2.2 Medo de transmitir para os outros – Isolamento doméstico

Temas

Durante a pandemia da COVID-19, o mundo viveu a incerteza de uma nova doença que pouco se  conhecia e que gerou muitas dúvidas na população e em profissionais da saúde. Conforme os estudos avançaram, verificou-se a alta taxa de transmissibilidade e mortalidade da doença, e, com isso, o isolamento social se mostrou ser um aliado no combate à COVID-19 para prevenir o contágio entre as pessoas. Entretanto, o distanciamento social afetou as relações interpessoais, sobretudo, o afastamento do ciclo familiar e de amigos, como conta Concelita, que foi internada no sistema de saúde público: “você sente muita falta da família, fica afastada, fica isolada… você tem vontade de ver as pessoas e sabe que não pode. Mesmo em casa, quando está no isolamento e ela que fazia a comida, ela subia a comida para mim, aí eu dividia entre o cachorro, que ficava na laje, aí ele me fazia companhia. Os dois almoçavam juntos, nós dois almoçava, nós dois lanchava, nós dois jantava. Mas eu não podia estar lá embaixo, no meio da bagunça. E aqui, quando estava aqui na emergência, que a gente tinha vontade de ver todo mundo, saber, eu queria ver e sabia que não podia. Aí começava a rezar e me conformava.” 

 

Para os profissionais de saúde que adquiriram COVID, o isolamento de familiares se iniciou precocemente e se estendeu durante o adoecimento. Como aconteceu com Mábia, enfermeira, que se isolou dos familiares e passou um período sozinha, com impactos emocionais importantes, mas que ela estava disposta a passar, pois reconhecia a importância de sua profissão nesse momento. “Por estar atuando na linha de frente, a primeira coisa que a gente pensa é proteger os nossos. Então eu resolvi me afastar do meu esposo, então passei um período sozinha mesmo, e eu tive esse processo de adoecimento, então teve a questão psicológica e emocional porque eu estava vivendo um turbilhão de emoções e medo. E consegui. Ainda tive que passar esse momento sozinha, mas passei esse momento sozinha por escolha e porque eu sabia que existiam pessoas e que existiam famílias que precisavam de mim naquele momento.”

 

Os primeiros sintomas da COVID-19 podem se assemelhar a uma gripe rotineira, mas no cenário global da pandemia, febre, espirro, coriza, dor corporal, dor de cabeça, entre outros sintomas, foram considerados sinais de alerta para um possível quadro de COVID-19. Dessa forma, os próprios pacientes ao perceberem o início dos sintomas se isolaram e evitaram o contato com a família para não os contaminar, como compartilha Ademir, internado no sistema público: “eu fiquei totalmente isolado desde o primeiro dia que eu detectei a febre. Fiquei em um quarto em casa, totalmente isolado.” e Carlos Eduardo: “Eu não dormi mais no quarto, separei prato, copo, talher, tudo e toda a minha roupa era diferenciada.” Essa experiência foi similar entre pessoas internadas no sistema público e no privado, com a diferença que no sistema privado alguns participantes tiveram mais opções de como organizar seu isolamento, como nos relata Márcio que permaneceu em um hotel: “com a possibilidade de contaminar minha mulher e meus sogros também, eu fiquei nessa: eu fico no hotel, meio que em quarentena, entregando comida no meu quarto. E aí, fiquei nessa correndo risco de passar mal lá e precisar me hospitalizar.”

 

Além do distanciamento físico, o impacto emocional também foi vivenciado pelos pacientes. Mesmo havendo a necessidade do afastamento físico naquele momento, isso mobilizou os pacientes ao se verem privados das suas relações afetivas cotidianamente, como conta Ademir: “Sem contar o período que eu fiquei afastado uma semana, num quarto isolado. Ela [esposa] me dava comida pela porta... Muito horrível. [...] Quando minha filha chegava perto da porta que eu estava, a minha esposa brigava com ela, com medo da doença.” 

Uma preocupação recorrente estando na mesma residência que os familiares, mesmo em ambientes separados, era transmitir a doença e não saber qual a gravidade que ela se manifestaria na outra pessoa, como conta Marcio internado no sistema privado: “e imaginar que eu estou passando isso para outra pessoa, me dá uma sensação muito ruim.” Muitos pacientes mantiveram o distanciamento de seus familiares no mesmo ambiente de convívio até estarem melhores da COVID-19, e procuraram a melhor forma possível de viver o isolamento, como conta Wellington: “eu ficava no quarto, minha esposa na sala, e meio que deixava a porta aberta, então estava sempre conversando, então não me senti isolado.” 

 

Por vezes o desejo de ver os familiares foi tão grande que houve a quebra do isolamento, como compartilha Nelson do sistema público: “Só que eu queria ver minha mãe, nem que fosse no portão, eu não sei se amanhã eu estou aqui ou não estou”. Nesses casos, o uso de equipamentos como máscara e o uso de álcool em gel ajudavam para que não houvesse contaminação, embora não houvesse garantia. Em alguns casos, a preocupação dos familiares causou a exposição à contaminação, como conta Wellington internado no sistema privado: “ela (mãe) sempre muito preocupada, queria ficar perto e tomar conta, e eu acho que acabei contaminando ela.” 

E, em alguns casos, a quebra do isolamento resultou em contaminação de familiares e com isso sentimentos negativos relacionados à culpa pelo adoecimento de outras pessoas, como ocorreu com Rosana Karina que foi visitar seus pais no interior da Bahia, sem saber que estava contaminada e transmitiu a doença para toda a família e também para amigos. Precisou ainda conviver com o estigma social de ter sido apontada como a pessoa a ‘levar’ a COVID para essa localidade. “Me senti muito mal, me senti frustrada, meus familiares e vizinhos, e amigos me culparam porque fui pra lá e fui a primeira pessoa a levar a doença pra lá, segundo eles… foram 10 pessoas da minha família… todo mundo caiu pra cima de mim falando, inclusive até a prefeitura lá…”

 

Mesmo após o período de isolamento prescrito, após refazer o teste e negativar para COVID-19, os pacientes se viam inseguros de não manter essas medidas preventivas, como conta Maristela internada no sistema público: “eu ficava com medo de eu contaminar, com medo ainda, apesar que já tinha dado negativo o meu PCR.”  Outra  razão foram as sequelas do adoecimento, que fizeram com que o distanciamento social se estendesse além do previsto. Henrique internado no sistema privado compartilha que teve que permanecer um período maior acamado, o que prejudicou a mobilidade, levando a lesões no corpo: “Na parte social, eu fiquei muito tempo recluso. […] Mesmo se não tivesse restrição de quarentena, não daria muito para eu sair, porque eu tive a úlcera de pressão e eu não conseguia ficar sentado, era muito custoso para mim.” 

 

Vale ressaltar uma diferença entre o sistema público e o privado quanto a disponibilidade de profissionais da saúde para além do ambiente hospitalar, seja através do seguro de saúde, seja quando o profissional foi contratado particularmente, como compartilha Margareth: “Quando eu cheguei em casa, meu cardiologista me ligou e disse: ‘Margareth, você vai ficar sem contato imediato com a sua filha por duas semanas e usando máscara, e se ela precisar te ajudar a andar dentro de casa, ir ao banheiro, tomar banho, eu vou dar todas as orientações para ela’.” 

No entanto, orientações eram dadas na alta hospitalar, e por cerca de dez a vinte dias os pacientes mantinham o distanciamento do convívio familiar para assegurar que não haveria contaminação, como nos conta Maristela internada no sistema público: “E quando eu saí de alta, o médico falou pro meu marido ‘o senhor vai dormir num quarto, ela vai dormir no outro, o senhor vai usar um banheiro da casa, tem dois banheiros? Então o senhor usa um e ela usa outro’. E ficou, um banheiro ficou só pra eu usar, ninguém da família mais usava aquele banheiro.” 

O isolamento, apesar de benéfico no combate à COVID-19, afetou emocionalmente os pacientes nas suas relações interpessoais. Entretanto, nas contribuições narradas pelos pacientes, percebe-se que foi uma medida essencial para evitar a propagação da doença nas famílias.