Efeitos da pandemia no territorio

Temas: APS

Atenção: todos os videos deste WebSite possuem legendas. Para ativá-las, clique no ícone na barra inferior do video.

A atuação das unidades básicas de saúde respeita um território adscrito sobre o qual possui responsabilidade sanitária. Território é um conceito com múltiplas definições que extrapolam a noção da área geográfica delimitada para as ações das equipes de ESF; é um conceito dinâmico em que devem ser considerados os indivíduos e suas relações sejam elas de poder, econômicas, simbólicas e de sustentabilidade; é um espaço de interações sociais em que a ação do homem o modifica continuadamente. Referem-se, portanto, a “um conjunto de situações históricas, ambientais, sociais e geográficas que tornam singulares as condições que entrelaçam vida, ambiente e trabalho.”

O território é um espaço “vivido pelos homens, sendo também, o teatro da ação de todas as empresas, de todas as instituições”. É vivo, ultrapassando o espaço político-operativo do sistema de saúde, estando em constante construção; é mutável, “onde se dão as relações produção-trabalho e saúde-ambiente, ou seja, onde se verifica a dinâmica viva dos processos saúde-doença”.

A pandemia de covid-19 exacerbou diversos problemas sociais e de saúde, impactando significativamente a população. Os efeitos foram amplamente sentidos em várias áreas, incluindo a pobreza e a violência, criando desafios adicionais para os profissionais de saúde e para o sistema de saúde pública carioca. Importante notar as transformações percebidas das dinâmicas de seus territórios por profissionais de diferentes áreas programáticas da cidade em consequência da pandemia:

[...] a rua voltou a viver. E eu acho que recentemente [2021] a gente também está vendo as consequências do empobrecimento da população, a gente tem muita população em situação de rua. Temos praças grandes no nosso território, então tem bastante gente em situação de rua [...] aumento grande do volume de algumas equipes, principalmente porque são pessoas migrando de plano de saúde, pessoas que ficaram desempregadas e que não conseguem mais bancar o cuidado em saúde particular (MFC Julia Horita).

No Rio Comprido, que é uma área assim, já dominada pelo tráfico, eu percebi o aumento da violência armada, mais assim para o final do ano, a gente começou a ter mais tiroteios, a Unidade fechando. [...] Na Lapa, um aumento assim também considerabilíssimo do número de pessoas em situação de rua (MFC Átila).

A violência armada e a insegurança aumentaram em áreas como Rio Comprido e Lapa, onde um MFC da AP 1.0 relatou um crescimento nos tiroteios e no número de pessoas em situação de rua. A instabilidade econômica e a falta de apoio social exacerbaram essas condições, dificultando ainda mais o acesso seguro aos serviços de saúde e o atendimento adequado às necessidades da população.

Sim, teve mudanças [no território], sim. Em relação à saúde, em relação até à social, porque muita gente acabou ficando desempregada na pandemia, perdeu o emprego. No começo, a gente via muita rotatividade de pessoas, porque não conseguia pagar o aluguel, uma hora estava aqui, depois voltava, ia para outra e voltava, essa rotatividade. A questão também de segurança, o território mudou bastante. No começo, em 2016, em 2017, a gente não via tantos atores lá do movimento, e aí depois da pandemia para cá mudou totalmente. Principalmente na minha microárea, quando era da outra equipe, não tinha nada. De repente, do nada, começou a aparecer barricada, meninos com armamento pesado, que antes nem o leve [tinha], já estava com armas pesadas, aí isso também mudou muito. Inclusive, agora [2024] está um pouco mais calmo, deu uma acalmada, mas durante a pandemia estava tendo muito conflito, muito tiroteio, estava tendo episódios de muito tiroteio, isso mudou bastante também (ACS Karen).

O empobrecimento da população que levou a perda de planos de saúde também foi um aspecto sentido pelos profissionais de saúde da APS carioca. Novos desafios são apresentados a partir do aumento do número de pacientes acessando as unidades: “hoje, você tem um boom, praticamente, porque essas pessoas estão buscando a unidade em massa. Muito se deve principalmente para aquela questão também que trabalhava, mas perdeu o plano de saúde” (ENF Leônidas). 

Uma enfermeira da AP 2.1 observou que o aumento de novos usuários do SUS, principalmente aqueles que perderam o acesso à saúde suplementar, trouxe desafios adicionais. A reticência desses indivíduos em aceitar a visita de ACS e a dificuldade em seguir protocolos de tratamento, como o Tratamento Diretamente Observado (DOT) para tuberculose, complicaram a prestação de cuidados. A necessidade de adaptação dos profissionais de saúde para lidar com uma população diversa e com diferentes expectativas foi um obstáculo contínuo. Além disso, foram notadas maior identificação de algumas questões de saúde.

[...] com a pandemia, uma coisa que aumentou muito foram o número de pacientes que eram acompanhados pelo plano de saúde que deixaram de ter [...] principalmente as outras equipes que têm mais só asfalto, não tem comunidade, a gente sentiu muito esse aumento das pessoas que eram do particular e foram para o SUS. [...] eu acho muito difícil nessa população do particular é o acompanhamento de tuberculose. Eles têm receio de receber os agentes comunitários em casa, para ir lá na consulta é horrível. Esse atendimento com eles é difícil. [...] a gente não consegue fazer o preconizado, que é o DOT. É difícil (ENF Bruna Campos).

E a mudança que eu reparei também foi em questão de surgirem outras doenças mais frequentes. Tuberculose, não tinha tanto antes, eu lembro que quando eu era da equipe que estou agora, eu tinha um paciente só, quando era Esperança no começo, a gente só tinha um paciente que era meu. Agora, a quantidade de tuberculose, às vezes é dois pacientes por agente, dois, três pacientes, e é uma doença que parece que ela espalhou de uma forma impressionante. É muita gente que está tendo essa doença e é uma das coisas que eu percebi também (ACS Karen).

É um pouco difícil responder isso porque na época a gente deixou de acessar o território. A gente deixou de fazer as visitas. Do território em si, não consigo responder com tantos detalhes. Acho que nessa época a gente conseguiu encontrar novos pacientes também. Pessoas que não buscavam atendimento na Unidade e por conta da síndrome gripal passaram a buscar. Pessoas, inclusive, que não eram do território descobriam que lá na Unidade é assim, como porta aberta, a gente sempre recebeu (MFC Clara Antunes).

A pandemia trouxe consigo uma crise de saúde mental sem precedentes, afetando especialmente crianças e jovens. Foi observado que a retirada dos jovens das escolas e a interrupção de suas rotinas tiveram consequências profundas, incluindo transtornos de saúde mental como ansiedade, depressão e automutilação. A ausência do contato social, essencial para o desenvolvimento emocional e social, agravou essas questões, e muitos jovens passaram a manifestar sinais de sofrimento psíquico. Ainda quanto a população infantojuvenil, alguns profissionais pontuaram sobre o ensino remoto, embora necessário, trouxe desafios educacionais significativos. Muitas crianças enfrentaram dificuldades com a falta de rotina, o que prejudicou seu desempenho acadêmico. A perda de socialização e as interrupções no aprendizado presencial resultaram em atrasos educacionais e comportamentais, dificultando a retomada das atividades normais mesmo após a reabertura das escolas.

Muito desemprego. As pessoas assim ficando mais pobres, precisando de doação de comida. [...] Muita criança, que teve algum tipo de atraso na educação, perdendo rotina, dormindo tarde, acordando tarde, fazendo aula online, com isso piora desempenho escolar, tem uma piora na socialização. Aumento dos casos de violência, automutilação, por causa do isolamento (MFC Átila).

Problemas de contato de fome, desemprego, jovens com questões de saúde mental – não sei se terapia no mundo vai ser o suficiente. Foram dois anos tirando as crianças e os jovens das escolas, do contato com seus companheiros, seus amigos. [...] A gente sempre viu a miséria, mas não tão escrachada, tão escancarada, tão recorrente (MFC Clara Antunes).

A gente também mora numa comunidade. Às vezes, não tem luz. Às vezes, não tem internet. E a gente passava, às vezes, pelo beco e via aquelas crianças na rua, porque não tinha o que fazer (ACS Raquel).

O isolamento social necessário durante o período da pandemia, associado à crescente onda política de pensamento antivacina, entre outros motivos, geraram repercussões importantes nos acompanhamentos de saúde da população. Reflexo disso foi percebido pelos profissionais de saúde quanto ao crescente atraso vacinal, principalmente dos adolescentes: “[...] nós temos que fazer as vacinas nas escolas, e é muita caderneta atrasada, é muita. É muita” (ENF Bruna Campos).

Houve percepções distintas conforme o período da pandemia. Na fase inicial, a redução importante das visitas domiciliares impediu um acompanhamento próximo das transformações no território. De uma forma geral, os transtornos em saúde mental tornaram-se mais evidentes. 

[...] um período mais agudo da pandemia, foi de fato a morte. Eram pessoas que, na sua grande maioria, tinham questões relacionadas a doenças crônicas, já havia um processo de adoecimento, [...] depois o adoecimento mental (ENF Kátia Brito).

Teve muita perda também de paciente, tive muitos pacientes, principalmente idosinhos, que tinham questões de diabetes, essas coisas assim. Pegou o covid e acabou falecendo. A gente perdeu bastante paciente. E isso foi uma das partes que me deixou mais triste, porque eu tinha um paciente que eu gostava muito dele, a Shy [técnica de enfermagem] ia fazer o curativo dele toda semana, a gente ia toda semana lá fazer o curativo dele, ele era tão carinhoso com a gente, dava coca-cola, bolinho e tudo, e aí na pandemia ele piorou e faleceu, essas perdas mexeram muito com a gente, porque as maiores perdas eram os pacientes de cuidados domiciliares. Eles quase não saíram de casa, mas acabou que a doença chegou até eles. E aí eles, com uma saúde mais prejudicada, acabaram indo (ACS Karen).

Pessoas com depressão, síndrome do pânico até hoje tem pessoas que ainda ficam receosas de ir à clínica. Muita depressão. [...] tem alguns pacientes meus que não são mais o mesmo. Não são o mesmo, mudou, assim, radicalmente. E mesmo quem teve até o Covid também, até hoje, tem algumas sequelas e não estão mais como antes (ACS Letícia).

Pós-pandemia, as pessoas adoeceram muito na questão da saúde mental delas. Hoje a gente vê muita gente com problemas de ansiedade, depressão, essas coisas assim, precisando de acompanhamento psicológico, medicação, antidepressivo, aumentou muito, muito, muito, muito mesmo (ACS Karen).

Segundo a sistematização proposta por Barbara Starfield, um dos atributos derivados da APS é a orientação comunitária que está relacionada ao conhecimento das necessidades em saúde da população e seu contexto social. A pandemia intensificou a pobreza e a insegurança alimentar em muitos territórios, conforme relatado por vários ACS. O fechamento de comércios, a perda de empregos e a redução de renda levaram muitas famílias a enfrentar a fome. Os profissionais de saúde relataram um aumento no número de famílias que necessitavam de doações de alimentos e apoio de organizações não governamentais (ONGs) para sobreviver.

Para mitigar os efeitos da fome, ações comunitárias foram realizadas, incluindo a distribuição de cestas básicas e a articulação com ONGs para fornecer apoio emergencial. Uma ACS da AP 2.1 mencionou que muitas famílias na Rocinha, onde a equipe trabalha, foram severamente impactadas e necessitaram de assistência contínua. A colaboração com organizações como a Fiocruz permitiu a distribuição de centenas de cestas básicas, além de orientações para acesso a benefícios sociais. Fundamental destacar a importância da presença da atuação dos ACS dentro dos territórios junto a população como elo com as equipes.

[...] além da pandemia, aí veio a fome, veio a fome de quem não estava indo trabalhar, [...] aí veio a outra parte da gente correr atrás, além de tentar cuidar, correr atrás de cesta básica para essas famílias também não morrerem de fome, porque foram muitas famílias que necessitavam de comida, que foram mandadas embora porque reduziram a equipe do trabalho, então assim, a gente teve contato com várias ONGs dentro da Rocinha, a gente mesmo, como equipe (ACS Letícia).

Tinha aquelas pessoas que tinham pouco, mas tinham, e tinha pessoa que não tinha realmente nada. Foi bem complicado. [...] Aqui também tem muito responsável pela família que são as mulheres. As mães que são solteiras. E elas sentiram bastante (ACS Raquel).

A comunicação clara e frequente foi crucial para abordar as preocupações dos pacientes e fornecer informações precisas sobre vacinas, testes e protocolos de saúde. Um MFC da AP 3.3 relatou que ações no território foram realizadas para educar a população sobre a covid-19 e as vacinas, além de oferecer suporte psicológico e social às famílias afetadas pela pandemia.

[...] a gente tem feito ações, que a gente fez durante a pandemia, ações comunitárias explicando como é, como tá sendo a situação do covid, da vacina, os critérios, as coisas. [...] nesse espaço de controle social, a gente listou as pessoas vivendo a situação do luto. E a gente fez um diagnóstico assim, quem eram essas famílias, a gente fez um diagnóstico da situação de insegurança alimentar, a gente fez uma ação de doação de cestas básicas, a gente conseguiu se articular com uma ONG da Fiocruz, a gente conseguiu 450 cestas básicas para o território que a gente distribui semanalmente e a gente lista essas pessoas para também fazer outras ações com essas famílias, por exemplo o cadastramento no Cadúnico, tentativa de benefício, orientações para família tentar buscar os benefícios. Porque a gente tava vendo a situação de fome mesmo no território (MFC Marcio).

Durante a pandemia, a tecnologia tornou-se uma ferramenta essencial para manter o contato com os pacientes e garantir a continuidade do atendimento. Uma ACS da AP 3.3 destacou o uso intensivo de telefones para consultas e acompanhamento, especialmente para aqueles que estavam receosos de ir às unidades de saúde devido ao medo de contaminação. A telemedicina e o telemonitoramento permitiram que os profissionais de saúde continuassem a prestar cuidados, mesmo diante das restrições impostas pela pandemia.

E o telefone foi uma ferramenta que a gente utilizou full-time, porque era a ferramenta em que melhor a gente conseguia o contato com nossos pacientes. e alguns deles recebiam a gente muito bem, outros já era uma questão mesmo de eu não quero consulta, eu só quero trocar minha receita. Por não querer estar dentro de uma unidade para não poder se contaminar [...] foi um momento em que as pessoas mais adoeceram mentalmente também, por consequência de isolamento, de ficar isolado da família, isolado de netos, isolado de filhos, de coisas que traziam alegrias para eles (ACS Daiane).

A pandemia de covid-19 revelou as vulnerabilidades existentes no sistema de saúde e na sociedade, exacerbando problemas de saúde mental, pobreza e violência. As medidas adotadas para atenuar esses efeitos, como ações comunitárias e o uso de tecnologia, mostraram a resiliência dos profissionais de saúde e a importância de uma abordagem integral para enfrentar crises de saúde pública. No entanto, os desafios persistem, e a experiência adquirida durante a pandemia ressalta a necessidade de políticas públicas específicas para lidar com futuras emergências, garantindo que todos, independentemente de sua situação socioeconômica, tenham acesso a cuidados de saúde eficazes e equitativos.