4.3 Repercussões emocionais (autopercepção, autoestima, identidade etc.)

Temas

Os impactos psicológicos resultantes da experiência de ter sobrevivido a um quadro de COVID-19 grave são muito variados e apareceram relacionados: às vivências traumáticas durante a internação, à iminência e a proximidade da morte, ao isolamento do convívio familiar e às sequelas deixadas pelo vírus. A forma como essas experiências são conotadas pelos pacientes também não é uniforme. Alguns salientam aspectos positivos da experiência, tais como a oportunidade de re-significar aspectos existenciais; enquanto outros reportam apenas aspectos psicológicos desagradáveis suscitados pela experiência de adoecimento e convivência com as sequelas da doença.

Dentre as reações emocionais reportadas pelos pacientes compareceram nas falas, o medo, a ansiedade, a depressão, o luto, o pânico, o desespero, a insegurança, a estranheza, o choro, a baixa autoestima, e o sofrimento pelas memórias do internamento. 

"A gente tem aquele medo da finitude, da morte na fase aguda da doença, mas na fase crônica da reabilitação do pós-COVID-19 existe o medo também de ficar com sequelas, de não se recuperar, existia também esse receio. Esse aspecto também do não trabalhar, do não receber, pra quem é autônomo como a gente, também teve um peso grande na questão psicológica e em tudo isso." (Alexandre)

 

"Mas a equipe na época, eles me falaram de todas as causas que eu tive pós-COVID-19, que a coordenação motora estava muito intensa, que eu ia fazer fisioterapia durante um bom tempo mas não, não garantiu que eu iria voltar a ficar 100%. Só que na época eu fiquei muito abalado com aquilo, porque sou uma pessoa muito ágil, moro sozinho, preciso cuidar das minhas coisas, não encaixava aquilo na minha cabeça.  Eu fiquei um pouco mal, a cabeça, quis entrar em depressão também, elas [as irmãs] que me ajudaram muito, né? Então eu tinha aquele limite que achei que eu tinha que ultrapassar, aquilo tudo que a equipe tinha falado."  (Reneé do SUS)

 

"Você paga um preço alto emocional. Eu acho que o COVID tem uma conotação emocional muito grande porque ele chega e se alastra. Eu nunca imaginei que eu fosse sair do hospital e ficar vivendo sintomas seguidamente. Vai fazer dois meses que eu tenho sintomas ainda, entendeu? Eu não imaginei que eu fosse ter isso. Eu achei que eu fosse sair do hospital boa, e voltar e em uma semana tá tudo normal, e não foi assim. Eu tô há dois meses, e tudo dando certo, veja bem, nada tá dando errado, mas eu tenho que estar atenta o tempo todo, eu estou lidando com essa situação o tempo todo.

Você teve medo?

Sim, com certeza, medo, sobretudo no Samaritano eu tinha medo, na primeira semana de hospitalização porque eu não tinha confiança do local, estava muito estranho tudo e em casa eu tive muito, muito medo, quando começou a ficar muito ruim, aí vai dando medo. Mas eu acho que medo, revolta e se sentir mal, que é uma coisa horrível. E essa revolta emocional, eu acho que me custou também, você tem que dedicar tempo a ela, pensar, reconhecer que existe, não é assim uma coisa que você tira de letra, “ah mamãe, esquece isso”, não é questão de esquecer, não adianta também você fingir que esqueceu, só pode esquecer se tiver esquecido mesmo." (Ana Cristina)

 

"Eu tive os meus choros, o meu luto, que não era porque mamãe morreu. As pessoas não entendem, é porque minha mãe morreu, sem eu dar a mão para ela, mesmo que como os outros estavam fora. Quer dizer o meu irmão não é que está fora, que ele opta por não estar por perto mesmo, há décadas, mas minha irmã longe, meu filho longe, meu sobrinho longe, minha sobrinha longe, quem ficava com ela e ela deu para me esperar muito, no hospital durante a sua internação mais longa que foi a última. E eu estava sempre esperando que ela pudesse complicar e ir embora, mas eu estava sempre lá, estava sempre lá dando a mão a ela. E a partir do momento em que eu não pude mais entrar na UTI quando ela acusou e logo depois, eu acusei, acabou, eu não cheguei mais perto dela. E aí, tudo isso aconteceu com ela por um longo período que era início de dezembro e ela faleceu em 30 de dezembro. Então que eu pensava assim, na hora de aflição dela de querer que eu estivesse com ela." (Elisa)

 

"E aí, quando eu cheguei em casa, não parecia a minha casa, também não queria ficar aqui, parecia que a minha casa era o hospital. E eu ficava, "aqui eu não estou segura", na minha cabeça, sabe? "Se eu passar mal?", "aqui não tem máquinas de ressuscitar, aqui não tem respirador". Então, eu não conseguia deitar, deitava com um travesseiro na cama, não deitava. Eram vários travesseiros, para ficar naquela posição, daquela maca do hospital que fica mais inclinada. Eu fiquei uma semana na mesma postura que estava no hospital. Aí, quando eu consegui deitar com um travesseiro, foi uma vitória, e quando entravam no meu quarto, sentia muita falta de ar. Precisava de ambiente, assim que eu me sentisse mais aberta, não podia ter parede muito perto de mim porque aí era uma questão da ansiedade, parecia que eu ia morrer sufocada. Então, foi um processo difícil também de pensar, porque eu pedi para sair, porque eu não estou no hospital. Devia voltar, mas agora tô com vergonha de pedir para voltar para o hospital. Eu ficava toda hora no oxímetro, toda a hora vendo. Eu não acreditava que estava bem e assim mesmo, em casa, precisava de muita ajuda para ir ao banheiro. Continuava muito fraca para andar. Quando eu comi a primeira vez assim, em casa que não foi a comida do hospital, parecia que tinha sido uma bomba, mesmo sendo uma comida que foi feita já, comida leve, então era tudo muito estranho. Parecia que aqui não era meu mundo mais. Eu ficava me questionando muito assim: "não era para estar aqui, mas não aqui em casa". "Não era para eu estar viva. O que aconteceu que eu estou viva? Era o que todo mundo esperava?"  (Paula)

 

"A insegurança, isso é uma coisa, é uma sequela, que eu fiquei com certos pânicos. A primeira vez que eu saí, que eu lutava contra isso, eu saí de casa, a primeira vez que eu saí de casa sozinho, foi uma luta muito, muito grande. Eu cheguei a ir no dentista só pra poder sentar numa cadeira com alguém próximo, eu fui só na estação, um negócio de um quilômetro e meio. Eu tive vários momentos de pânico, de desespero mesmo. Outra pessoa, outra pessoa, uma pessoa totalmente mudada e praticamente em todos os aspectos, a forma de como eu vejo a vida, eu vejo de uma outra forma, eu acredito que seja uma maneira muito positiva, sabe? Eu vejo, não vejo a vida como uma coisa negativa, tudo pode ser negativo, eu transformo ela em algo positivo, seja qual for a situação, sabe. Eu transformo ela em coisa positiva, pode ser o que for. Vou te dar um exemplo bem, até engraçado, eu dei uma topada, eu chutei a parede, eu escorreguei, chutei a parede, ao ponto da minha unha do dedão do pé ficar preta de sangue pisado. Eu, ao invés de falar um palavrão, eu agradeci a Deus porque eu tinha o dedo, que tem pessoas que queriam tá sentindo aquela dor e não tinham o pé, o dedo, o pé, a perna, e eu tava agradecendo a Deus porque eu podia tá sentindo aquela dor. Então foram coisas que foram acontecendo que me surpreendia, porque eu nunca tive esse pensamento e foi isso, foi foi brotando esse de como você enxerga a vida, como você, eu nasci de novo, né? Eu nasci de novo. Então, você tem uma perspectiva, ou você escolhe viver bem ou não. E eu fiz a opção de ter uma qualidade de vida melhor, de aproveitar esse tempo que eu tenho, que Deus me proporciona ou seja lá qual for, todo dia eu vivo intensamente, porque eu não sei o dia de amanhã. Eu vejo a vida como um sopro."  (Roberto Piedade do SUS)

 

"Por incrível que pareça, teve assim, nos estudos eu não conseguia me concentrar muito. Alguns gatilhos que desencadeavam as crises de ansiedade, era porque na época que eu tive ainda passava muita reportagem. Então, quando eu escutava o barulho de CTI começava a querer vir a crise, aí eu conseguia, por também já auxiliar tantas pessoas com crises de ansiedade. Eu conseguia mediar um pouco e fazer uma auto-controle ao mesmo tempo que ela vinha, eu controlava a respiração e ia abaixando, esses pontos foram os mais negativos, que consegui controlar mais. Comecei a fazer terapia, muito medo de ir para a rua. Parecia assim, olha, você ganhou uma chance de estar viva. Então era como se eu colocasse a pé na rua, e eu tivesse desdenhando do que eu passei. Então era como se eu não tivesse... estou viva, mas não posso viver. Eu tô viva, mas eu não posso ir ali na esquina, que eu tô correndo perigo de voltar pro hospital, de ser infectada de novo, porque não tinha vacina. Não tinha previsão de quando sairia a vacina, então tinha muito medo, esse medo perdurou um bom tempo."  (Paula)

 

"Depois disso eu fiquei com um pouco de crise de ansiedade, sabe? Eu até achava besteira, mas vira e mexe às vezes eu tenho, mas eu acho que tudo isso está ligado ao que eu senti ali, entendeu, porque eu era uma pessoa assim, "não, tudo dá certo", depressão essas coisas não existe. Eu sempre fui assim. Mas depois do covid, é, é diferente, eu sou diferente com isso, entendeu. A parte psicológica para mim me afetou mais do que qualquer outra coisa. [...] Essas crises de ansiedade que hoje em dia eu tenho, eu consigo controlar, tá? É bem pouco, é bem pouco, mas eu tenho, coisa que eu não tinha, e tive no covid e depois disso comecei a ter, entendeu. É esse lance de pensamento de morrer, de deixar o Theo, não quero doença. Pânico de hospital não quero mais hospital nem a pau, assim. Agora todo mundo tem covid de novo. Eu fiquei muito mal, fiquei bem mal de sinusite. O que eu fiz? Eu já comprei um antibiótico que eles me deram lá no hospital. Eu sou dentista, consigo comprar e já tomei. Não sabia nem se era para tomar ou não, mas eu já tomei com medo de ter que voltar ao hospital." (Maria Claudia)

 

"No começo, quando eu voltei para casa, estava muito desnorteado. Eu não era eu, não era eu, não era eu. Eu não era o mesmo. Eu estava chorando, não sou de chorar, sim, você viu, eu chorei aqui, eu… cara, eu sinto… Andreza sabe,  pouquíssimas vezes eu chorei na frente dela, pouquíssimas, eu não gosto. Eu não acho que é bom um homem demonstrar fraqueza. Eu não gosto, não gosto. Mas depois da COVID-19 eu percebi que a gente não é nada, a gente não… a gente é realmente, absolutamente nada. A gente não pode ficar escondendo os nossos sentimentos. Então, o que a gente sentir tem que colocar para fora. Então eu realmente… no começo eu fiquei na casa de um amigo meu, que foi o Adam, e ele falou assim… ele não falou para mim diretamente, mas eu escutava: "Pô, Michael não é mesmo, não é mais o mesmo. Não está bem, ele não está legal. Ele não está bem, ele não é ele". Porque quem me conhece sabe que eu sempre fui muito de brincar, sempre fui de zoar sempre: "Pô, vamos fazer?"; "Vamos! É isso? Vamos!", beleza. Mas ele falou: "Cara, não é ele", porque sabe… eu também nem sei tentar descrever como eu estava, sei lá, parecia que eu estava em outro mundo." (Michael Douglas do SUS)

 

“Muito, muito. Primeiro, eu perdi os cabelos [risos], porque cai muito, cai aos bolos. E fora que, como eu fiquei na UTI deitada, ele embolou muito. Então, acabei perdendo os cabelos. Pra mim isso foi horrível, porque eu sempre tive cabelos longos. Está sendo uma experiência de autoestima... que eu busco a minha autoestima, que eu perdi. Realmente, eu perdi por falta do cabelo, por falta de tantas coisas que eu vivi. Assim, a autoestima foi lá pra baixo.”  (Renata)

 

“o que eu passei eu contei, muito sofrimento, e também vi muito sofrimento de família lá e assim de uma hora pra outra perder um ente querido, perder o marido. As ligações que os vizinhos de cama faziam pra família, as ligações que os médicos faziam pra outras famílias dizendo que aquela pessoa que tava internada tinha falecido, é um negócio muito triste, fica na nossa cabeça não saí não. A gente fica com sequela porque aquilo não sai, principalmente eu que tenho problema de depressão então, é muito grave, é muito sério. Eu que já tentei tirar minha vida umas duas vezes, é um negócio muito sério.” (Angela)

 

O fato de terem sobrevivido a um quadro de covid grave após permanecer um longo período de internação e ter tido uma grande intimidade com a morte fez com que essa superação fosse significada como uma segunda chance de viver, o que foi muito valorizada pelos pacientes como algo não pode ser desperdiçado.

"E psicologicamente, vira e mexe a gente passa a olhar a vida de uma maneira um pouco diferente, a sensação que eu tenho é de que tudo que ta acontecendo aqui comigo seja da esfera profissional, pessoal, enfim, a partir do momento em que eu saí do hospital, poderia não estar acontecendo se eu tivesse morrido, então a gente começa a encarar como uma outra oportunidade, realmente de viver e realmente você dá muito valor a outras coisas, não que não desse antes mas você não para pra pensar, né? Que você não poderia estar, sei lá, sentado lá, jantando com a sua família e agora você para pra pensar que você poderia não estar, entendeu? Então, mudou um pouco a minha forma de encarar um pouco as coisas, essa foi a maior mudança que tive psicologicamente, a forma de encarar a vida mesmo. O principal impacto positivo que causou pra mim foi que na minha história eu sempre fui ativo, eu era fisicamente ativo até os meus vinte pouquinhos anos, eu praticava muita atividade física, eu tinha um condicionamento bom. Desde então, o trabalho, a quantidade de trabalho, a lesão no joelho, eu me tornei uma pessoa sedentária, então sei lá, nos últimos 15, 20 anos, eu estava completamente sedentário e isso me desenvolveu uma diabetes, desenvolveram outros problemas de saúde mais leves, que acabou que com a covid, essa necessidade da reabilitação física me fez com que eu engrenasse novamente uma rotina de atividades física que eu não tinha há 20 anos. Então, muito embora eu não me sinta 100% recuperado hoje, eu já me sinto melhor fisicamente do que eu me sentia antes da covid. É, então assim, hoje eu já me sinto mais preparado para uma atividade física seja ela qual for do que eu me sentia antes. Naturalmente eu tenho algumas limitações ainda, porque eu perdi muita massa, mas tenho certeza que já estava muito fraco fisicamente antes da internação. Então hoje eu acho que to mais forte do que eu tava, embora, eu ainda acho que tenho que melhorar com certeza. Então foi um aspecto positivo. O principal impacto positivo que eu tive, né? Agora negativamente, eu acho que na recuperação, assim muito medo, né? Acho que eu tinha muito medo de não conseguir voltar a minha rotina, eu tinha muito medo de não conseguir voltar a trabalhar, de não conseguir voltar a andar, de não conseguir, sei lá, me virar na cama porque eu não conseguia fazer isso no começo, você tem muitos medos que são medos básicos, medo de não conseguir mais viver normal, de viver em uma cadeira de roda para o resto da vida, depois que passa essa fase você começa a ver que vai recuperar. E assim, quando você começa a ficar em pé e começa a dar 3, 4 passos, você vê que é questão de tempo que você vai ganhar a força suficiente para se recuperar. E intelectualmente, eu não tive esse problema muito não, eu tinha consciência que mesmo na cama do hospital, eu já estava trabalhando, eu sempre tive consciência de que se eu fosse conseguir manter essa atividade de trabalho, porque ela é basicamente intelectual, não depende de força física para nada. Então, eu não tinha essa preocupação, minha preocupação sempre foi de locomoção física, isso me incomodou muito mais assim, depois de 1 mês de recuperação eu tive a certeza de que algum momento eu estaria recuperado, não sei se eu te respondi o você perguntou." (Wellington)

 

"A coisa emocional, Vitória, isso deve acontecer com todo mundo, né? A gente reza muito na hora que você está lá, querendo mais 5 minutos, 5 minutos fazem uma diferença que você não tem ideia, desde que sejam 5 minutos junto com todas aquelas pessoas que passam pela sua cabeça numa fração de segundo, isso te ajuda muito a ter força para sair de lá. E aí, quando você sai, essa questão “da nova oportunidade”, por mais que a gente tenha, no meu caso, trabalhado a vida inteira com pessoas, a gente vê assim, o quanto cada um de nós ainda pode fazer mais por pessoas. E aí, eu vou te dizer que eu acho que quase enlouqueci, nesse sentido de que eu não paro de pensar o que eu posso junto com as pessoas que trabalham comigo, junto com a minha família, junto com os amigos, o que eu posso fazer ainda para ajudar outras pessoas. Isso passou a ter uma importância ainda muito maior do que já tinha na minha vida, eu acho que emocionalmente essa experiência me trouxe o grau exato do valor da relação com as pessoas." (Miguel)

 

"Passei a encarar a vida um pouco diferente, eu já não tenho tanta preocupação com as coisas. É interessante porque, sinceramente, como é que eu vou falar? Eu no dia 13 eu estava vivo. Vivo com a vida, com as coisas, tudo daqui, sei lá, passaram-se uns 20 dias, mais ou menos eu acordo e naquele lapso de tempo, não tinha acontecido nada, como se eu tivesse morrido. Aí você vê que, às vezes, algumas coisas que se dá muito valor não são tão valiosas assim. E eu passei a valorizar muito mais a minha família, de importar muito mais com os meus pais, com a minha irmã, a minha esposa, meus filhos, sempre importaram, mas você valoriza ainda mais, tem mais cuidado, mais carinho e quer fazer mais coisa por eles, estar mais tempo perto. Acho que as mudanças maiores foram essas. E, espiritualmente, a força minha não sei se aumentou, mas ela não enfraqueceu. Ela permaneceu estável. Eu não tenho nenhum sentimento de culpar Deus ou de perguntar porque isso, não. Isso eu tenho muito tranquilo na minha vida, eu queria mais é usar isso ainda mais para poder dar força para outras pessoas em todos os sentidos. Por isso que eu achei legal essa entrevista, poder fazer essa entrevista e tudo, que é para fortalecer outras pessoas, ajudar a encarar a vida, não ter medo da vida, encarar de frente. Foram essas coisas que mudaram, sabe?" (Henrique)

 

"Eu tive uma oportunidade de uma nova vida, de viver novamente e só emergindo…. me ajuda em alguns aspectos da minha vida e ajudou a perceber coisas que eu não percebia, a ter uma certa preocupação com coisas que às vezes passavam despercebidas, de fazer algumas coisas, de ter ações. É coisa de questão de ajudas, de a gente contribuir e tal. Algumas coisas que não fazia e hoje eu faço. Comecei a fazer coisas que eu não fazia antes e usar o tempo que tenho livre para fazer coisas que não fazia e que tinha vontade de fazer. Comecei a valorizar mais o tempo e fazer coisas, visitar lugares, coisas que me trazem assim, algo legal e que acrescente para mim. Então eu faço alguns passeios, às vezes eu vou no teatro, cinema, coisa que às vezes ficava cansado e ficava: "ah, eu vou dormir, vou ficar em casa, vou ver televisão". E o tempo ia passando, meus dias ia passando e eu não fazia determinadas coisas. E hoje em dia eu tento, por exemplo, na minha folga, sair para a praia ou fazer algum passeio. E hoje em dia eu tento fazer muito isso. Tomar café em algum lugar diferente e coisas que distraiam sua mente, aproveitar cada segundo." (Alcione do SUS)

 

Houve vários relatos que apontaram aspectos positivos da experiência de sobrevivência após o adoecimento e internação por covid-19, sobretudo salientando a valorização da vida, das relações interpessoais, fortalecimento do altruísmo, da oportunidade de aprendizado, a satisfação pela superação, e a recuperação do bem-estar emocional.

"A nossa pequena família está reunida novamente né, e eu acho que isso nos ajudou a restabelecer a nós mesmo, emocionalmente, isso acaba trazendo também algumas mudanças dentro de nós, uma apreciação maior de um ao outro, a consideração, a gratidão a Deus, a gratidão um ao outro, o desejo de agradar um ao outro, isso traz depois um resultado de uma união, de uma graça de Deus sobre nós para uma vida mais juntas, né? Então, a gente usou isso aí pra tratar nossa emoção, né? Porque, olha, emocionalmente, eu fico pensando na pessoa que está só ou que não tenha essa compreensão em Deus e em nós mesmo. Nós podemos encontrar esse apoio, a pessoa realmente fica muito perdida, porque além do vírus que vai destruindo seu corpo te dando aquela consciência que você está morrendo porque a covid nos dá essa consciência."  (Margareth)

 

"Afetou assim, para o bem, no sentido de que claro, a gente faz planos, projetos, mais de viver o presente, na época que eu peguei a COVID, eu pensava no amanhã, sabe? Estava muito assim. Então esse aspecto fez eu voltar. Então, quando me vejo, porque já tem um ano e pouco que eu peguei, quando eu me vejo fazendo esse movimento de novo, eu consigo voltar, preciso viver hoje, não sei como vai ser amanhã. Eu planejo, está tudo certinho, mas eu preciso também experienciar esse hoje, porque pode ser o último dia, igual eu pensava no hospital, foi o último dia que vi minha filha e eu não me despedi direito, então fica muito isso."  (Paula)

 

"Eu me considero assim, uma pessoa muito justa, sempre fui, hoje eu sou melhor, hoje eu sou uma pessoa, com certeza, eu sou bem melhor. Porque quem me conhece, assim, sabe que eu tenho o coração muito bom, eu me dou [silêncio]. Eu falo sempre assim: ‘eu vim da roça e cheguei onde cheguei’, quando cheguei a lugar nenhum, eu sempre falo, mas eu sou uma pessoa muito assim que vejo o outro lado. E depois da covid também, eu consigo ajudar mais, sabe? Eu me preocupo mais... se alguém, eu já tive... depois que eu saí do hospital que eu fiquei boa, eu tive... tive amigos meus, pessoas que tiveram covid eu fui visitar de longe ajudei... com alimentos, eu conversei procurei conversar e compreender, porque eu me senti, eu precisei muito disso e eu não tive, de pessoas que compreendesse que conversasse comigo sem me culpar, eu falo assim mais da minha família que me culpou, mas assim... pessoas sem averiguar, sem querer saber, mas assim ir ali, sabe? Eu procurei fazer isso, ouvir, porque você sabe que você só não pode tar perto da pessoa, mas você pode estar distante conversando de máscara, eu fiz isso, eu visitei alguns amigos, fui de longe, fiquei, eles em casa da janela e eu de longe conversando embaixo, fiz comida, levei, botei na porta, sabe? Então assim eu me considero hoje uma pessoa bem melhor, bem melhor e assim... só aprendendo, tudo é uma lição de vida, eu quero aprender mais, quero ajudar mais e estou aqui aberta pra tudo. (Rosana Karina)

 

"Acho que essa experiência é uma experiência que realmente, no meu caso, mudou muita coisa no meu modo de pensar e de ver a vida, porque a gente tem muitos planos, mas hoje eu valorizo muito mais as relações e o viver o momento. Porque às vezes a gente fica preocupado, Vitória, em ter, em conquistar, em realizar as coisas materiais, e isso às vezes foge do teu controle e você sai muito do teu espaço-tempo do hoje, da sua experiência do hoje para viver o futuro. Isso é de uma certa forma ansiedade, e isso era muito ruim e eu não conseguia ver isso, sabe? Então, hoje, por exemplo, eu estou percebendo. Eu curti todos os meus filhos, todos deles, mas esse menorzinho, pequenininho, curtindo muito mais agora, sabe.  [...] É, a vontade de viver o hoje, de ficar. Porque quando eu voltei pra casa, que eu deitei na minha cama, mesmo ainda debilitado, e os meus filhos vieram me abraçar… Esse que veio aqui, o Emanuel, ele, para você ver, ele só vai ao banheiro comigo. Hoje eu falei: “Filho, pede a vovó para levar você ao banheirinho”, ele: “Não, papai, vovó é chato, papai é fofinho”. Ele é muito agarrado. Então, quando eu tive a oportunidade de abraçar os meus filhos e abraçar minha mulher, eu agradeci a Deus que eu tive uma nova oportunidade. Então hoje o que a gente vai conquistar de um lado do material, por exemplo, tem que ser se vier veio, se não vier eu não vou abdicar, por exemplo, de ficar com os meus filhos, porque eu tenho que fazer um dinheirinho a mais. Porque isso não adianta. Você morre e você deixa de viver. Então eu passei a dar mais valor às pessoas, às relações, do que as coisas materiais. Muito embora não fosse, eu nunca fui, não sou uma pessoa materialista. Mas eu acho que isso é muito também de uma herança patriarcal que a gente tem numa sociedade que ainda é machista, que o homem tem que ser o provedor e que a gente tem que ter. Então, eu sempre fiquei muito preocupado, assim: eu tenho três filhos. Então eu tenho que planejar com a minha esposa a educação deles, que é importante. Mas eu quero planejar também minha filha, dizia isso, que eu quero. E quando eu morrer quero pelo menos deixar um filho com cada apartamento. Beleza, se eu conseguir, maravilha. Mas eu quero deixar para eles muito mais do que isso hoje eu quero deixar um legado de amor, de atenção, de carinho, de respeito, de cumplicidade, porque não adianta eu conquistar tudo isso e deixar só pra eles um imóvel, porque eles vão “Ah beleza. Meu pai deixou para mim e daí?”. Não vão nem sentir falta de mim, porque eu fui tão ausente, que eu não tive aquele laço. Não é que eu não fosse, mas não é que eu nunca fui ausente, mas às vezes eu acho que a gente fica focado em ter e o importante não é ter é ser. O importante é ser e eu acho que para a gente ser feliz, a gente não precisa ter, a gente precisa ser. Felicidade é um estado de espírito. Então, hoje eu valorizo mais o meu bem estar emocional. Eu me desprendi de coisas e vou te dizer, tirar essa ansiedade de mim foi libertador porque eu percebi que as coisas chegam, tudo que tem que vir a nossa mão vem. Não preciso ficar tão preocupado. E se não chegar é que não era para ser. Então isso pra mim foi libertador. Eu estou vivendo isso com a minha família já tenho um ano. Mudei alimentação, voltei a fazer exercício, perdi sete quilos. Enfim, estou muito bem."  (Eduardo)

 

"Serviu para mim aprender muito, muito, muito sobre o que é viver, dar mais valor à vida. Antes não dava tanta importância assim coisas pequenas, hoje pequenos detalhes tocam a nossa vida. Tipo, antes eu dava muita importância ao trabalho, essas coisas e não dava muitas importância,  nesse processo todo eu fiquei quatro anos sem ver minhas filhas, praticamente porque minhas filhas moram em Campinas, no estado de São Paulo, e fiz uma urgência esse ano já que estava mais tranquilo de ver elas. E passei dias maravilhosos com elas. Então, pra mim serviu de lição, de aprendizado muito bom. Uma experiência que não quero viver novamente, mas foi boa no aspecto de melhorar como pessoa, como ser humano."  (Fabrício Queiroz do SUS)

 

A ressignificação da vida após a sobrevivência também foi um exercício de reflexão existencial que muitos pacientes empreenderam. Os relatos mostram valorização de pequenas coisas do cotidiano, bem como questionamento acerca da primazia da importância das relações interpessoais em detrimento do apego ao materialismo. 

"Quando eu cheguei no quarto e tinha essas sei lá, centenas de mensagens, tinha essas pessoas que fizeram a diferença. Eu agradeci um por um, sabe, das pessoas que perderam pais, filhos, eu falei com cada um delas. Eu tenho um canal no Instagram e assim, é isso, eu respondi muita gente, e aí, eu saí e já estava lá, “seu visto para Portugal foi aprovado”. Há três anos eu queria vir para cá e eu precisei quase morrer para estar aqui. E eu tinha dois meses para vender tudo da minha casa no Leblon, para trazer o meu cachorro para vir para cá. E aí, e o fim, moral da história. Eu estou mais intolerante com pessoas que não agregam. Cada vez mais eu quero trabalhar menos. A vida é um sopro, a gente valoriza muita merda. A gente é muito idiota, a vida é um sopro."  (Augusto)

 

"Mas eu acho que isso me deu muito mais forças, muito mais... é, valorizar muito mais as pequenas coisas, sabe? Quando eu tomar um banho, tomar banho, ir ao banheiro, sabe? Sentar para comer, encontrar o outro. Assim, é mínimo, mas eu queria era uma palavra, ver o pipoqueiro, sabe? Teve um dia que eu pensei: "nossa que vontade de escrever um bilhete para o pipoqueiro lá embaixo!" (risos). Eu dava valor a isso! É engraçado, né? Porque assim eu estava feliz por tomar um banho! Felicidade de tomar banho. Nossa, que legal, poder ir ao banheiro. Que legal, bacana! Voltar daqui pra lá: e agora que horas eu vou tomar banho de novo? Então, assim: dar valor às pequenas coisas, às refeições e esperar o tempo."  (Glauciane)

 

"Deixa eu contar uma coisa, quando eu voltei a trabalhar, foi a melhor coisa do mundo. Porque aquilo ali me fortaleceu muito mentalmente, psicologicamente, e eu acho que eu voltei com mais prazer de trabalhar. (emociona-se). E também, nesse tempo todo, depois de voltar... Eu sempre me sentia uma pessoa privilegiada de ter muitos amigos, as pessoas sempre quando conversavam comigo me exaltavam, ou alguma coisa parecida, ou me engrandecer por isso, eu levava pro meu… era bom pro ego, e eu achava que tinha que ser assim mesmo. E hoje em dia mais ainda. As pessoas quando falam comigo, logo no início algumas das minhas primeiras falas, a primeira coisa que a pessoa vai falar: “pô, que bom falar contigo. Sabia que você ia voltar, eu sabia que não sei o que… fico feliz de tá conversando contigo, muito feliz.” Falavam assim: “muito feliz de estar conversando com você.”  (Ademir do SUS)

 

"Eu sou outra pessoa, né? Eu passei por um período de de morte e de proximidade com a morte, né, pra voltar pra vida. Eu nunca, nunca tinha feito, eu não gostava de academia, não. Então agora, eu faço atividade física. Eu comia qualquer coisa, de qualquer jeito. Eu, hoje em dia, continuo comendo muito, mas não é como antigamente, não é assim de forma desregrada. Eu comi uma feijoada hoje, amanhã eu fico 15 dias sem comer uma feijoada, né, não como mocotó depois da feijoada. Eu vou  controlando o meu organismo, né, não como comida pesada direto, todo dia comendo comida pesada, não como muita, muito enlatado, muito enlatado quase toda a minha vida. Então mudou muita coisa também. E assim eu valorizo muito mais as minhas amizades, né? Porque? Porque eu quase fui embora. Então, hoje eu valorizo as amizades, valorizo as pessoas, o convívio, tudo isso hoje em dia, isso é que mudou. O tempo hoje é curto pra você, pra você preencher toda aquela lacuna de estar com os amigos, de estar com família, de estar próximo das pessoas que, que, que, que a gente tem um relacionamento de amor, de convivência. Então, o dia acaba ficando curto. A gente não consegue preencher esse vazio."  (Sérgio do SUS)