3.2.3 Medo da morte

Temas

A pandemia da covid-19 redirecionou a atenção do mundo para a natureza transitória da vida. Os números expressivos de perdas de vidas humanas por covid-19 foram divulgados pelos veículos de comunicação com frequência e muitas vezes impactam nas expectativas relacionadas ao futuro, causando medo da própria morte, dos entes queridos e conhecidos. 

Eduardo, médico e professor, hospitalizado no sistema privado de saúde na cidade do Rio de Janeiro, em março de 2021, nos conta sobre o impacto negativo das notícias sobre o número de óbitos por covid-19, e compartilha sua perspectiva sobre o morrer:

“Quando eu liguei a televisão, estava na Globo, estava falando assim: ‘4000 mortos’ Eu desliguei na hora. No dia seguinte, eu ainda tentei botar num filme, mas aí no filme também tinha um monte de morte e o medo da morte estava ali presente na minha vida. O paciente de COVID tem medo de morrer. Ele tem medo de morrer. Eu tinha medo da morte, todos nós temos. Então não queria ver, porque é uma coisa que eu pude perceber, o tema morte que atravessa a cultura e as atividades cinematográficas, os filmes, sempre tem alguém que morre ou quase morre e ressuscita normalmente”. 

 

Diante da gravidade do quadro, Wellington, que permaneceu 28 dias internado no hospital privado, ao ser avisado sobre a intubação compartilha seu medo de morrer e as marcas emocionais da internação:

“Então aí, até o momento da intubação, foi isso que aconteceu. Eu lembro que foi muito rápido, ele falou isso para mim, eu me lembro que eu falei alguma coisa, ‘manda um beijo para minha família’, fiquei muito nervoso na hora, eu não sei se ia voltar, se eu não ia voltar, a gente escuta e, enfim, ele me entubou muito rapidamente [...]. Assim até intubação, não me afetou de maneira alguma, mas quando eu fui extubado que eu iniciei a recuperação, e ainda no CTI, eu ainda desenvolvi um tipo de medo, eu tinha muito medo de, sei lá, parece meio loucura o que eu vou falar aqui, mas assim eu tava lá internado e toda hora que vinha alguém, algum médico, mexia em mim, sei lá, eu tinha medo deles me matarem, eu sei que parece um absurdo mas eu falava: ‘não me mata não, pelo amor de Deus, eu vou recuperar', porque eu tinha muito isso na cabeça, essas informações que a gente vê, ‘tá faltando leito, tá faltando não sei’ como eu já sabia que meu estado era muito grave eu falei: ‘vão me matar aqui para botar outro’. Eu já tinha essa preocupação, né?”

“Logo que eu saí da extubação, eu tinha muito medo de dormir. Eu não queria dormir, o médico falava: ‘você tem que dormir, você tem que descansar, você tem que descansar’, ‘eu não vou dormir’, porque eu tinha medo de não acordar mais, de morrer e eu lembro que eu brigava contra o sono. Eu lembro que me davam quantidade cavalares para dormir e eu não dormia”.

Kátia Verônica, nutricionista do Hospital Clementino Fraga Filho, o mesmo onde estava internada, sente medo de morrer diante da gravidade dos seus sintomas e da possibilidade de ser entubada. No entanto, diante dos esforços da equipe de saúde para encontrar outros tratamentos do ponto de vista respiratório, ela não precisou da intubação.

“Eu tive medo de morrer no sentido de que eu não estava conseguindo respirar. E você não conseguir respirar, acho que é a pior coisa que existe, porque vai te dando uma angústia, uma ansiedade. Porque você procura o ar e você não acha. Acho que foi no 4° ou no 5° dia que eu estava lá, um dos médicos chegou. Ele [ficou] em volta da minha cama, ficou cheio de médico. ‘Pronto, vou morrer, agora eu vou’. Aí eles começaram… Ah… eu tenho uma marca nos pulsos, porque eles abriram meus pulsos pra enfiar medicação, fora a da minha virilha. Tinha uma médica, eu me lembro dela, acho que era Denise ou Andréia, ela foi super gentil. E tinha um outro médico com ela, que era do staff, que estava nervosíssimo. Eles dois estavam discutindo, porque ele queria me entubar, e ela dizendo que não. Aí ela: ‘não, mas ela está melhorando da saturação’. Eu olhava pro aparelho que ficava atrás da gente, eu olhava: ‘poxa, se não melhorar a saturação… pelo amor de Deus, [ele] vai me entubar'. Ela dizia assim: ‘não, não, vamos pegar a artéria dela aqui do braço, do pulso, que ela vai melhorar’. Eles vieram com um aparelho, fizeram um ultrassom pra ver essa artéria aqui, pra pegar e poder colocar a medicação. E ficava fácil também pra eles colherem sangue daqui, que dói demais essa [coleta] da mão”. 

 

A imprevisibilidade da evolução individual da doença é um aspecto que pode causar sofrimento ao paciente internado com covid-19. Esse cenário desconhecido e imprevisível é extremamente angustiante e se encontra com o medo de morrer. Isabel, internada em um hospital privado no Rio de Janeiro, em junho de 2021, compartilha: “Primeiro que você acha que você pode morrer a qualquer segundo, depois você vê todo mundo em volta péssimo, entubado, então também a gente não sabe. Não depende da gente o caminho. Eu posso ficar quietinha, deitada, tomando cortisona, e eu não sabia como meu organismo ia  reagir, ele pode aceitar ou pode não aceitar, não tem certo e errado.”

Alguns entrevistados que permaneceram na Unidade de Terapia Intensiva presenciaram múltiplos óbitos ao longo da sua permanência na unidade, o que os confrontava com a possibilidade  da própria morte, como nos conta o participante Nelson, que adoeceu em maio de 2020 e permaneceu hospitalizado no Hospital Clementino Fraga Filho: 

“Ah, não foi fácil esse aí. Quando eu acordei e continuei vendo as pessoas lá indo embora na minha frente, eu até brinquei com a enfermeira: ‘Poxa, ela (a morte) está vindo por aí’. Falei com ela um dia antes: ‘Está vindo por aí’. E todos os colegas, todas as pessoas de quando eu cheguei sumiram, os leitos ficaram todos vazios. ‘Tá vendo, me tira daqui, e bota eu para lá, para ela não pegar eu aqui’, eu brinquei com ela. No outro dia quando eu acordei o rapaz do meu lado já… Chamei a enfermeira: ‘Cadê o rapaz que estava aqui?’; 'Ah, seu Nelson, ele foi fazer um exame’, e eu: ‘Exame que nada, foi fazer exame que nada!’ Fiquei nervoso. Me seguraram de novo: ‘Ela está vindo, falei que ela está vindo, ta pegando, me bota para lá’[...]". 

 

Rosana, foi internada em abril de 2020, e lembra que chegou a implorar aos médicos para salvá-la, estava muito desesperada não só com medo da morte, pensando na vida dela, mas também no seu filho:

“Aff, muito. Entrei em pânico, eu pensei muito, quando eu vi, eu fiquei com muito medo de morrer, tanto que os médicos mesmo ficavam super assustados. Eu chegava pedir que não... só faltava segurar neles: ‘por favor, me salve’ todos que chegavam, eu pedia: ‘não deixe eu morrer, me salve, pelo amor de Deus, eu não quero morrer, eu quero criar meu filho’, eu entrei em pânico assim, várias vezes assim, várias vezes. Acho que o único dia que eu não fiquei desesperada foi quando me deram alta, mas todos os dias eu ficava desesperada, eu tinha muito medo de morrer. Primeiro, que eu tinha, como eu te falei, tinha essa valvulazinha levemente afetada e tinha medo da trombose, tava tendo muito calafrio, aí eu ficava com medo de febre, ficava com medo de... aí eu respirava pra ver se eu tava sentindo falta de ar, então tudo isso... né? Você entra em desespero, né?”.

Alexandre, médico geriatra, adoeceu em janeiro de 2021 e tem o diagnóstico prévio de hemofilia. O fato de desde novo ter que lidar com a doença, auxiliou no enfrentamento do seu adoecimento por covid-19, mas ao perceber sua piora clínica, teve que lidar com uma situação totalmente nova como paciente: “O terreno da hemofilia é um terreno conhecido desde os meus dois, três anos de idade, então de qualquer maneira ali, mesmo passando por algumas situações do passado mais difícil, era como se fosse um terreno que eu, mesmo podendo afundar em alguma areia movediça, mas eu sabia melhor onde tava pisando, mas esse terreno da Covid, até por ser um terreno desconhecido até para o profissional de saúde, até para mim, eu estando do outro lado como profissional de saúde era bem desconhecido”. E ele completa:

“Então eu acho que não foi mais desesperador e mais sofrido por isso, isso me ajudou muito, mas eu posso dizer que teve um momento lá que pra mim foi muito difícil, foi quando eu vi que tava evoluindo de uma forma ruim, de uma forma negativa na evolução do quadro clínico, então assim a saturação continuava caindo muito e aí minha pressão também começou a cair, chegou ali no limite de instabilidade hemodinâmica, e tal. E, assim, eu sendo médico e conhecendo, e sabendo que estava com síndrome de inflamação sistêmica e repercussão respiratória, hemodinâmica, e tal, eu vendo isso ocorrer pra mim era…, trazia um desespero maior”. 

 

Reneé, adoeceu em outubro de 2020 e tratava previamente uma cardiopatia e problemas vasculares de membros inferiores no mesmo hospital público que ficou hospitalizado. Se emociona ao lembrar do momento em que soube da gravidade do seu quadro e sentiu  medo de morrer:

“A equipe falou da infecção que estava no pericárdio devido a COVID-19 e, logo, logo na emergência, quando a equipe falou que eu estava com a COVID-19, que foi dado positivo e o quadro era grave… eu imaginei que não ia voltar, mas… [se emociona, chora, pausa mais longa]. Desculpa. Eu… eu me despedi delas (irmãs), mas já sabendo que não ia voltar pela gravidade que o médico tinha falado comigo”.

Além do seu delicado quadro de saúde, o entrevistado também presenciou diversos óbitos ao longo da sua internação, como ele compartilha: “Então, na minha cabeça tudo já ia piorar a situação. Por isso durante o período que eu fiquei no CTI, aí eu não dormia com medo, porque via muitas pessoas indo a óbito. Aquilo ficou na minha cabeça”.

Sérgio foi internado em novembro de 2020, alguns meses depois da alta de sua filha Márcia Cristina, que também foi hospitalizada gravemente por covid-19. Ele nos conta que enfrentou a doença, no entanto, em um momento crítico teve medo de morrer. Sérgio conseguiu ressignificar sua relação com a enfermagem, profissão da filha, e ele compartilha:

“Foi quando acabou o ar, acabou o ar. Acabou o ar, eu chamei a enfermeira, chamei a equipe de enfermagem e pedi pra aumentar o ar, eles falaram que já estava no máximo. Eu entrei em desespero, até porque eu acho que meu ar acabou porque eu vi um paciente ir a óbito. Então, eu comecei a imaginar que o próximo seria eu. Então, naquele momento ali, foi o único momento que eu tive medo de morrer. No mais, eu confiava piamente na equipe e apesar de eu estar assim, naquele período de achar que eu ia morrer a qualquer momento, eu via o comprometimento da equipe, era demais. Eu mudei até, em relação, nunca tive problema com pessoal de enfermagem, nunca critiquei ninguém, nada disso, que minha filha também é de enfermagem, mas eu tinha uma visão muito limitada do pessoal de enfermagem. A única visão que eu tinha era da minha filha trabalhando, o como ela trabalhava, a dedicação dela. Então, eu só via a minha filha. Eu não via ao redor. E lá no hospital eu pude ver como a equipe de enfermagem, como eles são especiais, entendeu? E eu pude mudar também a minha visão quanto a eles”. 

 

Como profissional da área da saúde atuante na pandemia da covid-19, Márcia Cristina  presenciou muitos óbitos: Adoeceu em junho de 2020 e quando questionada se em algum momento “teve medo de morrer”, responde: “Muito. Muito. Porque o que eu via era, por dia, passarem 10, 15 corpos [...] como profissional. Como paciente não, como paciente no momento que eu internei, na noite que eu internei, eu vi uma senhora ir a óbito na minha frente. Mas aí a gente não tem muito o que questionar. Quando eu cheguei, ela já estava bem grave, né? [...] Mas na emergência do meu trabalho, cheguei a ver muitos óbitos. De certa forma choca, porque você fala assim: ‘até onde vai tudo isso?’."

“Eu queria dormir, só queria dormir. Eu pedia muito para dormir, para pelo menos, eu não ver a hora que eu tivesse morrendo”. Paula ficou internada em junho de 2020 e passou por momentos muito difíceis ao longo da sua internação no sistema privado de saúde. Entendendo sua gravidade, mesmo entubada, ela compartilha os pensamentos sobre sua morte: “O ruim era isso, eu vou morrer e ainda vou ter que ver, e é por isso que eu ficava pensando: ‘Eu vou morrer hoje, dia tal, mês tal’, eu ficava tentando fazer esse controle”.

“E aí, eu fui percebendo que nos primeiros dias entubada, vinha a equipe me dá banho e eu virava sozinha, eu levantava o bumbum para eles trocarem a fralda e nos últimos dias eu não tinha mais forças nem para fazer isso. Então eu olhava para as minhas pernas e estavam muito finas, eu já tinha perdido muita massa muscular, e assim para mim já tinha acabado, eu só queria, só não queria ver. Só queria dormir para não ter que ver, assistir a minha própria morte ali, sabe?”. 

Alguns entrevistados quando se referiram ao medo de morrer compartilharam pensamentos sobre os seus familiares. Fabrício nos conta que no momento da sua intubação a lembrança das filhas veio à memória: “E quando o médico falou que ia me entubar, a única coisa que veio na minha mente foi minhas filhas, que de repente eu poderia morrer e não ver elas mais [...]. Eu não tive medo por mim, mas medo pelas minhas filhas, pelas pessoas, né? Pela minha mãe principalmente, né?”

Juliana permaneceu internada na unidade semi-intensiva e por ter um comprometimento respiratório importante temia sua morte: “Eu tenho muito medo de morrer, principalmente de morrer sem ar”. Diante desse medo, chegou a escrever cartas de despedida para sua família. 

“Eu pensei em muitas coisas, ‘vou morrer, eu tô morrendo’, escrevi carta, várias cartas, escrevi cartas para o meu pai, para minha mãe, para minha filha, para o meu marido, para a minha avó, meu sobrinho, eu escrevi carta me despedindo de cada um deles, porque assim, eu tinha uma mala e eu pedi o meu computador para eu trabalhar, 'traz meu computador'. E aí, no meu computador eu fui escrevendo. Falei que se eu morrer eles vão abrir meu computador e vão ler. Tenho certeza que eles vão ter curiosidade para ver o que eu escrevi.”  

 

Maria Cláudia adoeceu em setembro de 2020 e permaneceu 9 dias internada no sistema privado de saúde. Ao longo da sua internação negociou o tempo todo para não ser entubada, pois estava preocupada com seu filho, Theo. Na sua perspectiva, caso fosse entubada, não retornaria. 

“Eu tinha muito medo de morrer, muito, muito, muito, muito. E como tenho um filho eu ficava pensando, ‘como é que eu vou deixar meu filho’, entendeu? Eu saí de casa para me despedir dele aos prantos. Eu sabia que eu estava muito ruim. Eu não sabia se eu ia voltar, porque estava incerto esse lance da doença, o povo ia e não voltava mais. E ao me despedir dele dei um beijo, falei ‘a mamãe volta’, deu até vontade de chorar, aí eu falei assim, ‘mamãe volta rápido’. Aí ele chorou assim, mas assim, até me emociona. Eu tinha certeza que eu não ia voltar rápido, entendeu? Então assim, foi muito, nossa, foi muito ruim, muito ruim, muito ruim. Todo momento, eu achava que eu ia morrer e eu rezava muito, sabe? Rezava, rezava, rezava, só rezada, olhava a televisão a mesma coisa que nada, porque eu estava sempre rezando. Aí começa a rezar de trás para frente, de frente para trás, eu confundi ‘Ave Maria’ com ‘Pai Nosso’, tava confundindo tudo, sabe. Eu só rezava, só pedia pela mão de Deus para melhorar e sair dali, entendeu?”. 

 

Viviane, antes de ser internada por 20 dias no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, permaneceu por 10 dias em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no bairro de Del Castilho, na cidade do Rio de Janeiro. Devido a sua piora clínica, necessitava de cuidado e suporte mais complexos, onde na Unidade de Pronto Atendimento não conseguiria. Nesse momento, consciente da sua gravidade, sentiu medo de morrer e lembrou dos seus filhos, que desde os seus primeiros sintomas já estavam sofrendo com seu adoecimento: “Aí a diretora entrou e conversou comigo, eu já não conseguia mais nem levantar da cama, ela conversou comigo falando que eu ia ter que ser transferida para um hospital, para um outro hospital de suporte maior, porque senão ia não conseguir resistir. Aí eu fiquei desesperada, né? Que eu falei, poxa eu tenho um filho pequeno, eu tenho a minha vida, né? No momento eu só pensava com meus filhos que eu não queria morrer.”

Francisco adoeceu em fevereiro de 2021 e sua internação no sistema privado de saúde durou 12 dias, devido a sua gravidade precisou ser entubado. Nesse momento, apesar do medo, sentiu-se acolhido pela sua espiritualidade, que o encorajou  a enfrentar a situação crítica e os pensamentos em sua família, como ele compartilha: 

“Tem que ter fé, se não ela não vai sentir isso, eu achei muito importante eu ter fé. Eu aceitei aquele estágio que eu me encontrava de forma tranquila, eu conversei com dois amigos que tiveram a forma grave também que se recusaram terminantemente a serem intubados, que acharam que a intubação era o caminho da morte, eu fiquei muito tranquilo na hora, doutora, na hora que o médico disse que iria me entubar. Não tive receio da morte? Eu tenho receio da morte, porque eu tenho três filhas, eu quero ficar com as minhas filhas e a minha mulher, quero viver mais, mas se eu tivesse falecido, eu acho, teria muita saudade da minha família, mas eu acho que estaria num lugar muito bom também. Essa sensação da espiritualidade me deu uma calma assim, que eu eu não vejo em alguns relatos que recebi, entendeu?” 

 

Michael Douglas, hospitalizado no sistema público de saúde em junho de 2021, também traz em sua narrativa o aspecto da espiritualidade para enfrentar o medo de morrer. Ao lembrar de sua esposa, se sentiu fortalecido para enfrentar a doença. “Aí você vê... Como é a família, como ela é especial nesse momento porque eu acredito que foi Deus que me salvou, e disso não tenho dúvidas, estava com um quadro muito, mas muito debilitado. Mas antes de eu ser intubado, a minha última imagem na minha cabeça foi pensar: ‘Estou só com quatro anos de casado. Ela foi a mulher que eu sempre quis, uma mulher que eu sempre amei, a mulher que eu sempre desejei. Eu não posso morrer, eu não posso deixar ela’. E parece que aquilo me deu uma motivação para voltar: ‘Não vou morrer, não vou morrer, não vou morrer!’ ” E ele nos conta também o confronto do seu medo de morrer e com seus projetos e vontade de viver:

“Tive muito medo de morrer e eu realmente… eu acreditei que eu ia morrer, por mais que você tenha toda a perspectiva de: ‘Não, vou viver, vou sobreviver, vai dar certo’. Mas a partir do momento que chega toda uma equipe médica para falar: ‘Oh, a situação é muito complicada. A situação é grave e a gente vai ter que te intubar’. Toda aquela expectativa de estar em cima, cai. Você começa a ver que você realmente pode morrer. É… muitas vezes a sua, sua perspectiva de vida ali pode se acabar. Eu, com 26 anos então… não tenho filho, falei assim na minha cabeça: ‘Caraca mané, eu vou morrer e não vou deixar um fruto nessa terra, vou ser uma árvore infrutífera’ [risos]. Falei:  ‘Pô, não posso morrer, eu não posso morrer agora, eu não posso morrer, não vou!’. É muito projeto, sabe, a vontade de viver, a vontade de viajar.” 

 

Alcione, médico da linha de frente da covid-19, adoeceu em novembro de 2020 e permaneceu hospitalizado no Hospital Clementino Fraga Filho. Compartilha conosco sobre seu medo de morrer diante do conhecimento da gravidade do seu caso e dos riscos. Relembra que ficou preocupado pela sua irmã e também por refletir tudo o que não fez e poderia fazer:

“Eu senti medo de morrer durante uma parte do adoecimento que eu estava um pouco grave, eu senti medo da morte. Medo da morte pela questão das coisas que eu queria ter feito na vida e que não tinha feito ainda, preocupações, por exemplo, como eu falei, como eu pago a faculdade da minha irmã, então eu fiquei com muito medo de morrer, porque ela não ia ter como estudar, a mensalidade é muito cara e ela não teria como pagar. Por isso me deu medo, porque eu me coloquei um pouco no lugar dela. [...] E ia ser triste, eu pensando assim, pensando na questão dela continuar estudando ou não, se eu morresse ela não estudaria mais. E isso me deixava triste. Outras coisas que eu queria fazer também. Por exemplo, algumas coisas que eu gostaria de fazer, por exemplo, tirar férias e ficar alguns dias vivendo, fazendo coisas que as pessoas normais fazem. Eu falo pessoas normais, aquelas pessoas que não trabalham tanto. [...] A falta de tempo, de estar cansado, não conhecer mesmo, várias coisas que eu não fiz ainda e que eu tenho que fazer. Sonhos, coisas pessoais, satisfação pessoal, fazer doutorado e de fazer… planos de futuro que a gente sempre tem. E que eu não ia atingir, eu não ia saber como seriam aquelas emoções.”