Ressignificando a prática profissional individual / coletivo

Temas: APS

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Segundo a Academia Brasileira de Letras, ressignificar é “dar novo sentido, valor, forma, função a algo”. A pandemia de covid-19 trouxe uma série de desafios que transformaram a prática profissional dos trabalhadores da saúde, tanto em termos individuais quanto coletivos. A necessidade de adaptação rápida e a implementação de novos procedimentos de segurança e atendimento alteraram significativamente a dinâmica usual de trabalho. Os profissionais relataram experiências que refletem uma profunda resignificação de suas práticas e papéis.

Uma ACS da AP 2.1 destaca como a tecnologia e a comunicação à distância tornaram-se essenciais para manter contato com os pacientes, especialmente os mais vulneráveis, durante o isolamento social. Foi necessário repensar estratégias de comunicação dada a necessidade do distanciamento e a suspensão das visitas domiciliares. A troca de mensagens e chamadas telefônicas substituiu, parcialmente, a presença no território, criando um novo modo de se relacionar e monitorar a saúde dos pacientes. Essa aproximação virtual não só preservou, mas em alguns casos, até intensificou o vínculo entre pacientes e profissionais, oferecendo um suporte emocional essencial e assegurando a continuidade do cuidado. A tecnologia emergiu como um facilitador crucial, permitindo aos profissionais superar as barreiras impostas pelo distanciamento físico. O uso de aplicativos e mensagens instantâneas tornou-se uma prática comum para checar o bem-estar dos pacientes, discutir sintomas e necessidades médicas, e até mesmo coordenar a entrega de medicamentos, como evidenciado no relato desta ACS. 

Eu acho que aproximou mais, porque como nós não conseguiamos ir nas casas, a gente começou a falar por telefone ou por zap. Então, assim, era sempre, “e aí, tá tudo bem?” Então, assim, eu acho que nesse caso aproximou mais. Até dessas pessoas um pouco mais idosas, entendeu? De, oi, dá um bom dia pra saber como tá. Então, eu acho que, ainda bem que tem a tecnologia. Então, eu acho que dessa forma a gente conseguiu até se aproximar mais, até por conta de não poder ir, entendeu? E de ajudar, de alguma forma, já que eles não conseguiam ir, não poderiam ir na clínica por conta da exposição, a gente, "ó, tô sem remédio", então a gente pegava o remédio, colocava no saquinho, higienizava, abria a porta e saía. Então, assim, para esses pacientes específicos, então a gente tinha todo esse cuidado (ACS Letícia).

Eu acho que não, porque eu sempre fui muito disponível, entendeu? Então, assim, eu sempre, desde quando eu entrei, nem sabia o que era ser agente de saúde, até porque, na época, na Rocinha, não tinha. Então, eu falei, "ah, vou tentar essa experiência nova para ver, vamos ver o que vai dar". Então, assim, a cada casa, a cada estrada, a cada história de vida, e foi passando os anos, aí eu penso, cara, acho que era isso que faltava, você ir em casas diferentes todos os dias, ouvir histórias de vida, ouvir segredos, ouvir... isso é muito bom, isso é muito bom. Então, assim, eu tento sempre dar o meu melhor todos os dias, entendeu? Todos os dias eu tento dar o meu melhor porque eles precisam de mim, de alguma forma, então, se eu não estiver ali 100%, não vou poder ajudá-los. Então, eu sempre tento dar 100% e, da melhor forma, tentar ajudar (ACS Letícia).

A necessidade de dar novas funções às práticas dos ACS também foi observada por profissionais das AP 2.2 e 3.3.

Assim que eu cheguei, eu vi que tinha algo diferente do que já era, já acontecia com a profissão de agente comunitário de saúde, não estava atuando da forma que era antes, devido à pandemia, devido à questão do distanciamento social. E eu vi que as pessoas comentavam muito, os colegas de trabalho, "não era assim, a gente visitava mais, e a gente viu que a nossa escala de trabalho ficou mais concentrada dentro da Unidade devido a tanta demanda de vacinação, de testagem de COVID, entre outras também, pessoas passando mal devido aos sintomas. Mas hoje em dia eu consigo ver realmente qual é a nossa função da questão da visita, isso era bem difícil na época assim que eu entrei, era bem difícil ter esse contato com o paciente devido ao distanciamento." (ACS Thais Almeida)

Quando eu cheguei, eu já cheguei com profissionais que já estavam afastados, pessoas de idades mais avançadas, outros pelo fato de serem diabéticos e tudo mais, eles já estavam afastados. A Unidade já era um pouco reduzida e quando nós chegamos foi em um número grande para poder suprir toda essa necessidade. Mas logo de imediato que a gente chegou, a gente já chegou com a negação de ir para a rua, a gente não podia ir para a rua naquele primeiro momento. Então, ficamos dentro da Unidade, dando todo o suporte para as pessoas que chegavam contaminadas. A gente dava o suporte na vacina, a gente dava o suporte na imunização, porque tinha um setor isolado onde eles chegavam para poder fazer essa triagem, então a gente dava todo esse suporte. E depois, quando começou a liberar aos poucos da gente ir para a rua, porque tinham os atendimentos, os atendimentos eles eram 90% voltados para o COVID, porque parecia que não existia o hipertenso, não existia diabético, não existia nenhum outro tipo de comorbidade, só existia o COVID. Então, a gente acabou não tendo demanda de solicitação de Sisreg, de exames. Então, a gente não tinha muito o que fazer na rua, uma vez que a visita não podia, a gente não podia visitar. As pessoas não queriam um profissional da saúde dentro da sua casa. Então, as pessoas já não abriam a porta pra gente. Então, foi onde todas as Unidades, elas recolheram os profissionais. E a gente permaneceu dentro da Unidade, só indo para os setores, só indo para a rua, em caso de extrema necessidade. Fora isso, a gente permaneceu dentro, auxiliando internamente mesmo." (ACS Daiane)

Foi preciso remodelamentos nas rotinas dos MFC principalmente relacionada a abordagem comunitária. Uma MFC da AP 3.3 descreveu que precisou adaptar suas visitas domiciliares e consultas para um formato mais seguro, focando em avaliações pontuais e mantendo o distanciamento necessário. Embora as visitas não fossem tão abrangentes quanto antes, a essência do cuidado domiciliar foi preservada, com ênfase na segurança e na minimização do risco de contágio. Além disso, houve suspensão das atividades em grupo até que houvesse uma cobertura vacinal importante. Esta reinvenção do atendimento exemplifica a resiliência e a adaptabilidade dos profissionais de saúde, que conseguiram manter o cuidado contínuo em um ambiente altamente desafiador, reafirmando a importância da inovação na prática médica. 

Cheguei nessa unidade em que estou ja no meio da pandemia, né? Então, a gente… eu entrei na equipe e ela já estava há alguns meses sem médico então visita eu não deixei muito de fazer, mas a gente foi naturalizando fazendo aquela visita de médico, fazendo algo mais pontual, com distanciamento, dentro do possível. Não como a visita que a gente fazia antigamente, na casa dos outros. Grupo, a gente está retornando por agora, com vacinação em massa, estamos retornando por agora, nesse mês de novembro, dezembro [2021], final do ano. Mas a gente sente falta. (MFC Caroline Oka)

Em vários relatos, mostra-se como a pandemia forçou os profissionais a reavaliar suas funções e encontrar novas maneiras de contribuir. A necessidade do isolamento de grupos de risco exigiram que alguns médicos mudassem seu foco para atender outras demandas da clínica, o que resultou em uma maior compreensão das necessidades e reações da população em relação à pandemia. Essa redefinição do papel foi narrada por um MFC da AP 4.0, que se viu forçado a ajustar seu foco de atendimento para pacientes não covid-19 dentro da sua CF. Sem a responsabilidade do isolamento e das medidas de contenção diretas, ele observou como a pandemia trouxe à tona novas necessidades na população, como a crescente ansiedade e outras condições influenciadas indiretamente pela crise de saúde pública. Essa observação ampliou sua perspectiva sobre a prática médica, mostrando a complexidade das reações da população às restrições e medos associados à pandemia. Essa flexibilização nos papéis tradicionais ajudou a compensar a sobrecarga em outras áreas e garantiu que, apesar da crise, a atenção às necessidades gerais de saúde não fosse completamente negligenciada. A resiliência e adaptabilidade demonstradas por esses profissionais ressaltam a importância de uma abordagem holística e flexível no atendimento médico, em que os papéis podem ser redefinidos para atender melhor às demandas emergentes e garantir a continuidade do cuidado. Uma enfermeira da 3.1 também se recorda quando foi necessário treinamento de preparo do corpo, algo que indiscutivelmente não faz parte da rotina da APS.

Momentos de maior incidência assim eram os momentos que a gente ligava mais um alerta. Lembro quando houve uma preocupação de capacitação profissional e multidisciplinar. E uma vez que me deixou assim bastante impressionada foi quando houve até a orientação de preparo do corpo, se ocorresse óbito na APS, ali na unidade básica. E aí, aquilo ali, sentindo a morte tão próxima num lugar que não é comum encontrar... na atenção primária, num posto de saúde, na Clínica da Família. Isso porque a gente recebeu o saco mesmo para preparo do corpo e se ocorresse o óbito no domicílio. Então esses momentos dessas incidências, assim, isso assustou (ENF Tayná).

[...] tinha um monte de médicos mais jovens, lá o mais velho sou eu e uma senhora que é mais velha que eu, e ela tem doença pulmonar e tal, então ela foi retirada mesmo. Ela nos colocou para atender os pacientes que não são sintomáticos. Agora, isso também contribuiu para eu buscar estudo e também para eu começar a me ver diferente dos meus colegas nesse ponto. Até então eu só via diferença da minha experiência como ser humano. E ponto (MFC Luiz Zanini).

Olha, foi uma experiência muito boa. Por que? Porque as pessoas... eu comecei a ver pacientes de outras equipes, de todas as equipes, com a tranquilidade de não ter a responsabilidade do isolamento, com aquelas medidas todas. Foi bom para eu… eu comecei a perceber também as sequelas não ligadas diretamente ao COVID, dizer assim, tipo ansiedade. Eu comecei a perceber o quanto que o COVID influenciava também na população que não estava doente. A maneira também como a população reagia aquilo. De um lado da Clínica, você tinha restrição de acesso e no meu lado, no lado que eu estava na clínica, eu abria o acesso, os agentes iam lá conversar comigo, e assim quem chegar aí vai entrar, eu vou atender um de cada vez até quando eu não der mais conta. Profissionalmente para mim isso foi muito bom, ampliou para mim a visão a respeito da Clínica, da população. E eu pude suprir, porque eu me senti um pouco… não sei se a palavra é culpado seria bem aplicada, mas incomodado com o fato de não estar lá, porque esse lance de me ver diferente dos colegas ainda estava rolando, não era uma coisa que estava definida na minha cabeça. [...] Se eu não posso ficar do lado de lá, vou ficar do lado de cá e aqui vou ajudar os pacientes da forma que eu puder. Isso foi importante para mim para eu poder lidar com essa circunstância de ver essa diferença. Entende? Era uma diferença que para mim eu não percebia, apesar de ser gritante, eu não percebia. A medida que eu começo a perceber isso, eu vejo que tenho uma função diferente nesse organismo, minha função é outra. Não é de estar lá, é outra. Equilíbrio de não estar lá, sem pensar que estava colocando carga em ninguém, agia com muita naturalidade. Isso foi importante para mim (MFC Luiz Zanini).

A orientação inicial para não examinar pacientes com síndrome gripal, como relatado por uma MFC da AP 2.1, gerou frustração, pois impedia uma avaliação clínica completa e dificultava a distinção entre covid-19 e outras condições, como infecções bacterianas. Foi necessário repensar a prática clínica.

A sensação de impotência também foi uma experiência comum, com muitos profissionais relatando frustração por não conseguirem oferecer o cuidado preventivo e contínuo que estavam acostumados a fornecer. A necessidade de focar exclusivamente em casos de covid-19 e a incapacidade de realizar diagnósticos precisos para outras condições criaram uma sensação de "enxugar gelo", como expressado por uma das MFC, agravando o sentimento de inadequação e desespero entre os profissionais.

Eu lembro que era um pouco frustrante na época a gente atender tantos casos de gripes, dor de garganta, dor de cabeça. E não podia muito fazer o exame. Eu lembro da primeira orientação da Secretaria. Você não pode examinar o paciente. Como assim? Eu não vou avaliar uma cavidade oral para ver se realmente é uma amigdalite bacteriana ou é um COVID?! Não pode, você não podia. Como é que eu vou falar isso para o paciente? Como é que o paciente vai receber isso? Era uma sensação de impotência muito grande. Ao mesmo tempo que, conforme os dias iam passando, a quantidade de atendimentos ia aumentando. A quantidade de atendimentos ia aumentando e a gente via que não ia dando perna. Começava com um só atendendo. De repente, tem que ter duas pessoas. Uma para digitar a evolução e a outra, conforme foi sendo permitido, a outra ia fazendo o exame físico. Isso começou em março. Março para agosto, se não me engano, foi diminuindo a onda. Acho que foi a nossa primeira redução da onda. Eu lembro vagamente disso. A gente já pensando, que bom, está diminuindo a quantidade de pessoas. Dá para a gente se organizar. Tentar voltar ao normal. Alguma coisa assim. Organizar campanha de vacina. Logo em novembro, em meados de outubro, início de novembro, veio para falar que não, nova onda! [...] Foram o quê? Oito meses, sete meses. Mas a sensação é que foram anos. Além de não conseguir fazer o nosso trabalho do dia a dia, de promover a saúde, a prevenção e tudo mais, a sensação de enxugar gelo era muito grande. A sensação de a população estar contra a gente também era muito grande (MFC Clara Antunes).

A gente não conseguia fazer saúde da família. O que mais me incomodava era não conseguir fazer saúde da família. Porque a saúde da família é uma coisa muito gostosa. Só que não conseguia fazer alguma coisa, o que me angustiava muito. Era ir para lá e se sentir como se estivesse em uma UPA que era só atender Covid, Covid, Covid, Covid (ENF Bruna Campos).

Por outro lado, a pandemia também trouxe à tona discussões sobre a valorização e o reconhecimento dos profissionais de saúde. Uma enfermeira da AP 2.1 destacou a discrepância entre o reconhecimento público temporário e a realidade de condições de trabalho precárias e salários insuficientes. A necessidade de campanhas de valorização e políticas que garantam melhores condições de trabalho emergiu como uma lição crucial da crise. 

A minha categoria profissional é uma categoria que é socialmente desvalorizada. A gente recentemente teve aí a criação da lei que estabelece o piso salarial da categoria dos enfermeiros, algo que teve o seu projeto inicial totalmente mudado com relação a valores, com relação a carga horária. É uma categoria profissional, principalmente dos técnicos de enfermagem, que são pessoas que trabalharam comigo em parceria durante todo o processo da campanha de vacinação, do processo de trabalho de cuidado dos doentes, dos sintomáticos respiratórios durante o período mais crítico da pandemia, que antigamente já era muito desvalorizado e que, apesar das palmas da população chamando a gente de herói, enquanto profissional de saúde, em determinado período da pandemia, caiu-se por terra novamente. E a gente continua como uma categoria profissional que não tem o devido reconhecimento social pelo trabalho que presta a população, porque sem enfermagem não se faz saúde. E eu queria de fato que a pandemia, não que haja questões positivas nisso, mas pelo menos que se dá pra tirar algo que não foi de todo ruim, foi a nossa competência do trabalho com relação ao cuidado das pessoas, com relação à vacinação, a campanha de vacinação, ela é quase feita que 99% por enfermeiros e técnicos de enfermagem, e isso foi um divisor de águas para salvar a vida das pessoas, para diminuir a incidência de morte, e é uma categoria que continua sendo desvalorizada e subjulgada socialmente. Então, o que deveria ser feito eram, não sei, campanhas de valorização da categoria profissional, respeito à aplicação do piso salarial [...] mas não é só sobre mim, é sobre as pessoas que trabalham comigo, que desempenham um papel de muita importância e que ganhar de maneira digna faz parte do processo de valorização do trabalho, que é algo que no nosso país ainda é muito precário, assim (ENF Katia Brito).

O impacto emocional e psicossocial da pandemia sobre os profissionais de saúde foi profundo e multifacetado. Muitos enfrentaram uma carga de trabalho intensa e a pressão constante de lidar com a crise sanitária, resultando em altos níveis de estresse e esgotamento. A alta demanda de trabalho e a mudança nas rotinas de atendimento geraram frustração entre os profissionais de saúde. Muitos relataram sentir-se sobrecarregados pela responsabilidade e pela falta de recursos adequados para lidar com a crise.

[...] foi difícil. Entre várias outras coisas, além de ausência de profissionais, às pessoas sem muita energia. Dividir muito a função assim, o que que é do médico, acha que só mexe para fazer isso aqui, mas pode fazer que só piora a sobrecarga, que desune a equipe, os ACSs destinados para muitas funções, que eles não estavam acostumados a fazer: ser escriba de vacina, ficar na porta de COVID, “posso ajudar”. Nossa! “posso ajudar?” com a equipe técnica... médico e enfermeiro na porta da clínica falando com uma fila de gente que você não vai atender ninguém... Nossa, foi assim... enlouquecedor (MFC Átila).

Era triste ver que a área de acompanhamento dos pacientes era vazia. E a área da testagem era enorme, que era só testagem, testagem. E não tinha muito o que a gente fazer, porque a gente tinha que tratar os sintomas. A gente não entendia muito da doença, a gente não podia explicar. Aí tinha pacientes que culpavam a gente, como se a gente estivesse negando alguma coisa. Isso era complicado (ENF Bruna Campos).

A pandemia de COVID-19 forçou uma resignificação profunda na prática profissional dos trabalhadores de saúde, impondo novos métodos de comunicação, redefinindo papéis e enfrentando desafios de testagem e atendimento. A experiência trouxe à tona tanto as dificuldades quanto as resiliências dos profissionais, evidenciando a necessidade de melhor preparo, valorização e suporte contínuo para enfrentar crises futuras.