4.2 Retomada do cotidiano após-alta hospitalar

Temas

O retorno ao cotidiano, após o período de internação, foi relatado como uma experiência marcada pelo medo. Os temores parecem associados ao trauma da experiência de ter adoecido gravemente e ter adquirido sequelas físicas, neurológicas e psicológicas. Muitos pacientes relatam medo de uma nova contaminação ou medo de sair do hospital e ter que dar conta da rotina sozinho em casa, medo de não conseguir fazer tarefas triviais na rua e insegurança. 

"Eu tenho um recomeçar muito grande, retomar, eu de início tive medo de ir para a rua, eu poderia ter ido para rua, mais quatro meses dentro de casa, mais quatro meses, você também fica muito polido, você tem medo das coisas, eu tenho muito medo de ir para rua, porque eu não sabia nem como me comportar, aí no dia do meu aniversário que foi 9 de julho, até a gente ia marcar a entrevista, deixa depois, a Nana minha filha: “não, mãe, eu vou te levar para passear na praia, porque você precisa, e a praia não tem problema”, e foi ótimo, nós fomos andar na beira do mar, sentir a areia, tava muito frio não deu para entrar no mar mas só de você sentir do lado de fora, foi a primeira vez que eu tava saindo, foi impressionante, uma alegria ímpar, a partir desse dia eu comecei a sair. Aí uma vizinha que a médica, que nem teve COVID, mas que caminha no Jardim Botânico, disse “vamos no Jardim Botânico?”, então foi bom, comecei a andar e eu emendei e fui indo, então hoje em dia, agora já fiz até o mercado, já fui a Cobal, já fui, entendeu, já tô fazendo, aí eu peguei a confiança, o ritmo, mas a verdade é que eu tava com uma vida pós COVID, muito ligada a família, porque a minha família toda teve COVID, então nós podíamos nos encontrar, a gente até brincou, teve o aniversário da neta e eram os “covidados” não eram os “convidados”, eram “covidados”, a gente riu e eu brinquei com esse trocadilho, é como se todos  “covidados”  podíamos estar na festa, somente os “covidados” porque realmente já somava 8,9 ali." (Ana Cristina)

 

"Ah, foi assim por um lado muito bom voltar, mas tinha um medo muito grande, um medo porque eu pensava assim, o melhor lugar para você passar mal é dentro do hospital, você passou mal tem uma equipe ali para cuidar de você e tal, e fazer o que tiver que fazer em qualquer procedimento que precise e tal. Quando eu cheguei em casa eu não tinha mais a enfermagem passando no quarto o tempo todo, medindo a temperatura, medindo a minha saturação, medindo se a função renal tá boa, nada disso, e você fica com um pé atrás sobre a covid, vi falar tanto de sequelas disso daquilo e agora então, eu andava com um oxímetro no bolso, aliás hoje eu comprei um relógio que mede a saturação então a qualquer momento eu meço, mas antes de comprar esse reloginho ai, eu andava com o oxímetro no bolso até porque tem uma outra característica da covid que também por isso eu andava com um oxímetro, ele mede a pulsação porque quando você toma o anticoagulante ele acelera seu coração, então eu percebia que meu coração tava sempre acelerado com relação aos batimentos, agora já normalizou porque eu já parei o anticoagulante, mas é uma coisa que me preocupava, eu via que as outras pessoas colocavam lá 68, 80 batimentos, eu punha o meu dava 95, ta dentro de uma normalidade, não é grave o coração bater a 95 vezes por minuto, mas é acima do teu normal. Hoje e agora tá 78, tranquilo, isso era uma coisa que meio que eu fui monitorando, então assim a volta para casa foi muito complicada e esse medo: "se meu coração acelerar?", "e se minha saturação baixar?", "e se eu medir no oxímetro e der 92, o que eu vou fazer agora?" Não tem, lá eu tinha o cateter, eu punha, colocou, acabou. E se eu tô em casa e minha saturação cai para 94? Aí teve um dia que eu coloquei o oxímetro deu 93 e eu falei não é possível, aí eu comprei outro oxímetro, joguei aquele fora e o outro começou a dar 95 e 97, e daí eu comecei a dar oxímetro de presente para as pessoas."  (Marcial)

 

"É porque também estou com esses lapsos de memória, tem coisas que eu esqueço. Ontem mesmo foi aniversário da minha mãe e eu esqueci, mas ela compreende o meu lado, inclusive às vezes ela vai comigo na consulta, porque às vezes eu me esqueço, às vezes eu desço no local errado. Então eu estou com esse lapso muito forte de memória que eles ainda estão estudando ainda, ainda não me deram medicação, nada, mas estão estudando, estão fazendo os exames, entendeu? Eu antigamente eu sabia meu CPF, minha identidade, meu título, minha carteira de trabalho, meu NINS, telefones, eu sabia muita coisa de cabeça. Coisa que agora eu quase não sei nada. Eu tenho que olhar para mim poder informar."  (Viviane Louro do SUS)

 

"Eu, no começo, eu não encontrei muita gente, falei com as pessoas mais íntimas, fiquei mais em casa, comecei a vir para o escritório, demorei uma semana para eu vir pra cá porque você ainda fica, é isso que eu to te falando, você fica muito inseguro. Eu lembro que a primeira vez que eu saí na rua, a primeira vez que eu vim para o escritório, eu dava tchau pro passarinho, pra planta, parecia uma retardada, quase beijava o porteiro." (Maria Isabel)

 

"Os primeiros vamos dizer assim, os primeiros trinta dias foram muito difíceis, eu ficava muito cansado, entendeu? Pra subir escadas, eu tinha que parar na escada, assim, dez, doze degraus, me sentia cansado, parava. Quando eu voltei a trabalhar eu voltei com muito medo, um cuidado assim além da conta, apesar da gente ir todo paramentado. “Eduardo voltou com tic, tá com TOC, tá com TOC”. Mas eu procurei me policiar, mas depois passou. Mas até hoje eu fico com a máscara, uso máscara tá? Lá na Fiocruz eu fico de máscara. Pelo menos o protocolo é a gente usar a máscara, quando estiver dentro da unidade é com máscara e mantém o álcool setenta, tá? Vou ao mercado quando está muito cheio eu uso a máscara, tá? Às vezes minha mulher fala que tem duas pessoas de máscara,mas é isso aí, mas eu ainda continuo."  (Carlos Eduardo do SUS)

 

Edmilson relata que o medo de contaminar seus familiares mesmo após alta hospitalar, o levou ao isolamento do convívio familiar: "Todo o pessoal, todo mundo tinha medo, o pessoal quando dizia que a pessoa tava de covid ninguém queria encostar, né? Parecia naquele tempo quando tava de lepra ninguém queria encostar que podia pegar, então tava acontecendo a mesma coisa, quem... quando sentava a pessoa dizia: ‘tá de covid? Sai de junto de mim que eu não quero saber não’ [silêncio] e eu também, eu mermo depois, quando eu cheguei aqui, eu fiquei isolado. Eu fiquei em um quarto só tal, depois foi quando ela me ligou que me informou que eu falei com ela... ah, então pronto não tinha... pode ficar normal dentro de casa, aí pronto foi que ficou tudo normal que eu mesmo tava com receio de passar pra eles, né? Como eu tive, eu mesmo fiquei com receio, mas como ela me explicou tudo, me passou toda situação como era eu peguei e fiquei normal em casa.”  

 

Nesse contexto de retorno para casa após a alta hospitalar, muitos pacientes referiram dificuldade em realizar atividades do dia a dia por conta das debilidades motoras e do cansaço.

"Assim, demorou para eu conseguir fazer algumas coisas porque eu ficava cansada. Lembro que teve um dia que eu falei com a minha mãe assim: "vamos lá no mercado", ela: "ah vamos".  Eu falei: "mas eu queria ir andando para você ter condições de andar". Porque…desculpa. eu falei que eu vou voltar a trabalhar. Como é que eu vou voltar a trabalhar se eu não conseguir andar lá? Aí eu lembro que a gente foi até o mercado. Compramos mais coisas, poucas. Eu vim trazendo uma bolsinha só. Mas eu lembro que quando eu cheguei em casa estava muito cansada, tudo me cansava muito. Era um cansaço que é fora do normal. Não é cansaço respiratório, mas o corpo, entendeu? Muito debilitado."   (Márcia Cristina do SUS)

 

"Mas para eu fazer exercício eu não consigo. Eu estou tentando trabalhar isso, acho que isso é bem psicológico mesmo. Mas caminhar, essas coisas, eu vou. Agora, pra ficar como eu fazia, pegar peso, ficar naquele espaço ali, não consigo mais. Isso já tem uns 2 anos, que eu não volto pra academia. Caminho, faço minhas coisas e tudo. Mas eu não consigo voltar pra academia não."  (Kátia Verônica do SUS)

 

Os pacientes relataram como formas de minimizar o medo de nova contaminação a manutenção dos cuidados tais como, manter o distanciamento, uso de máscara e  álcool em gel. A vacina também foi uma importante impulsionadora da retomada do cotidiano.

"E eu só me senti seguro depois que eu tomei a primeira dose da vacina, segunda aí que eu já vim ao hospital direto, tomei a terceira, quarta, não sei se elas fazem efeito, mas pra mim tá fazendo efeito, porque eu tô saindo com segurança, tô saindo sem medo."  (Jorge Luiz do SUS)

 

"E outra forma, eu falei “cara, eu não vou ficar também maluco, sequelado em pânico de ficar em casa com medo assim”, é lógico que tive, por isso estou falando isso aqui agora de medo de sair e de pegar novamente. Então eu tenho que fazer algumas coisas que são triviais, ir ao supermercado e eu também não posso ficar igual um maluco em pânico. É, eu não sou igual a um maluco no gel, usando máscara hoje, eu não saio de casa sem aquilo, raríssimas exceções que eu tirei pra tomar uma água ou alguma coisa. É engraçado assim que eu consegui perceber com isso eu me sinto super seguro né, eu acho que indo ao supermercado, indo nesses lugares mais controlado no sentido que faz uma verificação, eu não posso dizer cem por cento mas assim, eu vejo que é pouco provável de pegar nesses lugares. Tava conversando com minha esposa, eu falei assim,  as pessoas entram aqui com o gel na mão, são obrigados a passar, todo mundo de máscara e você tomando esse cuidado, você usar máscara, não meter a mão na cara e tudo mais, po a possibilidade de você pegar é muito baixa, agora você ir na casa dos amigos, conversando com eles pessoalmente, sem máscara, comendo ou compartilhando comida, pra pegar isso é batata. Isso é trivial então, eu evitei e até hoje evito encontrar com a minha mãe assim, essas situações que você vai fazer do cotidiano. Ah, vou almoçar em família algo nesse sentido, que você acaba passando e você não percebe que você pega o sintoma tardio. Então é nisso que as pessoas pegam e não se dão conta, e eu acho que é nesse sentido, eu não deixei de sair de casa pra fazer o que eu tenho que fazer na rua, mas aí visitar casa de amigos, meu irmão e minha mãe, eu não faço mais, é um risco absurdo a não ser que vá uma vez ou outra tentando se precaver o máximo e eu acho que é um risco absurdo de você, e da forma."  (Marcio)

 

A retomada às atividades físicas ou a adoção dessa nova prática no dia a dia após a alta hospitalar, também marcou o relato de pacientes e foi reconhecida como uma atividade necessária para a saúde e o bem-estar. 

"O impacto principal positivo que causou pra mim foi que na minha história eu fui sempre ativo, eu era fisicamente ativo até os meus vinte pouquinhos anos, eu praticava muita atividade física, eu tinha um condicionamento bom. Desde então, o trabalho, a quantidade de trabalho, a lesão no joelho, eu me tornei uma pessoa sedentária, então sei lá, nos últimos 15, 20 anos, eu estava completamente sedentário e isso me desenvolveu uma diabetes, desenvolveram outros problemas de saúde mais leves, que acabou que com a covid, essa necessidade da reabilitação física me fez com que eu engrenasse novamente uma rotina de atividades física que eu não tinha há 20 anos. Então, muito embora eu não me sinta 100% recuperado hoje, eu já me sinto melhor fisicamente do que eu me sentia antes da covid. É, então assim, hoje eu já me sinto mais preparado para uma atividade física seja ela qual for do que eu me sentia antes. Naturalmente eu tenho algumas limitações ainda, porque eu perdi muita massa, mas tenho certeza que já estava muito fraco fisicamente antes da internação. Então hoje eu acho que to mais forte do que eu tava, embora, eu ainda acho que tenho que melhorar com certeza. Então foi um aspecto positivo. O principal impacto positivo que eu tive, né? Agora negativamente, eu acho que na recuperação, assim muito medo, né? Acho que eu tinha muito medo de não conseguir voltar a minha rotina, eu tinha muito medo de não conseguir voltar a trabalhar, de não conseguir voltar a andar, de não conseguir, sei lá, me virar na cama porque eu não conseguia fazer isso no começo, você tem muitos medos que são medos básicos, medo de não conseguir mais viver normal, de viver em uma cadeira de roda para o resto da vida, depois que passa essa fase você começa a ver que vai recuperar. E assim, quando você começa a ficar em pé e começa a dar 3, 4 passos, você vê que é questão de tempo que você vai ganhar a força suficiente para se recuperar. E intelectualmente, eu não tive esse problema muito não, eu tinha consciência que mesmo na cama do hospital, eu já estava trabalhando, eu sempre tive consciência de que se eu fosse conseguir manter essa atividade de trabalho, porque ela é basicamente intelectual, não depende de força física para nada. Então, eu não tinha essa preocupação, minha preocupação sempre foi de locomoção física, isso me incomodou muito mais assim, depois de 1 mês de recuperação eu tive a certeza de que algum momento eu estaria recuperado, não sei se eu te respondi o você perguntou." (Wellington)

 

"Hoje eu posso falar que eu tenho oitenta por cento da minha rotina de volta, mas eu comecei a fazer exercício há muito pouco tempo que eu voltei. Eu faço yoga uma vez só por semana, comecei não deve nem ter um mês ainda, mas assim eu tenho e tô com osso fraco, eu tô com os músculos muito fracos, eu preciso voltar para uma musculação assim urgente, porque eu preciso fortalecer. Eu não consegui voltar ainda, eu acredito que eu vá voltar essa semana ou na semana que vem, mas quase três meses depois, julho, agosto e setembro, três meses."  (Maria Isabel)

 

"E passando esse processo em casa, eu fui procurar alguma coisa que eu conseguisse fazer para melhorar a minha mobilidade. Uma coisa que ajudou muito no começo foi o yoga na praia. Eu lembro que sentava na esteira e para levantar alguém tinha que me ajudar porque eu não conseguia levantar. Isso me ajudou muito. Todos os exercícios à base de alongamento e muito próximo da natureza me fizeram muito bem nesse processo todo. E o meu angiologista chegou a acreditar que talvez eu não pudesse voltar a trabalhar por causa dessa dificuldade. Mas eu insisti, eu falei que depois de tanto tempo de enfermagem, eu não queria me aposentar por incapacidade. E eu fui insistindo com isso. Comprei uma raquete para jogar frescobol, eu comecei a comprar bolinhas e amarrar um elástico nelas porque eu não aceitava ficar naquela dependência de terceiros."  (Janilda do SUS)

 

Algumas das experiências de retomada do convívio social foram marcados por respostas de discriminação e estigma por terem contraído a COVID-19, o que mobilizou sentimentos desagradáveis nos pacientes.

"Eu senti em algumas pessoas uma certa, um certo distanciamento como se eu estivesse transmitindo ainda tá, o COVID, um certo preconceito assim, como se eu estivesse transmitindo ainda... “opa, não vamo chegar muito perto não esse cara ficou entubado, não foram em todos não, foram poucas pessoas, os demais, família e tal, tudo normal."  (Julio)

 

As vivências de discriminação e estigma na retomada ao cotidiano, também aparecem na forma de culpabilização, revela a entrevistada que é vista como um agente de contaminação que levou a doença para região onde mora seus familiares.

“Até hoje eu tenho uma frustração, me dá vontade muito de chorar quando eu vejo as pessoas… quando eu voltei pra minha terra fui ver meus pais, meus vizinhos lá... todo mundo... é... foi um comentário, vários áudios falando de mim, que eu levei a covid, então isso foi horrível, parecia assim que... até um vídeo fizeram quando meus pais... ameaçaram meus pais de morte, tocar fogo na casa de meus pais, então quando eles voltaram pra casa, eles teve que sair da casa deles e... depois, quando eles voltaram, aí a prefeitura botou uma notinha: ‘ah, os primeiro idosos voltando pra casa’, mas no início não foi assim, foi pesado. Aí eu fiquei muito frustrada, foi horrível assim pra mim.”  (Rosana Karina do SUS)