5.1 Sobre o sistema de saúde publico e privado

Temas

Vários dos participantes internados no sistema privado de saúde espontaneamente fizeram referências ao sistema público de saúde sempre apontando as desigualdades sociais que existem entre nós. Embora tenhamos um SUS universal, os participantes enfatizaram o quanto as desigualdades sociais refletidas nos dois sistemas de saúde, também na pandemia, são mais determinantes do que a presença de um sistema único de saúde gratuito e universal.

Mas quantas pessoas morreram por não ter acesso a um tratamento digno?” Internada em abril de 2020, Maria Verônica, em seguida refletindo sobre a doença em si, destaca que “a covid não escolhe a pessoa, ela pega todo mundo”, e reconhece também que várias pessoas “tiveram acesso ao tratamento mais do que digno e, também, morreram”.

E eu tenho certeza que se eu tivesse ido para o hospital público eu não estaria aqui agora, eu tenho certeza, entendeu? Se eu não tivesse dinheiro para me tratar com médicos, ter um médico assistente para ir me ver, e poder estar nos melhores hospitais do Rio, eu acho que eu não estaria aqui, entendeu?” Ana Cristina internada em maio de 2020.

 

Nos períodos de grande incidência de casos, mesmo no sistema privado havia dificuldades de recursos. Como nos contou Paula, internada no sistema privado em junho de 2020, sua filha quando soube pelo pai que sua mãe estava no CTI e seria entubada, pensou: ‘Que bom que a minha mãe tem a chance de estar na UTI e que ela tem a chance de ter um respirador’, porque ela estava vendo nos jornais que muitas pessoas estavam morrendo por falta de atendimento. Ela olhou por essa ótica, ela vai ficar bem, porque ela está com acesso ao atendimento.”

 

Durante a pandemia a experiência de amigos, colegas queridos, mas com condições financeiras e acesso a cuidados em saúde distintos marcou afetivamente esta diferença na travessia da COVID-19.

“Eu estava internada e a gente recebeu a notícia de que um amigão nosso, o “22”, ele era um líder comunitário em Padre Miguel, ele era bastante conhecido, e ele faleceu no Adão Pereira Nunes, também por falta de oxigênio. Então, assim, ele não teve o tratamento adequado, ele não teve uma equipe para cuidar além do que há no hospital, ele não teve a mesma oportunidade que a gente, e foi muito triste perder o “22”. Juliana internada em março de 2021.

 

É muito ruim, para mim que tive num hospital particular, eu contratei uma equipe para cuidar de mim, uma equipe auxiliar, foi ruim, imagina quem está nessas UPAs da vida que não tem leito, que não tem nem tem oxigênio, pô. É uma coisa muito ruim gente, isso tem que ser visto. Luiz internado em março de 2021.

 

Um colega meu veio a falecer no hospital que estava internado, tinha um cilindro de oxigênio para dividir para três pessoas.” Luiz foi internado em março de 2021.

 

Apesar dessas diferenças, mesmo pessoas que ficaram internadas no sistema privado sofreram com repercussões financeiras de sua internação. No caso de Gilson, que se internou no sistema privado por meio de seu plano de saúde, houve preocupação com o reflexo do período em que ficou internado em UTI, considerando o valor que teria de coparticipação que teria de pagar ao plano. “E recentemente eu soube da notícia de que esses doze dias vão se transformar em doze meses de pagamento daquela contribuição,  porque o meu plano de saúde tem uma contribuição… Pelo que eu vou pagar [de coparticipação] eu estou calculando que foi em torno de duzentos e sessenta mil só de hospital, repercussões e a gente tem que entrar com a contribuição da nossa parte”  

 

Por vezes o contraste da experiência Covid no abismo social em nossa sociedade se colocou entre o paciente participante da pesquisa e o profissional de saúde que exercia seu cuidado.

“É ruim que você não cria vínculo, porque a cada 24 horas, mudam aquelas pessoas, que você não sabe quem. Você escuta cada coisa tipo, ‘eu estou aqui cuidando de você, Augusto, e meu marido está com covid em casa, porque não pode ser atendido no serviço público’. Isso reforça mais a minha vinda para cá [outro país]. Eu fiquei com nojo, nojo de Bolsonaro. Você começa a ver como a vida no Brasil é tratada. E olha que eu pagava um plano de 1000 e tal. É muito triste.” [...] É absurdo, um país com a riqueza do Brasil, matar tanta gente. [...] “o Brasil são vários Brasis em um só”. Augusto internado em maio de 2021.

 

Profissionais de saúde ao precisar ser internados por Covid escolheram o sistema privado.

“Não, não foi no hospital de onde eu trabalhava [sua internação por Covid]. Foi no meu município, em Diadema. Eu tinha até opção de ir para lá, mas como eu tinha um convênio, eu preferi ficar no do convênio. Porque, assim, no hospital de COVID, eu já imaginava a dificuldade de ter que fazer as necessidades numa comadre, é mais custoso estar ali, por mais que seja... Ficar isolada, mas eu fiquei num quarto isolada, num quarto menor. Glauciane internada em julho de 2020.

 

Já os pacientes que foram internados no sistema público demonstram uma relação diferente com o serviço público de saúde. Devido às dificuldades no gerenciamento de recursos na rede pública, Bárbara, faz uma reflexão sobre a disponibilidade e o uso de medicações no hospital público onde ficou internada. No caso dela, houve tentativas de desmame precoce de oxigênio que causavam desconforto, ela sentia que ainda não estava pronta para ficar sem utilizar o oxigênio e, assim, compara o que observava nas internações em redes particulares divulgadas pela mídia. “Eu observei que as pessoas no hospital particular ficavam muito tempo com isso, lá fora, qualquer besteira tava com oxigênio. E a gente aqui da classe C, quando vai para hospital público, o oxigênio, eles não gostavam de deixar a gente usar muito o oxigênio. Quer dizer, a gente tem a mesma limitação e é o quê que vai ter de diferente?... a gente que tinha a mesma dificuldade, não podia botar oxigênio, tinha que tirar logo, queria tirar logo, o médico queria fazer logo e não pode ser assim, dificuldade de respirar é preciso oxigênio sim: ‘ah porque já tá saturando quase 90 já, tá em 80’ é dificuldade, é dificuldade.”

 

Dos 20 entrevistados, 9 trabalham em diversas áreas da saúde e 6 deles são funcionários do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, o que proporcionou uma relação de confiança especial quando eles adoeceram e precisaram da instituição. Em geral todos os hospitais universitários são instituições diferenciadas para melhor no sistema público de saúde e reconhecidas como tal pela população. Camila, internada em dezembro de 2020, foi hospitalizada num dos hospitais da USP e comenta: “Então acho que, nesse meu percurso também, trabalhar na universidade, conseguir acessar os recursos da universidade, foi o que me garantiu acesso à saúde...”.

 

Maristela, funcionária do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, internada em março de 2020, compartilha sobre a situação crítica vivenciada no início da pandemia com a escassez de recursos materiais e profissionais da saúde:

“Mas eu falei, gente, eu dizia “não entuba todo mundo, porque não tem aparelho, não tem respirador, não se preocupe, só vão me entubar se eu tiver muito mal, no final de carreira mesmo, senão não vão me entubar, porque não tem material pra entubar”, foi logo no início, não tinha material, o tanto que veio, entendeu? O EPI não tinha suficiente para o pessoal entrar nas enfermarias, tanto é que ficou restrito o número de pessoas para entrarem, não só pela contaminação, mas pelo material que não tinha, entendeu?”.

 

Os entrevistados reconhecem a excelência do hospital universitário e dos profissionais que nele atuam. Eles relatam a relação de confiança que desenvolveram com a instituição e o vínculo formado com os profissionais da saúde. Fabricio, internado em novembro de 2020, compartilha:

“E não digo que foi sorte, eu digo sempre que foi Deus em busca de uma vaga aqui no [Hospital do] Fundão, a qual é… a qual pra mim foi muito benéfica. Para mim, acho que mesmo no plano de saúde, eu acho que nunca fui tão bem atendido por uma equipe. Todas as equipes me trataram muito bem. Parabéns! Eu até fiz uma homenagem a eles, fiz um buquê. Trouxe um buquê no final do ano passado, como forma de agradecimento a tudo que fizeram por mim. Adquiri alguns amigos aqui dentro, pessoas que hoje estão no meu ciclo de amizade, meu vínculo e foi uma coisa muito bacana”.

 

Dentre os demais entrevistados, 7 já mantinham vínculo com o hospital universitário devido a tratamentos anteriores, sejam eles ambulatoriais ou internações prévias. Como é o caso do entrevistado Jorge Luiz, internado em abril de 2020. “No HU. Me acompanho com nutri, endócrino, PROCIBA, cardiologista, dermatologista, dentista, psicólogo”. Nesse caso, o hospital universitário também é referência em emergências, pois o paciente já tem prontuário aberto na instituição.

Dos 20 entrevistados, 4 foram transferidos para o hospital universitário e pelo sistema de regulação de saúde. Como, por exemplo, Viviane, internada em maio de 2020, que veio transferida da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Del Castilho, Rio de Janeiro: “Aí ela [a gestora da unidade] tentando, tentando, passou dois dias tentando e a piora continuando. Aí, acho que foi numa quinta-feira, ela conseguiu uma vaga no CTI do Hospital do Fundão. No mesmo dia à tarde eles me transferiram de ambulância. Aí chegando lá eu tive todo o suporte”.

Muitos entrevistados reconhecem e agradecem o atendimento recebido no hospital universitário do Fundão. Fabrício que também veio transferido de uma UPA, completa com um pedido:

“Eu só queria, a única coisa que eu queria relatar, eu queria pedir que as autoridades brasileiras competentes que colocassem mais olho sobre o que é o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho [Hospital do Fundão], para melhorar mais a qualidade para os profissionais e para os pacientes. porque isso aqui é uma referência para a covid e pra muitas outras coisas. É um hospital exemplar, é onde forma muitos bons profissionais aqui e é isso que eu peço que melhore, que não deixe isso, isso acabar, que não deixe isso entrar em ruínas, que não deixe todo esse legado do Clementino Fraga Filho se perder. É isso”.

 

Dos 13 participantes da Bahia, dentre os 10 internados em hospital público de referência do Estado, o Instituto Couto Maia, todos reconheceram a excelente assistência prestada pelos profissionais, como menciona André Luís: “E foi primeiro lugar Deus, em segundo lugar o Couto Maia, porque assim, eu sabia que eu tava ruim, mas eu não sabia que eu estava entre a vida e a morte […] a equipe do Couto Maia super, super capaz, super super show de bola, não me faltou nada, não me faltou nada, eu posso dizer com toda a sinceridade, não faltou nada. Pessoal tranquilo, tudo o que eu precisava, até pra banho mesmo […] eles não queriam nem que eu me mexesse na hora do banho”.