Protocolos, prescrições e demandas por medicamentos

Temas: APS

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Protocolos, prescrições e demandas por medicamentos

Inúmeros foram os protocolos produzidos ao longo dos anos da pandemia covid-19 com intuito de orientar os profissionais de saúde em diversas esferas como medidas de proteção, diagnóstico e tratamento. O tópico tratamento foi pauta extremamente controversa com várias propostas de abordagens terapêuticas principalmente na fase inicial da pandemia, momento em que se carecia de evidências científicas pela escassez de pesquisas. No Brasil, houve ainda grande influência do cenário político nacional, com comportamento negacionista do chefe do poder executivo e inúmeras declarações sugerindo o uso de medicamentos sem comprovação de eficácia contra o SARS-CoV-2, como hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina entre outros. O Ministério da Saúde passou por quatro diferentes comandantes no primeiro ano da pandemia e a rotatividade à frente da pasta refletiu nas publicações aos profissionais. Com a evidente participação política no que deveriam ser normas regidas por dados técnicos, algumas prefeituras se organizaram e lançaram documentos em conjunto, a exemplo da “Nota Técnica Conjunta Atualizações Sobre O Manejo Clínico Da Covid–19 Na Atenção Primária À Saúde - Tratamento Medicamentoso” produzida pelas SMS do Rio de Janeiro, Florianópolis e Porto Alegre publicada em 22 de maio de 2020.

Os profissionais da APS carioca viveram as repercussões desse contexto político em incontáveis situações. Uma MFC AP 2.2 observou que, a despeito do agente etiológico da Covid-19 ser um vírus, muitos pacientes solicitavam a prescrição de azitromicina, que é um antibiótico da classe dos macrolídeos empregada no tratamento de infecções bacterianas, portanto sem fundamentação para o cuidado da Covid-19. A profissional hipotetiza que essa situação pudesse estar vinculada a um aspecto cultural de tratamento de dor de garganta com algum antibiótico. 

"Eu não tive tantas situações em que os pacientes chegaram demandando kit COVID, cloroquina, essas coisas… Com um pouco mais de frequência azitromicina, mas eu acho que isso já é um negócio, não sei, da galera do bonde da dor de garganta, “ah, eu estou com dor de garganta, me dá uma azitromicina, um benzetacil”, nessa lógica" (MFC Júlia Horita). 

 

Episódios de pressão e ameaças por parte de pacientes não foram incomuns na APS carioca nas mais diferentes áreas programáticas. Uma MFC da AP 3.3 relatou enfrentamentos desgastantes com pacientes que insistiam em receber determinados medicamentos os quais se tornaram conhecidos e populares pela rápida disseminação de informações via redes sociais e aplicativos de mensagens. A resistência em seguir uma prática baseada em evidência e não prescrever fármacos sem eficácia comprovada, muitas vezes gerou confrontos verbais e ameaças, tornando o ambiente de trabalho estressante.

"O que me destruía por dentro, me deixava muito cansada, era quando chegava uma pessoa e queria te encarar, te ameaçar, porque “Como assim você não vai prescrever azitromicina? Eu fui na UPA e me prescreveram! Fui em tal lugar e me prescreveram…prescreveram para o meu vizinho.” Lógico que a gente tem autonomia de não prescrever, baseado, sempre tentando basear em evidências a nossa prática, mas as pessoas às vezes são muito violentas, não querem saber que a gente tá trabalhando com ciência. Então foi bem desgastante" (MFC Caroline Oka).

 

Em meio aos atendimentos, foram notadas por alguns profissionais prescrições divergentes entre a APS e as unidades de pronto atendimento (UPA), o que gerava indagação principalmente quando a unidade de urgência/emergência era da rede SUS. Pacientes frequentemente traziam prescrições de medicamentos não recomendados ou buscavam transcrição de receitas de outras fontes, incluindo a rede particular. Um comportamento semelhante a um self-service foi descrito por uma enfermeira da AP 2.2 em que os usuários queriam escolher suas prescrições da mesma forma que em outro momento da pandemia quiseram escolher a vacina.

"Seguíamos os protocolos bem, sempre o papel de acordo com o Ministério da Saúde. Sempre. Agora, muitos usuários pedem várias medicações, que até hoje, e hoje acontece o inverso, acontece com a vacina. “Eu quero a vacina tal”, hoje nós saímos do COVID para assumir a vacina. E aí, já chegam dizendo “eu quero essa vacina”, “eu quero isso”. Era o mesmo processo na época da pandemia: “ah, eu quero um antibiótico”, “eu quero tal medicação”, “eu quero ivermectina”, “ah eu quero…” Já chegavam assim “eu quero isso, porque isso é melhor”. E a gente via que tinha muita diferença. Às vezes, não entendia, porque aquele usuário que tinha sido atendido em uma unidade de pronto atendimento, que tinha que seguir o mesmo processo que a estratégia de saúde da família, e ele às vezes ele vinha com a prescrição totalmente diferente. E a gente também é SUS e porque que ele tá vindo aqui com essa medicação que não tem... não tem lógica. Não é o que o Ministério tá recomendando para o quadro que ele tá apresentando hoje. Tinha muita... muita divergência. Mas não, assim, dentro da unidade, protocolo seguindo fio a fio, bem organizado mesmo" (ENF Maria Aparecida).

 

Dois enfermeiros da AP 2.2 destacaram que, em suas unidades, o tratamento seguia estritamente os protocolos do Ministério da Saúde. O foco era em tratamento sintomático, utilizando analgésicos e soro fisiológico, e reservando antibióticos apenas para infecções bacterianas confirmadas. A forte demanda por medicações como a ivermectina, mencionada por um deles, reflete a influência de desinformação e a busca desesperada dos pacientes por uma solução rápida, complicando a adesão ao tratamento baseado em evidências.

"Ivermectina foi assim o auge. Muito! Cloroquina algumas. Alguns vindo da rede particular, com prescrição totalmente diferente. Pacientes que assim... não tinham uma ausculta alterada, não tinha nada para estar fazendo uso de antibioticoterapia. E aí, quando a gente falava assim, “o senhor vai observar os sinais de alarme: febre alta, falta de ar” orientava tudo de acordo e eles diziam “não, mas eu quero meu antibiótico, eu já tenho que iniciar o antibiótico”. Ou então vinham com a prescrição para transcrever. Porque os pacientes não se conformavam com determinados atendimentos, então eles iam a vários lugares" (ENF Maria Aparecida).

 

"Sempre o tratamento que foi implementado lá na clínica, no posto onde eu trabalho era sempre aquele tratamento sintomático. Então era sempre o analgésico, anti-inflamatório… não, anti-inflamatório não, desculpa. É analgésico, antialérgico e soro fisiológico, então essa prescrição feita pelos médicos não passava disso. No máximo, claro, se tinha uma infecção bacteriana de garganta, antibiótico e anti-inflamatório" (ENF Leônidas).

 

Uma ACS da AP 4.0 relatou a dificuldade emocional de lidar com a falta de medicações eficazes específicas para Covid-19. A incerteza sobre o tratamento e a ausência de medicamentos direcionados aumentaram a ansiedade e a sensação de impotência entre os pacientes e os próprios profissionais de saúde.

"Por não ter uma medicação, foi muito conflituoso, porque em alguns momentos você acha que está melhorando, mas depois vem outro sintoma, e você pensa assim “não tem remédio para tomar e o que eu vou fazer?” Tem um vírus no meu corpo que ninguém conhece, que ninguém sabe as características dele em si. Então o que eu vou fazer? Não tinha o que fazer. Então era repouso, bastante líquido, tentava me alimentar da melhor forma, e a dipirona. Só" (ACS Mayara).

 

A resistência dos pacientes às recomendações médicas exigiu um esforço constante de educação e orientação, como descrito por uma ACS da AP 2.1. O trabalho envolvia desmistificar a automedicação e enfatizar a necessidade de avaliações profissionais. Nesse sentido, destaca-se a importância do papel dos ACS, como elo com a comunidade, na propagação de informações corretas. A persistência em orientar os pacientes sobre os riscos de medicamentos não comprovados e a importância de seguir os protocolos de saúde pública foi essencial para enfrentar a pandemia com base científica e responsabilidade.

"Porque achava que se tomasse aquilo, ia ficar bem e tal, aí é como eu falei, aquele trabalho de formiguinha, de todo dia você estar ali conversando, orientando da melhor forma, não é se automedicar, tem que ter uma avaliação de um profissional, porque o que faz bem para você, não vai fazer bem para mim, então assim, alguns tiveram muita resistência" (ACS Letícia).

 

Prescrição de hidroxicloroquina, ivermectina

Dentre os muitos tipos de medicamentos apontados como potenciais para o tratamento da covid-19, a hidroxicloroquina e a ivermectina receberam grande atenção do meio científico e da mídia, principalmente nos primeiros meses após a declaração da pandemia. Os profissionais de saúde trouxeram diferentes experiências sobre a prescrição ou não destes medicamentos. Um MFC da AP 4.0 descreve sua tentativa de separar fontes científicas confiáveis disponíveis até aquele momento da entrevista, em julho de 2020, em relação ao uso e aplicabilidade da hidroxicloroquina. A partir disso questiona-se diante de alguns parâmetros, como a compreensão dos riscos pelos pacientes, não seria uma possibilidade real de prescrição.

"No início da pandemia, a gente era bombardeado o tempo todo com muita informação. Na verdade, muita falta de informação. Essa foi a grande discussão que a gente teve lá na clínica. [...] Comecei a ver que muitas pessoas, tirando fake news, as pessoas radicais, as matérias sensacionalistas bizarras, negócio com vínculo político e tal, isso tudo a gente jogava no lixo, mas tinha alguma coisa que mostrava que determinadas pessoas estavam usando do ponto de vista populacional já há muito tempo e não tinha tanto efeito colateral quanto a galera que era contra falava que tinha. E aí eu comecei a refletir, individualmente se eu estou acompanhando meu paciente, o paciente entende os riscos, sabe que é medicação que não tem evidência, mas tem mostrado algum tipo de diminuição viral in vitro, por que não oferecer? Aí eu comecei a discutir isso com os pacientes" (MFC Caio Faria).

 

 

Em outra AP da cidade, a 3.3, um MFC descreve que o uso do chamado tratamento precoce foi tema de ações de educação permanente com os profissionais da unidade e que acredita que medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina talvez tenham sido prescritos nos momentos iniciais da pandemia. Ele reforça as principais recomendações quanto ao cuidado baseado nos sintomáticos, aumento da ingesta hídrica e alimentação saudável, além de repouso.

"A gente tentou fazer algumas ações também para dentro, para a equipe, de educação permanente, conversando um pouquinho sobre o debate. Enfim, o que tinha sobre o tratamento precoce e tal. Mas eu acho que foi muito esporádico assim algumas pessoas, pacientes, iam até a Unidade procurando esse tipo de medicação e tudo, e a nossa conduta muitas vezes é para individualizar o caso. Como recomendação geral, a gente seguia as normas mais substantivas: Organização Mundial da Saúde, a própria nota técnica da Prefeitura do Rio. Mas assim, talvez em algumas situações, tenha sido prescrito individualmente uma situação ou outra, esse tipo de tratamento, que hoje acho que a gente já tem bastante evidência de que não é recomendada [...] O tratamento principal que a gente orienta lá é alertar para sinais de gravidade, repouso, beber líquido, e afastar da atividade profissional ou da escola. Essa foi basicamente a nossa orientação mais geral durante a pandemia e até agora" (MFC Márcio).

 

Não prescrição ou uso de hidroxicloroquina / ivermectina

Alguns profissionais de saúde afirmaram o não uso de medicamentos direcionados ao tratamento da covid-19 e destacaram o uso dos chamados sintomáticos. Em muitas situações, esse posicionamento gerou conflitos com os usuários. Uma das MFC enfatizou a consistência entre seu tratamento pessoal e o cuidado com seus pacientes, recusando-se a usar ou prescrever medicamentos sem evidência comprovada de eficácia contra a covid-19. Ela destacou que, apesar das pressões e controvérsias políticas, manteve-se fiel à prática baseada em evidências.

"Não, não fiz. Porque assim como eu tava na linha de frente, eu não prescrevi para os meus pacientes, então assim, eu não faria algo diferente comigo, entendeu? Não, porque assim, eu sabia que não tinha evidência ainda. Eu sei que tem toda uma questão política e polêmica, mas eu não fiz, porque eu não faria isso para os meus pacientes" (MFC Talita).

 

Uma MFC da AP 3.3 também compartilhou que seguir uma abordagem baseada em evidências foi tranquilo para ela, evitando o uso de medicamentos sem eficácia comprovada. Ela tratou sua própria infecção pelo SARS-CoV-2 usando apenas dipirona e hidratação, em linha com o que prescrevia a seus pacientes.

"Eu tenho, eu tenho toda minha prática, minha formação baseada em evidências, então não foi nem um pouco foi super confortável para mim. Acho que seria desconfortável se eu tivesse que tomar essas medicações comprovadamente não eficazes. Então, foi ótimo. Só tomei dipirona e água" (MFC Caroline Oka).

 

Uma enfermeira da AP 2.1 destacou a discrepância entre a prática médica e a percepção pública influenciada pela mídia. As informações errôneas sobre combos de medicamentos, que recebeu o nome de “kit covid”, amplamente divulgadas, colocavam os profissionais de saúde em posições desafiadoras, gerando conflitos com pacientes que acreditavam estar sendo privados de tratamentos eficazes. Ela mencionou que essa desinformação frequentemente resultava em confrontos com pacientes, que viam a recusa em prescrever tais medicamentos como negligência ou crime. Ela comentou sarcasticamente que, em alguns casos, os profissionais ofereciam para chamar a polícia para lidar com as reações agressivas dos pacientes.

"Aí vinha a mídia falando as coisas, falando que tinha que tomar certos medicamentos, que tinha certos combos de medicamentos, e pra gente isso não existia. Aí a gente ficava parecendo que estávamos cometendo algum crime. Aí a gente falava, “vamos chamar a polícia para vocês!” Sempre era isso" (ENF Bruna Campos).

 

As narrativas destacam a firme adesão da maioria dos profissionais de saúde da APS aos princípios da medicina baseada em evidências, mesmo sob intensa pressão social e desinformação. Essa abordagem foi crucial para manter a integridade do cuidado fornecido durante a pandemia. A influência da mídia e a disseminação de informações incorretas sobre tratamentos criaram desafios significativos para os profissionais de saúde, levando a conflitos com pacientes e a uma necessidade constante de reafirmar as práticas científicas. A experiência com pedidos constantes de "kit covid" e a pressão dos pacientes demonstram a necessidade de fortalecer a comunicação e a educação em saúde, para combater a desinformação e promover tratamentos eficazes.