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Um dos aspectos que se destaca nas narrativas dos profissionais de saúde é os limites enfrentados por eles na assistência aos pacientes com COVID grave: desde falta de recursos nas clínicas da família até a preocupação com a falta de leitos nos hospitais para os pacientes vaga zero.
"Em algumas situações, a gente ficou com paciente grave na Unidade. E aí, é difícil quando isso acontece, pouco preparo, às vezes a bala de oxigênio acabando. Ligando para Regulação, mas eu acho que também o fato de estar muito atento a essas coisas, a gente sempre junto com a gerência da Unidade, estávamos sempre atentos a coisa do oxigênio que não podia faltar. Desde o começo, assim, quando a gente começou com essa história de que o paciente ficava grave e tudo, eu fiz uma pressão assim junto a CAP da gente conseguir medicações, por exemplo, se precisa sedar o paciente para entubar o paciente na Unidade, alguma coisa nesse sentido, então a gente sempre…. A cabeça do médico de família e comunidade sempre pensa profilaticamente, então sempre um pouco à frente nesse sentido, então tentava não deixar a bala de oxigênio acabar, só para a gente não ficar numa situação que, enfim, numa situação complicada dentro da Unidade, mas às vezes quando a gente chamava ambulância numa situação difícil... A gente já chegou a ficar 8 horas com paciente na Unidade e a bala de oxigênio acabando a gente tendo que dosar ali o oxigênio diminuir um pouco, para ali, aumenta um pouquinho, e volta um pouquinho, coisa nesse sentido a gente chegou a viver, mas foram esporádicas, isso não foi a nossa regra não. Até o serviço de ambulância também, assim, de uma maneira geral, a gente consegue remover num tempo adequado, a gente não teve nenhuma situação de óbito por conta de COVID na Unidade, a gente não tem uma situação assim que eu me recordo, mas não" (MFC Marcio).
Por outro lado, foi possível perceber que profissionais da enfermagem (ENF) e agentes comunitários de saúde (ACS) destacam com mais frequência os óbitos na Unidade e no território do que os médicos de família e comunidade (MFC).
"Muitos! Muitos saturando a 69, 70%... Tem que chamar a ambulância correndo, vaga zero, ficar ali do lado, o tempo todo... muitos, muitos, muitos. E não voltaram. Muitos não voltaram.” (ENF Maria Aparecida)
"A gente teve paciente que evoluiu muito grave, muito mal, que foi em vaga zero e depois a gente soube que foi a óbito. Pacientes que eram parentes, familiares de pessoas que trabalham com a gente, dos agentes comunitários de saúde, principalmente, que são próximos ali, que moram próximo do posto porque o ACS mora na comunidade. E aí eles levavam os familiares lá para a gente atender e nem todos os casos evoluíram bem. Algumas questões de idosos, principalmente com comorbidade, tiveram uma evolução não favorável" (ENF Leônidas).
"Então, assim, eu lembro de um caso específico de uma senhora, de 90 anos, que vizinhos relataram que viram ela, assim, com muita falta de ar e tal. E nós fomos lá fazer uma visita domiciliar. Eu, mais um agente de saúde e a enfermeira da equipe. E quando a gente chegou lá, foi muito assustador, ela tentando resgatar o ar e não conseguia. Então, assim, a gente não pensou nem duas vezes, assim, pegamos o lençol, colocamos ela e levamos da casa até a UPA para ela ser internada e ser auxiliada. Nas primeiras horas de atendimento, enfim. Infelizmente, depois na semana, ela veio a falecer, mas foi uma, foi, essa foi uma das experiências mais, assim, meio que assustadoras, de ver aquela, de ver aquela pessoa assim, você, sei lá, tentar socorrer de alguma forma. E, enfim, ela veio a falecer, acho que foi uma semana depois, ela chegou a falecer" (ACS Letícia).
O medo do adoecimento e das complicações do COVID era muito intenso. A incerteza acerca da doença tinha duas facetas: enquanto uma parcela da sociedade considerava “só uma gripezinha”, outros temiam adoecer e, quando doentes, serem internados, pois havia a possibilidade de agravamento e morte.
"Uma história que foi muito sensível para mim: a gente tava com paciente bastante grave, que chegou dessaturando, era uma pessoa muito próxima da Unidade por trabalhar no território, tá sempre trabalhando com a Unidade, uma pessoa muito querida para Unidade. Ele chegou lá bastante dispneico, passando muito mal com Covid, ele e a esposa com teste positivo para Covid. Nessa época, a gente já estava testando, que foi no final do ano passado [2020], e aí assim, unidades hospitalares lotadas, a gente passava horas esperando uma ambulância para conseguir internação. A gente conseguiu, depois de 4 horas esperando, a ambulância chegou, e removeu ele às 9h da noite. No momento em que a ambulância saía, a gente saía, e no bar na esquina da Unidade, monte de gente tomando cerveja confraternizando, todo mundo sem máscara, em um momento que isso era inadmissível, que a gente não tinha lugar onde internar as pessoas, e assim, isso acho que me doía muito mais do que atender grande volume de pessoas e fazer as minhas boas práticas, porque era como se a gente estivesse nadando contra a maré" (MFC Caroline Oka).
"Estou lembrando de outro caso, acho que também foi bem impactante, mais recente. Uma senhora que veio também dispnéica com critério de internação e agora, com as coisas um pouco mais tranquilas, ela tem uma história… uma mulher obesa com história de infarto prévio, muitas comorbidades, após vacina e tudo, com COVID e dispneica, saturando baixo, disse “olha, preciso pedir uma ambulância, a senhora vai passar para o hospital, precisa de suporte de oxigénio.” E aí ela falou que não, que não queria ir, porque foi assim que o marido morreu ano passado. O marido dela tinha falecido por COVID. E que ela queria ir para casa, morrer em casa, porque quando ele foi ao hospital, ele morreu sozinho. Então, ela preferia morrer com a família dela, ir para casa morrer em casa. Ela não morreu, mas foi bem impactante. Você vê os efeitos nas famílias, os traumas que a pandemia causa nas famílias, a solidão, o isolamento fez esse senhor morrer sozinho. Eu estava no dia, não fui eu que atendi ele, mas estava no dia que ele estava aqui. Lembro da família, quando falou isso, eu me lembrei do rosto das pessoas, tenho muita memória facial. E realmente é isso, ele morreu sozinho no Ronaldo Gazolla, na área de isolamento. E ela disse, “não, eu vou para casa, não quero ir” e ela não foi. Mas depois ela ficou bem" (MFC Julia Horita).
Por mais que a Estratégia da Saúde da Família envolva o cuidado e a preocupação com a comunidade e com o território, a enfermagem e os ACS, em suas narrativas, pareciam mais intensamente envolvidos com a comunidade. Com o agravamento da pandemia e o consequente aumento do número de óbitos:
"A equipe tal está com muitos óbitos, o que que a gente vai fazer na comunidade para melhorar isso, para divulgar a questão do isolamento? E aí, teve uma época que a gente foi para o território, mesmo em época de pandemia, foi maio, junho [2020] alguns residentes da minha equipe. Nós fizemos um protocolozinho/folderzinho, e a gente foi para comunidade conversar, passamos na igreja, passamos em alguns lugares que são referência na comunidade para orientar o uso da máscara, lavagem das mãos, uso do álcool gel, o uso do EPI na comunidade" (ENF Maria Aparecida).
"E esse outro caso, que foi muito de perto para mim, foi na minha área: paciente jovem, que ficou internada fazendo só a oxigenoterapia, não precisou ser entubada, mas o quadro dela quando ela chegou aqui, a gente achava que ela não iria conseguir. Fiquei todo o momento em contato com a mãe dela, sem ter hora: sábado e domingo; de dia e de noite. Foi o caso mais perto que eu tive da minha área. Então eu quis dar todo o apoio e toda atenção, deixando sempre claro que a gente estava de portas abertas para ajudar a família e, graças a Deus, a paciente teve alta, não precisou ficar entubada, e voltou para casa, para a família dela" (ACS Mayara).
Além da preocupação com as pessoas do território, houve a apreensão com o adoecimento dos profissionais da equipe de atenção primária.
"O nome dela era Cátia e ela trabalhava aqui na direção. O pai e a mãe dela já eram bastante idosos, aí sei lá, ela se afastou uma semana, eu acho, uma semana que o pai tava internado, a mãe também, não sei se tava entubado ou não, mas acredito que sim, porque assim, eles foram embora muito, muito rápido. A gente soube uma semana, na outra semana, pô, faleceu [os pais], aí, tipo assim, ninguém acreditou, só que assim, por ela ser enfermeira e trabalhar na ponta, ela tava dando esse suporte pro pai e pra mãe. Acabou também que ela [Cátia] veio a falecer também. Isso infelizmente aconteceu antes da vacina. Antes da vacina [...] Mas foi difícil pra gente aqui. E eu que tipo assim, todo mundo gostava, todo mundo. Não tinha uma pessoa que não gostava da Cátia aqui mesmo" (ACS Everson).
"Enfermeiras que trabalham comigo que se contaminaram. Uma técnica de enfermagem minha ficou internada, hospitalizada por 15 dias, evoluiu bem e depois voltou a trabalhar com a gente, mas foi um susto para todo mundo. Quando aconteceu com ela, já tinha tomado as duas doses, já tinha feito as duas doses. Então, ficou todo mundo alarmado assim "Poxa, ela já foi vacinada com as duas doses!” Na época ainda não se falava em reforço. “Poxa, como é que ela pegou? Como é que ela contraiu a doença se ela já tomou as duas doses da vacina?” Aí foi um momento tenso também" (ENF Leônidas).
Diante da gravidade e dos limites, houve condutas conflitantes. Seguir o protocolo, que exigia materiais adequados à assistência e à proteção do profissional de saúde, por vezes, desfavorecia o paciente por adiar um cuidado. Realizar um procedimento sem o material adequado poderia favorecer o paciente, mas expunha o profissional ao vírus.
"Eu sei até a pessoa, o paciente. Foi nesse período que a gente não tinha material. A gente era uma Unidade de saúde, que até então fazia atendimento ambulatorial. E aí veio a pandemia, e chegou. E a gente atendeu os pacientes de COVID, e aí quando a gente se deu conta a gente tava recebendo muito paciente grave. Esse dia que eu me contaminei, chegou uma idosinha, ela tava saturando a 79% e ela não tava conseguindo respirar sozinha, a gente não tinha o que fazer. Tipo não tinha cateter de O2, não tinha máscara de VO2 com filtro. Não tinha nada. Não tinha tubo para fazer uma intubação se fosse preciso, pelo médico. A única forma de ofertar oxigênio para ela naquele momento, era com nebulização. Só que a nebulização gera muito aerossol, mas foi isso que a gente fez. A gente fez isso até a ambulância chegar, a ambulância demorou 1 hora, e estava eu e um médico ali, ofertando oxigênio para ela só que com nebulizador. A gente até tava com a N95, mas aí eu acho que, ou passou ou contaminou alguma região da pele assim, alguma parte da pele e acabei me infectando" (ENF Caroline).
“Mas essa que o meu residente chegou, não lembro o nome dela agora, mas era uma senhorinha DPOC, CCS, multimórbida, chegando com franca dispneia e o residente querendo pegar a máscara, querendo colocar o O2 nela e eu falo: "não, não pode, desculpa, não pode, porque o protocolo agora fala que a gente não pode fazer isso por esses motivos." E a cara dele para mim, tipo, mas, cara, ela está morrendo aqui. E eu também queria, era aquela coisa de vou ou não vou, vou ou não vou, mas a nossa orientação, por mais que a gente tenha que ser flexível e tudo mais, mas ali na hora não podia. Na época não tinha nem teste de Covid, então a gente não tinha certeza se era, mas eu soube depois que ela veio a óbito. É, faleceu por isso” (MFC Clara Antunes).