, que ficou internado no sistema público, compartilhou que ficou muito abalado, emocionalmente, e teve a oportunidade de ver sua esposa pessoalmente com o auxílio da equipe multiprofissional: “Eu falei com ele: "É o senhor que vai me ajudar a sair daqui?" Ele falou assim: "É. Eu vou te ajudar, mas antes eu quero que você fique calmo, fica tranquilo e vai dar tudo certo". Falei assim: "Olha, eu quero ir embora, quero ir embora, quero ir embora". Ele viu que eu estava numa situação muito desesperadora, muito perturbado. Foi e ligou para minha esposa, minha esposa Andreza. Falou assim: "Você vai, a sua esposa vai vir". E eu: "Vai?!", ele: "Vai". Mas só que eu não acreditei, porque como era um caso de COVID-19 achei que ela realmente não iria vir. Ligou para ela, para minha esposa e ela estava fazendo o cabelo (ela é cabeleireira), estava fazendo um cabelo, ela lavou o cabelo da cliente e veio para o hospital. Aí eu me lembro que… [se emociona, voz embargada] Foi uma das partes que mais me tocou… Porque quando vi a minha esposa…tudo aquilo que eu passei, não tem como você lembra, eu lembro que ela chegou aqui, me abraçou… [pede a entrevistadora]: Me dá um pouco de água? [relato emocionado] Ela… me abraçou e ficou… ela falou: "Meu filho, a doença… você sobreviveu, fica calmo, a gente vai embora", ela me abraçou, falou: "Caramba, você está tão sujinho. Seu cabelo tá tão grande"... eu estava de barba, não costumo usar barba não. Ela falou assim: "Olha, o seu ouvido está sujo". [bastante emocionado]: "É… é Andreza, eu sobrevivi. Achei que não ia viver, sabe?". Ela me abraçou, eu comecei a ficar mais calmo e aquela noite ela dormiu ali, num lugar tão apertado que ela, ela é pequenininha, e nem estava conseguindo dormir direito. Mas foi algo que me marcou muito.”

 

Renata, que internou no sistema público, comenta o alívio, e as forças que recebeu para enfrentar os dias dolorosos, não só por videoconferência, o acesso sendo facilitado pela equipe, mas de visitas indiretas que recebia, nos conta:

“Sim, a gente tinha a videoconferência. Quando a gente tava bem, que poderia falar e tudo, eu tive a videoconferência. Mas a minha sorte é que tinham pessoas que trabalhavam lá, que trabalhavam também comigo no outro hospital. Então, eu tive um apoio ainda maior. Quando as pessoas descobriram que eu era desse hospital, eu acho que ficou ainda mais validado o cuidado comigo. Médicos conhecidos, que me viram tão fragilizada, chorando porque eu não aguentava mais ser furada pra ver a gasometria, ver os seus exames. E ele pedir que não colhesse nesse dia. Foi, assim, um alívio ter aquelas pessoas. E vários contatos meu esposo tinha com as pessoas. A assistente social, a psicóloga. Ele teve todo o apoio. E, inclusive, a psicóloga é uma amiga minha, que foi do Hospital da Cidade. Quando ela soube de mim, foi me ver. Mesmo não podendo entrar, foi lá me ver. Teve pessoas amigas que mandaram pessoas que encontravam no ônibus, encontrava na frente do hospital e pedia: “olha, tem uma pessoa tal”... via com a farda do hospital e falava: “tem uma pessoa assim e assim”. E as pessoas chegavam no corredor: “Quem é Renata? Quem é Renata?” Quer dizer, isso tudo vai tranquilizando a gente, sabendo que tem pessoas fora que está na luta com você.”