3.2.5 Vivências do período de ventilação assistida

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Alguns pacientes internados na Unidade de Terapia Intensiva por covid-19 apresentam alterações respiratórias significativas, não sendo capazes de manter uma ventilação espontânea eficaz, necessitando, portanto, de aparelhos artificiais que assumam ou auxiliem nessa função. Os entrevistados compartilham narrativas que descrevem sua vivência ao longo desse período. 

Michael Douglas (junho de 2021), internado no sistema público de saúde, ficou entubado por 5 dias e nos conta sobre seu receio com a intubação: “Ninguém quer ser intubado porque você realmente tem, principalmente na época, eram os comentários: ‘se você intubar, você vai morrer’. A porcentagem de sobrevivência era muito pouca. E eu falei: ‘eu não posso entubar, não tem como eu entubar, não posso’. Então ficou aquele clima, aquela tensão: ‘Pô, cara, eu vou ser entubado, eu não vou sobreviver, eu vou morrer. E se eu morresse?’. Ele também comenta sobre seu retorno à consciência:

“E quando eu retornei foi um dos momentos mais felizes da minha vida porque com palavras eu não tenho como descrever, só sentindo, quem já passou sabe o que é você voltar. Fiquei cinco dias entubado. A sensação é muito interessante, eu quero ressaltar isso, é que a sensação é que parece que foi um sono da tarde. Foi algo muito rápido, mas foram cinco dias que eu fiquei entubado. Você perde total noção do tempo. [...] Voltei, grogue, muito debilitado ainda, mas com sentimento muito feliz, porque eu tinha sobrevivido. Fiquei muito contente, agradeci muito a Deus, na hora fizeram uma chamada com a minha esposa, aquela alegria toda.”  

 

Henrique (março de 2021) compartilhou sua experiência entubado: “Porque a maior parte do tempo eu nem tinha noção do que estava acontecendo. Mas a maior parte das alucinações foram sempre tentando fugir, tentando sair de lá e tendo algum problema. [...] Tiveram algumas alucinações em que eu achava que queriam me deixar preso lá para poder fazer experimentos, justamente com sedativos, drogas, para ver quais eram os efeitos. E em alguns momentos eu tinha a perspectiva de que não ia mais sair de lá e ia ficar preso”.

Após a intubação, Henrique foi traqueostomizado. Ele descreve com detalhes um momento muito marcante para ele:

“Eu tive a impressão e a impressão mesmo, não é nem que eu tenho dúvida não, mas a alucinação é diferente do sonho porque é tudo muito real, como se a gente tivesse conversando. É diferente do sonho, que é mais confuso. A alucinação é diferente e eu não sabia como é, é tudo muito lógico, naquele mundinho ali.  Então, eu achava que os médicos queriam que eu morresse, porque não podiam mais me liberar, porque já tinham feito muita coisa comigo, já estava sabendo de coisas demais. Então, eu estava perdendo fôlego e meio que eu pedi ajuda e ninguém me socorria, eu estava morrendo. Comecei a falar ‘eu vou desistir, eu vou descansar, não aguento mais’. [...] Eu me lembro disso, foi uma coisa que me marcou”. 

 

Outros pacientes relatam sobre experiências envolvendo seus familiares ao longo da ventilação assistida, como é o caso de Paula (junho de 2020), hospitalizada no sistema privado de saúde, que permaneceu consciente e lúcida ao longo do seu período entubada. Ela pensou que não sobrevivia ao seu adoecimento por covid-19 devido ao seu estado crítico, e ao saber que receberia a visita do seu marido, associou a morte: “Nos últimos três dias de intubação, já tinha me entregado mesmo, já tinha aceitado a morte. Foi quando essa enfermeira/assistente social pediu para o médico abrir exceção para meu marido me visitar na UTI, que era proibido. Aí eles mediaram porque ele já tinha tido COVID, ele é enfermeiro. E aí, eles toparam que ele entrasse. Mas para mim só funcionou, como atestando que realmente eu estava morrendo”.

Marcelo (abril de 2021), hospitalizado no sistema privado de saúde, no entanto, teve outra experiência no período de intubação. A visita do seu irmão gêmeo o acalmou e deu a possibilidade de extubação, como ele compartilha:

“Teve até essa situação lá que ele os médicos não estavam muito confortáveis com situação que eu encontrava pra tirar o tubo, não sei os detalhes e eles tavam querendo fazer uma traqueostomia em mim  e tavam pedindo a aprovação da minha esposa e do meu irmão pra eles fazerem o procedimento, falaram que tinha risco, eu não sei direito porque eu não conseguia desentubar, ficar tranquilo e tal. Daí teve até um dia lá que meu irmão falou: ‘não, eu vou dormir lá com ele e vou acalmar ele pra que ele consiga tirar o tubo e tal’. E aí, foi no dia exatamente que eu tirei o tubo, e foi até um vídeo que ele gravou começou a fazer carinho em mim. [...] É, fez carinho em mim: ‘cara, fica bem aí’. Tudo que ele passou ali comigo. Daí eu fiquei mais tranquilo, daí eles conseguiram tirar o tubo e assim, eu não vivenciei efetivamente foram eles e minha esposa. Eu como tenho meu irmão gêmeo, ele falou assim ‘não, deixa comigo’ e ela falou ‘acredito que vai dar tudo certo’.” 

 

Wellington, adoeceu em maio de 2020 e ficou hospitalizado por 28 dias no sistema privado de saúde. Durante sua intubação teve uma parada cardiorespiratória e relembra do momento em que teve a sensação de estar próximo de familiares falecidos, como seu avô e pai: 

“E em determinado momento um desses cochilos que eu dei, eu me lembro de ter visto assim, uma coisa toda rosa em alguns momentos da minha vida, um barulho muito forte de alguém batendo contra a porta, ‘tac, tac’. [...] E assim, isso vem a minha cabeça em alguns momentos, o meu pai já é falecido há mais de vinte anos, o meu avô, nesse momento, é como se eles tivessem aparecendo em flashes da minha vida, como eles estivessem ali, me chamando. E o barulho de uma porta batendo, alguém batendo numa porta e eu brigando para acordar, eu me lembro disso, entendeu? Se isso era efeito de remédio ou alguma coisa espiritual, eu não sei dizer, entendeu?" 

 

Os pacientes relataram agitação psicomotora ao longo da sua vivência no período de ventilação assistida. Em alguns momentos essa agitação acontecia na retirada da medicação, como Maria Verônica nos conta (abril de 2020): “no dia 11 de junho eu ainda estava sedada parece que estavam tentando tirar a sedação e eu tive uma reação forte e retirei tudo que tava no meu corpo, entrei em desespero.”

Julio, adoeceu março de 2021 no sistema privado de saúde e lembra do momento em que estava saindo da sedação e se extubou:

“Eu faço pós graduação em Psicologia Hospitalar e numa das matérias, num dos módulos era CTI, então toda vez que a professora falava sobre, eu dava meu pitaco do que eu passei, pedia licença a professora e acabava por concordar com tudo que ela passava, principalmente sobre o delírio, eu lembro de todos os delírios que eu tive. E aconteceu uma coisa curiosa para mim, que eu continuo afirmando que não fui eu, mas os médicos falaram que eu me extubei sozinho, eu puxei com o tubo com a minha própria mão [...] quando falaram isso para mim no CTI, que minha esposa me falou, que eu estava podendo receber visita, eu afirmei ‘não fui eu’, ‘não fui eu’, porque eu não me lembro disso mesmo. E eu continuo falando até hoje que não fui eu”. 

 

Miguel (abril de 2020) logo após a extubação também se apresenta agitado: “Após o tubo, ainda amarrado, ou seja, eu não estava ainda totalmente lúcido, mas eu lembro claramente o que eu falava: ‘socorro, socorro, socorro. Desce, é só descer, estou aqui em frente pode…’. E eu falava o nome dela porque a voz era dela. E algumas vezes eu falava o nome da minha esposa porque eu ouvia a voz da minha esposa e de tanto escândalo que eu fazia. Eu tinha certeza que incomodei muito. [...] Isso aconteceu acho que 2 vezes nesse período, depois não, depois que eu melhorei e que eu fiquei mais consciente não aconteceu mais, lógico”.

Nelson (maio de 2020), hospitalizado no sistema público de saúde compartilha: “me amarram lá na quina da cama, porque eu estava me batendo, dizendo eles que eu estava me batendo muito, mas essas coisas que eu estava vendo, eu via muita coisa lá no meu delírio lá, não sei se era delírio mas eu via as pessoas que já partiram, pessoas, a mãe de amiga minha que trabalha comigo, já aposentou e a mãe dela já faleceu e eu falava com ela lá”.

Os pacientes muitas vezes não sabiam distinguir se a vivência durante o período de ventilação assistida era real ou um “delírio”. Jorge (abril de 2020), permaneceu internado no sistema público de saúde e relembra: 

“É uma coisa inexplicável não sei te dizer se foi da minha cabeça, se foi verdadeiro, entendeu? Mas eu escutava isso, gente morrendo, pedindo a Deus pra não morrer, pra que não morresse. Teve até uma senhora que eu me lembro muito bem que ela falava assim: ‘meu Deus, deixa eu voltar pra casa que eu quero pedir perdão pra minha mãe, que eu não quero morrer de mal com a minha mãe’. Então, é uma coisa… [...] Profundo. Muito marcante. Parece que eu tô revivendo esse dia, marcante mesmo.” 

 

Ademir (abril de 2020), compartilha o sonho sobre a sua morte: “Sonhei com a morte, que tava todo mundo reunido lá, e eu assim tenho uns sonhos... Eu acho que eu estava tendo quando eu estava entubado, mas tiveram muitos sonhos depois. Então eu não consigo… depois que eu saí da intubação. Então eu não consigo distinguir quando foi e quando não foi. [...] O mais marcante foi o da minha morte. De fato, eu não cheguei a morrer, mas tava todo mundo reunido, família toda e amigos, ali no Fundão mesmo, do lado de fora.” Janilda (maio de 2020), compartilha sobre seu sonho relacionado à morte. Diferente do  entrevistado Ademir, seu sonho foi com um familiar: “Teve um sonho que eu tive, que eu estava recebendo uma homenagem aqui na universidade e a minha sobrinha vinha, sentava assim e eu perguntava: ‘cadê a sua mãe?'. No sonho, dentro do CTI. E ela abaixava a cabeça e chorava. Eu na minha cabeça eu falava: ‘Sua mãe, eu acho que morreu de COVID-19’. Eu achava no sonho, dentro do CTI. Depois eu lembrei disso aí. Depois, eu fiquei sabendo que no período em que internei, a mãe dela realmente teve COVID-19 e ficou internada, mas não faleceu, graças a Deus não”. Ambos foram hospitalizados no sistema público de saúde. 

Fabricio adoeceu em setembro de 2020 e permaneceu hospitalizado no sistema público de saúde. Ele compartilha lembranças do período inconsciente: 

“Lembro que eu tinha sonhos, pesadelos, umas coisas estranhas durante o processo do coma. São coisas muito estranhas, não normais, pelo menos para mim, não [...]. Visões. Visões infernais. Coisas muito estranhas. Você via as pessoas.. eu via as enfermeiras como se fossem máquinas programadas para poder estar todo tempo tratando de salvar nossa vida, eles faziam rotinas repetidas, repetindo muitas falas do que iam fazer no processo. [...].  “É algo, sei lá, estranho né? E eu me sentia pequeno, teve um momento que eu sentia como se eu tivesse só da cintura para baixo… perdão, da cintura para cima, cintura pra cima e não tinha meus membros tanto inferior quanto superior. É como se eu tivesse tido, sei lá.”

Ele se lembra do período anterior à intubação e associa:“De repente associei com um filme que eu vi com uma pessoa que fazia o filme em relação ao que ele não tinha partes dos membros e estava dentro de uma máquina que ele tentava descobrir um assassino que explodiu um trem inteiro. De repente pode ter sido isso”.